sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Emir Sader: ‘Estatal, mercantil, público e privado’

Essa concepção se expressa, de outra maneira, na polarização proposta pelo neoliberalismo entre estatal e privado que, para essa visão do mundo, sintetizaria as alternativas do nosso tempo. Se trata de uma polarização  que interessa ao neoliberalismo, porque se reivindica uma esfera valorizada (a privada) , se deixa como alternativa a esfera que eles destruíram (a estatal) e se esconde a real (a esfera pública).

Uma confluência de fatores promoveu a transição de uma época histórica  em que o Estado teve um papel central  - desde as reações à crise de 1929 -, chegando ao seu auge quando Richard Nixon, um presidente conservador dos Estados Unidos, declarou, em 1971: “Somos todos  keynesianos”, refletindo a hegemonia desse modelo.

O diagnóstico expressado por outro presidente republicano, Ronald Reagan, apenas uma década depois, de que “o Estado deixava de ser a solução, para se tornar o problema”, coincidia com o esgotamento do período keynesiano do capitalismo,  que desembocava na estagflação, resultado do fim da era desenvolvimentista a nível mundial, combinado com os elevados custos estatais dessa fase.

A adoção de variantes do neoliberalismo por parte da social-democracia europeia – primeiro por François Mitterrand na França, depois por Felipe Gonzalez na Espanha – consolidou a nova hegemonia. Na América Latina, onde o novo modelo foi introduzido pela ditadura de Pinochet, para depois se estender às correntes nacionalistas e social-democratas, foi se tornando um fenômeno similar. Primeiro pelo PRI, no Mexico, seguido pelo governo de Carlos Menem, na Argentina, ambas correntes de origem nacionalista. Foram depois seguidos por correntes de origem social democrata, como os socialistas chilenos,  a Ação Democrática na Venezuela, o PSDB no Brasil, entre outros.

Paralelamente, o fim da URSS e do campo socialista corroboravam a desqualificação do Estado, que aparecia como ineficiente, burocrático e corrupto. Como uma de suas consequências no plano teórico, junto com o retorno do liberalismo nos planos econômico e político, reapareceu também o conceito de “sociedade civil”, como contraponto do Estado, e um de seus correlatos, as ONGs.

A crise política e ideológica da esquerda, decorrente dos reveses sofridos pelo fim da URSS e pela redefinição ideológica da social democracia na direção do neoliberalismo, colocou em questão uma série de questões, até ali consensuais, para as diversas correntes.

A primeira era uma certa visão evolutiva da história que, tendo seu inicio no comunismo primitivo, teria passado por vários períodos históricos, marcados por distintos modos de produção, até chegar à passagem do feudalismo ao capitalismo e, deste, apontaria ao socialismo e ao comunismo. Mesmo as concepções distintas do socialismo – como, por exemplo, a social democrática e a comunista – assumiam essa temporalidade, diferenciando-se no ponto de chegada o socialismo ou o comunismo.

O fim da URSS e do campo socialista foi um duro golpe para a ideia, até então vigente, de que “a roda da história não volta para trás”. Qualquer que fosse a avaliação que se tivesse do modelo soviético, não se poderia, nessa visão, prognosticar o fim desse modelo, substituído pela restauração do capitalismo. Algumas correntes previam uma saída pela esquerda, com a restauração dos critérios leninistas do socialismo, pela sua democratização via socialização e não estatização dos meios de produção.

Mas todas as correntes foram surpreendidas pela extinção da URSS e pela restauração pura e simples do capitalismo. Predominaram, nessas transformações, não anseios democráticos do povo russo, mas suas expectativas de consumo, induzidas pela propaganda ocidental.

Combinando o triunfo ideológico do neoliberalismo e o fracasso do modelo estatizante do socialismo soviético, o Estado passava a ser satanizado e culpabilizado pela estagnação econômica, pelas elevadas tributações, pelos serviços públicos precários, pela baixa produtividade e pela falta de competitividade das empresas estatais, pelos grandes gastos com enorme corpo de funcionários públicos, pela proteção do mercado interno, que baixaria a competitividade, pela corrupção.

