segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Ecpirose. Nenhuma política pode renunciar ao dom do fogo e o mundo arde

Günther Anders o chama de vergonha prometeica. O titã não previu o que a humanidade faria com o dom do fogo. Não previu que o fogo, transportado pelo carro do sol até a terra, se tornaria um enorme incêndio, que consumiria o mundo em uma miríade de fornos. (Peter Sloterdijk, Il rimorso di Prometeo, Venecia, Marsilio, 2024, p. 39.)

Há um mês, o calor se prolonga ininterruptamente, dia e noite, com picos de 38 graus. Lembro-me que às vezes, quando eu era criança, a temperatura chegava aos 40 graus. Tenho uma vaga lembrança. Contudo, isto acontecia por um ou dois dias. Agora, o verdadeiro problema é a persistência pavorosa deste sol imóvel, deste calor que paira sobre a cidade e parece eterno.

Estou deitado na cama ou então me acomodo nesta cadeira com o desumidificador ligado. E leio. Nesses dias, talvez para me prejudicar, estou lendo um pouco sobre o aquecimento global ou o colapso climático, chame como quiser. Talvez se trate da ecpirose, a dissolução do mundo no fogo, como a chamava Heráclito, o filósofo que pensou o mundo como uma transformação ininterrupta.

Então, leio Falso Alarme (Falso allarme, Roma, Fazi Editore, 2024), o livro de Bjorn Lomborg, um dinamarquês que dirige o Copenhagen Consensus Center e é pesquisador da Instituição Hoover, na Universidade de Stanford, que tenta me convencer de que não existe problema algum a esse respeito. Eu suspiro, mas ele me garante que está tudo bem, que é melhor ignorar os alarmes. Pode ser que o clima lá em Copenhague seja diferente em relação ao de Bolonha, mas inicialmente pensei que Lomborg era simplesmente um imbecil. Não é.

A tese de Falso Alarme é sensata: Lomborg não nega o aquecimento global, embora desaconselhe chamá-lo de colapso climático, para evitar dramatismos. Também não nega que seja um efeito da ação humana. Sua tese, no entanto, é que o fenômeno é controlável, ainda que provocará forçosamente alguns danos, mas nada comparável aos enormes benefícios econômicos e de saúde que a modernidade nos trouxe. O que precisa ser feito é simples: investir recursos em geoengenharia capaz de conter o aquecimento com chuvas artificiais de água do mar e iniciativas semelhantes.

Tento ignorar meu estado ofegante, que me levaria a jogar o livro pela janela, que também está estritamente fechada para evitar que o ar incandescente penetre na penumbra do meu quarto. Na primeira parte do livro, Lomborg explica que os incêndios não aumentaram em absoluto ao longo do último século, apenas se tornaram mais desastrosos, porque a população aumentou e nas áreas urbanas os danos se multiplicam.

Vá e explique aos atenienses que lutam contra as chamas nesses dias que a culpa é deles, porque não deveriam ter se aglomerado em um só lugar. Porém, a parte mais interessante (e infelizmente aceitável) é a dedicada à inutilidade das energias renováveis e das políticas de transição energética em geral.

Apesar dos enormes gastos, as energias renováveis, em conjunto, fornecem apenas 1% das necessidades energéticas mundiais [...]. Acabar com a dependência dos combustíveis fósseis custará centenas de bilhões de dólares. Os países que tentassem enfrentar semelhante volume de gastos enfrentariam enormes convulsões políticas e, por isso, contentam-se em simplesmente gastar centenas de milhares de milhões de dólares em projetos de energia solar e eólica, sem consequentemente conseguir grande coisa. Os países pobres não têm milhares de milhões de dólares para gastar. Para eles, a perspectiva de obter energia a partir de combustíveis fósseis continua sendo muito mais atraente (p. 148 da edição italiana).

É difícil negar que as tentativas políticas de atenuar a ecpirose foram, em geral, ineficazes, ao ponto de toda a máquina política parecer cada vez mais impotente para enfrentar o maior dos problemas da humanidade. No entanto, é necessário voltar à raiz da impotência atual: quando ocorreu a primeira cúpula mundial sobre o clima, em 1992, o presidente dos Estados Unidos, George H. W. Bush, pronunciou uma frase que explica tudo: “O nível de vida dos estadunidenses não é negociável”, o que significa o seguinte: não nos importamos bulhufas com a catástrofe, porque pretendemos continuar consumindo quatro vezes mais eletricidade do que a média planetária.

