sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Crise climática coloca resiliência dos sistemas de saúde à prova

A crise climática já é a maior ameaça à saúde do Século 21, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). A entidade alerta que, entre 2030 e 2050, a previsão é de que as mudanças climáticas provoquem 5 milhões de mortes adicionais – 250 mil ao ano –, fruto de doenças respiratórias, transmissão de arboviroses – como dengue e malária – e agravamento de doenças crônicas. Os custos diretos dos danos causados à saúde acompanham esse quadro e podem chegar à casa dos US$ 4 bilhões por ano até 2030. Diante desse cenário, discutir estratégias para preparar os sistemas de saúde para as consequências dos eventos climáticos se tornou pauta urgente, uma vez que, para se adaptar às consequências no futuro, muitas decisões precisam ser tomadas agora, no curto prazo.

“A crise climática ameaça anular o progresso realizado nos últimos 50 anos no desenvolvimento, na saúde global e na redução da pobreza, e ampliar ainda mais as desigualdades de saúde existentes”, alertou Sidney Klajner, presidente da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein, durante o painel “Resiliência Climática e Saúde: Impactos das mudanças climáticas sobre as populações e os sistemas”, realizado na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, na última quinta-feira (19).

O debate fez parte da programação do “SDGs in Brazil”, maior encontro de sustentabilidade corporativa do mundo, realizado pela rede brasileira do Pacto Global da ONU. O fórum tem como objetivo avaliar o avanço dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) no país, e Klajner é porta-voz do ODS 3 – Saúde e Bem-Estar, no Programa de Liderança com ImPacto, do Pacto Global.

Na mesa de debate, que também teve a participação de Márcia Castro, professora de Demografia no Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard, foi abordada a importância do desenvolvimento de um ecossistema de saúde que suporte as demandas trazidas pelo novo cenário. “Sistemas de saúde resilientes às mudanças climáticas são aqueles capazes de antecipar, responder, enfrentar, recuperar e se adaptar aos choques e ao estresse relacionados ao clima, para trazer melhorias sustentadas na saúde da população”, explicou Klajner.

Durante o encontro, os especialistas defenderam soluções em diversas frentes. A criação de planos de contingenciamento ou de catástrofe para garantir a prestação de serviços durante eventos extremos e surtos de doenças sensíveis ao clima foi uma delas. Mas, segundo Klajner, é preciso ir além dos eventos extremos para pensar também nas alterações climáticas mais perenes. “É a resiliência do sistema de saúde como um todo, não é de um hospital ou de um outro equipamento, para lidar tanto com os eventos mais agudos, como chuvas e secas intensas ou queimadas, quanto com alterações climáticas que vão ficar um pouco mais.”

Segundo Márcia Castro, a dimensão que os eventos climáticos tomaram recentemente é resultado da falta de ação preventiva, e, para evitar a piora do cenário, é preciso focar no desenvolvimento de um planejamento a longo prazo, com um olhar especial para a atenção primária.

“A gente não tem um planejamento de longo prazo, não tem medidas de mitigação que já antecipam o que vai acontecer, e o resultado é o que temos vivido hoje. Então, precisamos pensar a longo prazo. E um dos pontos chaves de um sistema de saúde resiliente é uma atenção primária resiliente, porque a atenção primária é a espinha dorsal de qualquer coisa que o sistema de saúde faça. E ela está doente: falta gente, falta treinamento, falta redirecionamento. Isso não é gasto, é investimento.”

•        Eventos extremos recorrentes no Brasil

O debate sobre este tema se torna ainda mais urgente diante do que o Brasil tem enfrentado nos últimos meses: as fortes enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul, e as queimadas que cobriram de fumaça grande parte do país.

Neste último caso, entre 1 e 20 de setembro, foram registrados cerca 65 mil focos de incêndio no Brasil, segundo dados da plataforma BDQueimadas. A fumaça decorrente delas chegou a cobrir 60% do território nacional e, no primeiro fim de semana de setembro, quase 200 cidades registraram umidade do ar menor ou igual a 20%. O nível ideal de umidade do ar para o organismo humano é entre 40% e 70%, segundo a OMS.

Por consequência, a incidência de doenças respiratórias também sofreu um pico no período. Dados observados no pronto-socorro das unidades privadas do Einstein em São Paulo, por exemplo, mostram uma alta no atendimento de pacientes diagnosticados com CIDs relacionados a problemas respiratórios nas semanas que tiveram uma maior incidência de fumaça das queimadas na capital paulista.

O ar com baixa umidade pode provocar o ressecamento das mucosas das vias aéreas, o que aumenta a vulnerabilidade para infecções virais e bacterianas. Para alguns grupos, o cenário é mais sensível. “As queimadas geram material particulado que pode provocar inflamações. Em pessoas fragilizadas ou com fatores de risco associados, aumentam os riscos de infarto e acidente vascular cerebral (AVC)”, pontuou Klajner.

Outra consequência é a mudança no perfil geográfico de incidência de doenças provocadas por vetores, como é o caso da dengue. Nos primeiros meses de 2024, a região das Américas registrou mais de 3,5 milhões de casos e mais de mil mortes pela doença, segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). Em 21 de setembro, o painel de atualização do Ministério da Saúde mostrava o acúmulo de mais de 6,5 milhões de casos, e pelo menos 5 mil óbitos decorrentes da arbovirose. Uma marca histórica.