A hegemonia neoliberal, instaurada no mundo desde as últimas décadas do século XX, implicou não apenas a generalização da aplicação de políticas de prioridade da estabilidade monetária, com os ajustes fiscais correspondentes, mas também a hegemonia dos valores mercantis, que passaram a se multiplicar em todas as esferas da sociedade. Alavancas centrais dessa difusão são os shopping-centers, a publicidade das grandes marcas, a multiplicação das formas de marketing em esferas cada vez mais amplas da sociedade e o consumismo, com sua cultura da riqueza  e do acesso aos bens materiais como valores supremos da vida.

Nunca se viu uma extensão tão ampla das relações mercantis no mundo. Incorporaram-se a essa visão, países antes relativamente limitados em relação a elas, como a Rússia e os países do leste europeu. Todos eles foram amplamente ao mercado capitalista e a seus estilos de consumo, processo que já’ vinham ocorrendo antes mesmo do fim desses regimes, sendo um os fatores da sua crise final e que se consolidou com sua desaparição.

A China abriu espaços para o mercado como nunca havia feito antes. A Índia avançou aceleradamente em sua incorporação à globalização. Empresas estatais foram privatizadas e jogadas no mercado. Os investimentos em educação privada se tornaram um dos setores mais rentáveis do mundo, ao lado dos planos privados de saúde, até uma certa responsabilidade do Estado.

Ao colocar no centro do campo teórico a polarização entre estatal e privado, um elenco de novas categorias passou a frequentar os debates e as elaborações teóricas. Entre elas “sociedade civil”, “cidadania”, “redes”, “empreendedorismo”, “voluntariado”, “parcerias”. “terceiro setor”, “filantropia”, “exclusão e inclusão social”, em substituição a categorias como “classes”, “contradições”, “política”, “estratégia”, “Estado”.

Pierre Bourdieu e Loic  Wacquant estabeleceram um quadro que sintetiza essa polarização, como uma espécie de campo teórico instaurado pelo neoliberalismo e que inundou os debates intelectuais e políticos, impondo sua hegemonia mediante uma ação sistemática da grande mídia privada. O que eles chamam de “vulgata planetária” apaga categorias como exploração, classe, capitalismo, dominação, desigualdade, alienação, em uma ação de sucesso a partir da mídia. Constituiu-se assim, um quadro semântico, supostamente científico, desqualificador do Estado e, com ele, de um conjunto de categorias que apareciam como obstáculos à visão liberal e, por oposição, uma lista de categorias exaltadas como expressão da liberdade, do desejo, da imaginação, do dinamismo, do futuro.

 

•        A polarização entre a civilização e a barbárie é necessária. Por Alberto Cantalice

As grandes nações do mundo cresceram e se desenvolveram em ambientes polarizados. Historicamente, os exemplos são lapidares: os EUA com Republicanos e Democratas, a Inglaterra com Conservadores e Trabalhistas, a Alemanha com a Social-Democracia, os Comunistas e o Nazismo, a China com os Comunistas e os Nacionalistas do Kuomintang, e na Itália, os Socialistas e o Fascismo. Só para ficar nesses exemplos.

A pauta sobre o direito ao sufrágio por parte das mulheres, o combate à segregação racial, o Estado de bem-estar e o capitalismo X socialismo, moldaram o panorama do Século XX e entrou com força no Século XXI. E só progrediram com luta social.

A emergência da extrema-direita e sua pauta reacionária que embalado em um discurso nativista traz no pacote a xenofobia, o racismo e a lgbtfobia, elevou as disputas pelos aparelhos para um patamar inimaginável anos atrás.

A ascensão de Donald Trump, antecedido pela campanha pelo Brexit, na Inglaterra, mostrou a nova faceta da direita extremada: a produção de notícias falsas, as chamadas fakes News, em escala industrial.

<><> Panorama

As derrotas inesperadas tanto no Reino Unido quanto nos EUA em 2016, as “Revoluções coloridas” mundo afora impulsionadas pelas novas mídias serviram de alerta para as forças progressistas para o ressurgimento da extrema direita. O AFD alemão, os Fratelli D’Itália de Giorgia Meloni, a Frente Nacional de Marine Le Pen, o VOX da Espanha, o Chega em Portugal e o “libertarismo” de Javier Milei na Argentina e o bolsonarismo no Brasil, todos liderados pelo supremacismo branco Norte- Americano. Estes segmentos são a face mais visível desse reacionarismo que no passado agiu sob as lideranças de Adolf Hitler e Benito Mussolini.