Como sabemos, os estadunidenses não mudaram de opinião e pode ser que em breve tenham um presidente para quem o global warming parece uma piada estúpida, porque os estadunidenses querem continuar comendo hambúrgueres. Assim como George H. W. Bush, assim como Donald Trump, Lomborg também não considera o fato de que o consumo de energia fóssil não pode ser reduzido sem o abandono do modelo econômico existente, baseado na acumulação de capital e na constante expansão do consumo.

Lomborg não esconde, no entanto, que o aquecimento é assustador e iminente. E após desmantelar todo o castelo dos Acordos de Paris e demonstrar que “a totalidade dos grandes países industrializados não cumpre os seus compromissos de redução das emissões de gases do efeito estufa”, conclui que “o século XXI verá o planeta aquecer 4,1 graus (p. 170). Por esta razão, é necessário investir em geoengenharia, em tecnologias que permitam sobreviver em um planeta superaquecido, enquanto os processos que provocam o aquecimento permanecem sem mudanças: cada vez mais petróleo, cada vez mais mercadorias, cada vez mais guerras. E uma chuvinha artificial para proteger alguma área privilegiada da Terra.

Gaia Vince (o nome soa como um pseudônimo feliz, mas, na verdade, é o nome real de uma jornalista britânica especializada em questões climáticas) também propõe um diagnóstico, se não exatamente otimista, ao menos tranquilizador ao seu modo. A humanidade superará a crise climática, diz Gaia em um livro intitulado Il secolo nomade (Turim, Bollati Boringhieri, 2023), graças às grandes migrações, que concentrarão a população planetária em torno de Londres e Edimburgo.

Na primeira parte do livro, a autora descreve o efeito devastador das mudanças climáticas nas zonas tropicais do planeta e anuncia que, nos próximos cinquenta anos, o aumento das temperaturas, combinado com uma umidade mais intensa, impossibilitará que 3,5 bilhões de seres humanos sobrevivam nas áreas onde vivem atualmente. Fugindo dos trópicos, das zonas costeiras e das terras antes cultiváveis, enormes massas de população terão de buscar novos lugares para viver. Como os seres humanos são uma espécie nômade, explica Gaia, poderemos evitar o apocalipse nos deslocando todos acima do paralelo 45, ou seja, para entendermos, acima do rio Pó. Todos na Lombardia, então.

O delicado equilíbrio climático que permitiu a sobrevivência da espécie humana foi destruído pelo efeito de algumas poucas décadas de uso intensivo de combustíveis fósseis e não existe qualquer programa realista capaz de uma reversão. Tanto que o sistema produtivo nem sequer insinua reduzir o uso de combustíveis fósseis e, no final das contas, do jeito como as coisas estão, é melhor desfrutar de todo o petróleo disponível no momento. E então?

A solução proposta por Gaia Vince seria genial, se não fosse completamente irrealista, como demonstra a experiência dos últimos anos. Três bilhões e meio de migrantes se deslocando dos trópicos para o Polo Norte, diz a engenhosa jornalista. Infelizmente, como sabemos, bastam algumas dezenas de milhões de migrantes para provocar uma violenta reação de xenofobia ao longo da linha do paralelo 45.

A onda negra que está transtornando a política é a reação dos predadores que colonizam e poluem o planeta há cinco séculos e que não têm qualquer intenção de compartilhar o seu perigoso privilégio. O genocídio que ocorre ao longo da linha divisória que corre entre o Norte e o Sul globais – campos de concentração para migrantes, afogamentos em massa no Mediterrâneo, encarceramentos – é a prova de que as hipóteses e conjecturas apresentadas por Gaia Vince são uma utopia. A grande migração no delírio de Vince está sem dúvida acontecendo e continuará acontecendo, mas coincide com uma guerra mundial travada entre os brancos ricos e superarmados e uma população imensa, desarmada e imparável, que deve fugir de lugares agora convertidos em desertos e, portanto, inabitáveis.

Para voltar à realidade, após as fantasias de geoengenharia de Lomborg e dos delírios geomigratórios de Vince, basta ler Fire Weather: A True Story from a Hotter World, 2023 (L’età del fuoco, Milão, Iperborea, 2024), do canadense John Vaillant, que relata o incêndio mastodôntico que arrasou, em 2016, a cidade canadense de Fort McMurray, centro de produção de petróleo betuminoso. “O incêndio de Fort McMurray, o desastre natural mais caro da história do Canadá, não foi extinto após dias, mas meses” (p. 17 da edição italiana).