“A mudança climática pode mudar o limite geográfico de algumas doenças, porque você tem condições mais favoráveis para vetores ou para sobrevivência de patógenos. E é importante deixar claro que algumas áreas podem começar a ter menos incidência de determinadas doenças, não é só um cenário de aumento. A mudança climática é um evento a longo prazo e estamos vendo agora manifestações dessa tendência”, aponta Castro.

As enchentes também entram nesse rol de eventos extremos, como as ocorridas em maio de 2024, no Rio Grande do Sul e afetaram cerca de 900 mil pessoas diretamente. Um dos principais desafios nessa situação é a exposição prolongada a água e lama contaminadas, o que eleva a possibilidade de contato com bactérias e vírus que causam, por exemplo, a leptospirose.

Na ocasião, ao menos 290 estruturas de serviços de saúde foram atingidas de alguma forma pela tragédia, avaliou o Ministério da Saúde. Isso reforça a importância da discussão de como a infraestrutura dos serviços de saúde é desenhada – outra das demandas apontadas no evento em Nova York. “Esses eventos extremos acabam com a capacidade do sistema de saúde de entregar o atendimento a uma população. E, geralmente, as pessoas mais vulneráveis, que já têm menos acesso, passam a ter menos ainda”, disse o presidente do Einstein.

O problema não é exclusivo do Brasil. No continente americano, 67% das unidades de saúde estão em áreas de risco. Só na última década, mais de 24 milhões de pessoas tiveram o acesso aos serviços de saúde interrompido em decorrência de danos às infraestruturas, de acordo com informações da OPAS.

•        Foco nas populações vulneráveis

A própria OMS salienta que, embora o impacto da catástrofe climática atinja a todos, são as pessoas em vulnerabilidade social – comumente indivíduos não-brancos, populações quilombolas e ribeirinhas – as primeiras a serem afetadas de maneira mais drástica, mesmo numa posição de menor contribuição para as causas desse colapso. Por isso, a organização defende que ações para mitigar os danos da crise climática devem considerar as desigualdades sociais existentes.

Castro explica que há dois perfis de populações vulneráveis: aquelas vulneráveis por definição, como indígenas e ribeirinhos, que dependem do nível do rio e residem em territórios isolados, e populações que são vulneráveis pela maneira como a habitação foi desenvolvida: “Há comunidades que vivem em áreas com uma inclinação de mais de 30 graus, que não deveriam ser ocupadas. Temos populações vivendo em áreas que não têm acesso à infraestrutura básica, e são pessoas que moram nesses locais porque não têm para onde ir.”

Para a pesquisadora, a vulnerabilidade habitacional é um fator que caminha junto aos eventos climáticos extremos. “Vemos deslizamentos em cidades como Maranhão, Pernambuco, Rio de Janeiro, e as famílias retornam para a mesma área de risco após o desastre, porque não há uma política de moradia. A vulnerabilidade é constituída a partir de camadas, e são camadas de desigualdade que acabam aumentando diante dos eventos climáticos”, aponta.

Nesse sentido, o desenvolvimento de sistemas de monitoramento passa a ser indispensável. Este acompanhamento é justamente o objetivo de um projeto que o Einstein inicia agora em parceria com o Ministério da Saúde, por meio do Proadi-SUS. O foco é analisar a situação de saúde de populações vulneráveis cruzando dois tipos de dados: iniquidades em saúde existentes com os aspectos socioambientais e climáticos. A avaliação será feita nos seis biomas brasileiros, nas principais capitais do país.

As informações coletadas serão apresentadas ao Ministério para auxiliar na tomada de decisões e na melhora da saúde dessas populações. Estão previstos o mapeamento de pacientes nestas microrregiões que tenham doenças crônicas, para que sejam avisados com antecedência sobre excesso de poluição ou calor e possam planejar sua rotina. A iniciativa contemplará também o monitoramento e registro do surgimento ou agravo de riscos por meio de sensores que captam dados de poluentes e clima via internet, além do planejamento econômico e de recursos públicos.

“Nós já temos feito um mapeamento da condição de saneamento da acessibilidade de populações quilombolas à saúde, a disparidade que já existe e a possível detecção da alteração climática que as afetem”, destaca Klaner. “Quando se coloca a coleta de dados de modo transversal e as verticais de vulnerabilidade dessa população no que diz respeito à questão climática, temos informações importantes a serem compartilhadas com o governo, para que sejam tomadas as medidas necessárias.”

Há ainda outro projeto, intitulado de Vigiambsi, também em parceria entre o Einstein e o Ministério da Saúde, que visa desenvolver uma plataforma de integração de dados de saneamento e qualidade da água com dados de saúde das populações em 10 Distritos Indígenas (cerca de 200 mil habitantes). A iniciativa pretende fornecer subsídios para o planejamento de ações de saúde e vigilância ambiental destas populações.

Para Klajner, o momento pede a colaboração e compromisso de todos. “Esse não é um problema do governo e sim de todos, já que o impacto traz ônus inclusive financeiro para toda a população. Por isso, é importante uma união de forças entre sistemas público e privado, com diferentes empresas viabilizando projetos. O debate sobre clima e saúde precisa crescer, abarcar todos os entes envolvidos nisso, em preparação e mitigação”, concluiu.

 

Fonte: Futuro da Saúde

 

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