“No fundo de seus corações, as grandes massas populares são mais propensas a serem envenenadas do que a praticarem o mal de forma consciente e deliberada. Na simplicidade primitiva de suas mentes, as pessoas são vitimadas mais facilmente por uma mentira grande do que por uma pequena, uma vez que eles mesmos, às vezes contam uma mentira boba, porém, teriam pudores de contar uma grande”. Essa assertiva foi escrita por Hitler em sua obra máxima, Mein Kampf.

Não é difícil encontrar similaridade nas práticas desenvolvidas por Donald Trump e seus acólitos. Bolsonaro à frente.

<><> A polarização e o discurso

Por outro lado, os progressistas e as esquerdas com sua crítica contundente às desigualdades sociais, à xenofobia, ao individualismo, ao machismo, e a lgbtfobia devem, juntamente com os movimentos populares, confrontar a extrema direita, apontando um novo caminho. Não há como conciliar com a regressão das pautas civilizatórias, a destruição do meio ambiente e as mudanças climáticas.

Nas eleições de 2022 a polarização se deu de forma cristalina entre o progresso encarnado por Lula e a regressão reacionária liderada por Bolsonaro.

Essa polarização continuará nas eleições de 2024 e perdurará em 2026, à despeito do que propalam os “engenheiros de obra pronta” da mídia tradicional.

Os negacionistas da ciência, os profetas da destruição e do caos, os acumuladores de dinheiro e os fundamentalistas terão que ser derrotados. Só se combate a mentira com a verdade. Não há outro caminho!

 

•        Lula defende reforma estrutural da ONU para lidar com um mundo à beira do colapso. Por Aquiles Lins

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva proferiu nesta terça-feira (24) um potente e abrangente discurso na abertura da 79ª Assembleia Geral da ONU. Lula fez uma profunda crítica ao estado atual da governança global, à ineficácia das instituições multilaterais, ao avanço de conflitos armados, ao avanço da fome no mundo e à lenta resposta à crise climática. Lula enfatizou a necessidade de uma ampla reforma na ONU para enfrentar as mudanças rápidas e desafiadoras do cenário internacional.

O presidente defendeu a necessidade de uma reforma no organismo internacional, e destacou o fato de não haver equidade de gênero no comando da ONU. "Prestes a completar 80 anos, a Carta das Nações Unidas nunca passou por uma reforma. Apenas quatro emendas foram aprovadas, todas elas entre 1965 e 1973. A versão atual da carta não trata de alguns dos desafios mais prementes da humanidade. Na fundação da ONU, éramos 51 países, hoje somos 193. Várias nações, principalmente no continente africano, estavam sob o domínio colonial e não tiveram voz sobre seus objetivos e funcionamento. Inexiste equilíbrio de gênero no exercício das mais altas funções. O cargo de secretário-geral jamais foi ocupado por uma mulher", disse Lula.

O presidente sugeriu transformar o Conselho Econômico e Social da ONU em um fórum central para abordar o desenvolvimento sustentável e combater as mudanças climáticas, com real capacidade de influenciar as instituições financeiras. Além disso, propõe revitalizar o papel da Assembleia Geral, especialmente em questões de paz e segurança internacionais, fortalecer a Comissão de Consolidação da Paz, e reformar o Conselho de Segurança, aprimorando sua composição, métodos de trabalho e o direito de veto, para torná-lo mais eficiente e alinhado às realidades do mundo atual.

Um dos principais pontos levantados por Lula é a escalada de gastos militares globais e a persistência de conflitos, como na Ucrânia e no Oriente Médio. Ele destacou a incapacidade de um consenso sobre soluções pacíficas, observando que, enquanto bilhões de dólares são gastos em armamentos, a fome e a pobreza continuam a crescer. Lula apontou, com pesar, o fracasso na construção de um Tratado sobre Pandemias, que poderia ter sido um marco de união após a COVID-19.

A crítica de Lula se estende à crise climática, reiterando o compromisso do Brasil em erradicar o desmatamento até 2030 e defendendo a inclusão dos povos indígenas nas soluções para a Amazônia. Ele reforçou o papel do Brasil como líder no setor de energia limpa e a importância de uma bioeconomia sustentável. O presidente também alertou para a iminência de 2024 ser o ano mais quente da história, o que exige medidas urgentes de descarbonização global.

Outro ponto de destaque no discurso do presidente Lula na ONU é o apelo por justiça econômica. Lula questionou o papel das grandes corporações e bilionários no aumento das desigualdades, propondo padrões mínimos de tributação global. Ele criticou a concentração de riqueza, enquanto milhões sofrem com a fome e a exclusão social, e enfatizou o compromisso do Brasil em erradicar a fome internamente e globalmente, por meio da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza.

Com um mundo à beira do colapso, permeado por guerras, e cada vez mais extremos climáticos, o discurso do presidente Lula foi uma defesa contundente do multilateralismo, com críticas firmes ao status quo, e uma visão de um mundo mais justo, sustentável e pacífico. O presidente apresentou o Brasil como um ator central na busca por soluções para os desafios globais, destacando-se tanto no combate à crise climática quanto na luta contra a fome e a desigualdade.

 

•        Lula fez graves alertas ao mundo, mas um ponto novo foi a defesa da regulação digital. Por Tereza Cruvinel

Em seu discurso na ONU, o presidente Lula falou como líder do Sul global e dos emergentes, cobrando dos países ricos o enfrentamento de urgências como a reforma da governança global, a adoção de medidas mais efetivas contra a crise climática,  esforços reais pela paz,  combate à desigualdade, à pobreza e à fome, entre outras. De tudo isso ele já havia falado, com diferentes entonações, em outros fóruns internacionais. Um ponto realmente novo em sua fala foi a defesa da regulamentação do ambiente digital, notadamente das Big Techs e da Inteligência Artificial.

Nesta quarta-feira a semana de alto nível na ONU se encerra com a realização inédita de uma reunião do G20 em paralelo com a Assembleia Geral da ONU, uma iniciativa da presidência brasileira. E nela, a questão da regulamentação digital terá mais ênfase, não só no discurso de Lula. O Brasil deve apresentar uma proposta de compromissos  neste sentido, a ser considerada por seus pares do G20, como ponto de partida para adesão de outras nações.

Em sua fala de ontem, Lula  fez uma referência velada à polêmica envolvendo o X (antigo Twitter) no Brasil, defendendo o controle de empresas que “acham que não têm que observar as legislações dos países”.

Vale registrar também como novidade a apresentação de uma proposta concreta de reforma da ONU. O presidente propôs, além da sempre falada reforma do Conselho de Segurança, com inclusão de países da América Latina e da África, a transformação do Conselho Econômico e Social da ONU no principal fórum coordenador das medidas de combate ao aquecimento do planeta e favoráveis ao  desenvolvimento sustentável. A questão climática, disse Lula cobrando mais empenho dos ricos e mais ajuda aos emergentes para enfrentá-la, não pode mais ser “desplanetizada”.  Defendeu ainda a reativação da Comissão da Paz, hoje praticamente inativa, e o fortalecimento da Assembleia Geral como órgão decisório maior.

A regulamentação das Big Techs, que inclui gigantes como Google, Meta (Facebook), Amazon, Apple e Microsoft,  é um desafio para todos os países exatamente por envolver interesses econômicos gigantescos.

Com seu imenso poder econômico, influência sobre a comunicação e o uso crescente de tecnologias como inteligência artificial, essas empresas têm despertado preocupações em diversas frentes, incluindo privacidade, concorrência desleal, manipulação de dados, a à democracia e controle de informações.

Agora mesmo, na campanha eleitoral, um candidato que é produto do mundo digital desgovernado, Pablo Marçal, vem tumultuando o processo, naturalizando a violência política e contribuindo fortemente para a descrença na democracia. O TRE de São Paulo e o Ministério Público Eleitoral já poderiam ter removido do processo este fator conturbador, nefasto à vida democrática.

Por outro lado, o Brasil acaba de dar um bom exemplo ao mundo ao banir a rede X do país, enquanto seu controlador não cumprisse ordens do STF para remover perfis criminosos e não tivesse representação legal em território nacional.  Elon Musk piscou, depois de tripudiar sobre o Judiciário brasileiro, e agora está se ajustando às exigências do ministro Alexandre de Morais. Mostramos a ele que este é um país soberano e não a casa de Mãe Joana, como disse Lula em outras palavras.

Isoladamente, entretanto, nenhum país será vitorioso contra o polvo digital, e o Brasil sabe disso. No âmbito do G20, o governo Lula  insistirá nisso,  propondo compromissos com uma regulação digital que também não pode ser desplanetizada.

 

Fonte: Brasil 247

 

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