O livro de Vaillant relata, como se fosse um romance, os dias em que milhares de bombeiros, que chegaram a Fort McMurray provenientes de todo o país, tentaram conter o fogo, conseguindo salvar seus habitantes, mas não a cidade. Porém, não se trata de um romance, pois a fantasia não tem nada a ver com o que se conta. Independentemente do que diga o negligente Lomborg, que considera que o volume de incêndios diminuiu no último século, embora as temperaturas tenham aumentado, o que Vaillant afirma é mais convincente, porque corresponde à experiência contemporânea (enquanto escrevo, em meados de agosto, o céu de Atenas está escuro pelos gigantescos incêndios que cercam a metrópole).

Fort McMurray é um dos mais importantes centros de produção de petróleo do Canadá, o que explica o petróleo ter invadido todos os espaços da própria cidade, dificultando os trabalhos de extinção, já que as casas dos empregados do setor eram feitas de derivados do petróleo. As telhas eram de alcatrão, presente também nos revestimentos exteriores, as janelas eram de vinil, a madeira estava saturada de colas e resinas, os pisos continham linóleo, as tapeçarias eram de polipropileno, os laminados eram revestidos com esmaltes e lacas inflamáveis, somando-se também eletrodomésticos, roupas, o mobiliário, móveis de jardim, cobertores, colchões e embalagens de alimentos, enfim, praticamente tudo vinha do petróleo (p. 197).

Vaillant fala sobre o Petroceno e explica o seguinte: Em 2019, o PIB mundial subiu para 90 trilhões de dólares e obteve praticamente toda a sua energia (84%) dos combustíveis fósseis. Estamos utilizando este fundo fiduciário de energia como se nunca fosse acabar: todos os dias os seres humanos consomem em torno de 100 milhões de barris de petróleo bruto e movimentam 40 milhões deles por todo o planeta. Mais de um terço do transporte global total é petróleo (p. 90).

Consequentemente, há poucas esperanças de deter o incêndio.

O planeta demorou milhões de anos para acumular a energia fóssil que aproveitamos ao longo do último século e meio. Queimá-la em apenas algumas décadas está provocando e provocará consequências dramáticas […] o confronto entre o dióxido de carbono e os seres humanos está dando apenas os seus primeiros passos e trará uma carga mais pesada para as gerações futuras do que para nós […]. O castigo recairá sobre todos nós, mas especialmente sobre os jovens, os inocentes, os não nascidos. Enquanto isso, a vida continuará [...] (p. 470).

A resiliência aparece aqui como o que é: uma maldição da qual só há uma maneira de escapar: suspendendo a reprodução da raça humana, que parece condenada pelo que Peter Sloterdijk chama de “niilismo extrativo”.

As florestas primordiais de um passado muito distante, fossilizadas e liquefeitas, foram devolvidas ao tempo histórico e atualizadas no momento presente da era industrial por inúmeros incêndios gerados por máquinas. O que consideramos civilizações modernas são, na realidade, os efeitos dos incêndios florestais que o nosso presente provoca nas relíquias da antiguidade da Terra. A humanidade moderna é um grupo de incendiários que lança fogo em florestas e charnecas subterrâneas (P. Sloterdijk: Il rimorso di Prometeo, cit., p. 27).

Em seu opúsculo, Sloterdijk reconstrói a gênese do Petroceno em termos marxianos: o aumento da composição orgânica do capital (a introdução de máquinas que reduzem o peso relativo do trabalho humano na produção de mercadorias) foi possível graças à revolução técnica da qual a eletricidade e o petróleo são os instrumentos essenciais. “O resultado [da aplicação destas tecnologias] para cada indivíduo adulto corresponde à capacidade que seria obtida de um contingente de vinte a cinquenta escravos domésticos e, em alguns casos, de um grupo muito maior” (p. 60).

Por isso, nenhuma política pode induzir os cidadãos do mundo contemporâneo a renunciar ao dom do fogo ou, pelo menos, a limitá-lo de forma compatível com a salvaguarda de um clima habitável. Não há, pois, nenhuma possibilidade “política” de deter a autodestruição, que Sloterdijk define, citando Heráclito, como ecpirose (dissolução do mundo no fogo).

Provavelmente, só uma tecnologia hoje inimaginável (talvez a nanotecnologia) poderia interromper esta corrida, mas é improvável, senão impossível, que alguém seja capaz de investir os recursos necessários para empreender esta reconversão, especialmente quando a ecpirose já está em curso e os recursos que dispomos estão sendo investidos em apagar os incêndios florestais e em sempre acender novos fogos em uma guerra que os humanos, presas do pânico, estão iniciando em todos os cantos do planeta.

 

Fonte: Por Franco “Bifo” Berardi, no Diario Red, tradução do Cepat, para IHU

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário