sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Dados, custos e formação são barreiras para avanço de IA na oncologia pediátrica

O uso da inteligência artificial na saúde tem sido visto como uma oportunidade para auxiliar o desenvolvimento de novos tratamentos, a análise de dados e a assistência, entre outros desafios enfrentados pelo setor. Uma das áreas que têm buscado soluções nesse sentido é a oncologia pediátrica. Sendo uma especialidade que lida com casos sensíveis e um público que tem um desenvolvimento da doença que muitas vezes é considerado inesperado, a perspectiva é que o uso de IA contribua com a prevenção e redução de quadros graves e efeitos colaterais, colaborando com a intervenção médica no momento ideal.

Um dos mais modernos hospitais do segmento, o SickKids – Hospital for Sick Children do Canadá, considerado o 2º melhor hospital pediátrico do mundo de acordo com o Ranking 2024 elaborado pela revista Newsweek, dá seus primeiros passos para utilizar IA no dia a dia da instituição.

O “PREDICT”, machine learning em desenvolvimento pelo SickKids, é comandado por Lilian Sung, professora, cientista sênior e cientista-chefe de dados clínicos. A ideia é que o grupo consiga antecipar informações sobre risco de vômitos em crianças em tratamento de quimioterapia, podendo atuar antes do efeito, mas também outros desafios da oncologia pediátrica, como permanência de internação, mortalidade e indicação de medicação personalizada, estão no horizonte.

“Muitos problemas são importantes, mas muitos não conseguimos medir muito bem ou demoram muito para acontecer. Por exemplo, a recidiva é realmente importante, mas muito mal documentada nos registros de saúde. É muito difícil medir. Também queríamos que nossos primeiros projetos tivessem uma janela de previsão curta. Dos problemas que são imediatos, nós temos uma das maiores especialistas do mundo em vômitos em crianças”, explica Sung.

A cientista-chefe de dados aponta três barreiras principais para o desenvolvimento das IA no âmbito da oncologia pediátrica: dados, custos e expertise das equipes. No Brasil, o GRAACC observa os mesmos desafios para conseguir ampliar seu projeto na área. Sandra Shiramizo, gerente de Projetos & Processos do hospital, aponta que apesar de ser referência na área, o GRAACC só conta com dados digitalizados dos últimos 4 anos.

“Hoje, o nosso racional depende do humano. Quando falamos do uso de dados, principalmente de inteligência artificial, é todo um cenário necessário. Preciso de ferramentas, tecnologia, analytics, etc. A gente envolve pessoas e conhecimento, principalmente”, explica ela, que participou junto com Lilian Sung do Congresso GRAACC 2024, para abordarem o tema Medicina do Futuro.

•        Experiência do SickKids na oncologia pediátrica

“Machine learning em genética para o câncer tem sido muito importante, por exemplo. Mas usar machine learning para entender padrões de crianças se tornará muito importante em um futuro próximo, buscando personalizar o tipo de terapia que damos, seja quimioterapia ou tratamento de suporte. Isso deve acontecer nos próximos anos. O desafio será apenas garantir que estamos nos concentrando nos problemas mais importantes e que estamos apoiando nossos médicos e enfermeiros, bem como nossos pacientes, para aplicar essa tecnologia”, observa Lilian Sung.

Com o boom da inteligência artificial e do ChatGPT em 2022, a sociedade começou a olhar com mais foco para a tecnologia. No entanto, a cientista-chefe de dados explica que pelo menos 2 anos de testes “silenciosos”, isto é, antes de colocar na prática clínica, são necessários para que consiga mostrar a efetividade de uma machine learning para a oncologia pediátrica.

Mas para isso avançar, é necessário ter as condições ideais, o que envolve orçamento, equipe capacitada e dados. Esses dados coletados ao longo dos anos pelos hospitais serão utilizados para treinar modelos e encontrar padrões. Dessa forma, é possível que a IA consiga trazer informações que contribuam com a equipe assistencial.

Apesar de hospitais ao redor do mundo terem problemas semelhantes, Sung explica que não é tão simples apenas que as instituições compartilhem suas tecnologias. Isso dificulta que se construa um único modelo, mesmo que fabricado por uma grande corporação para comercializar, e forneça para diferentes unidades.

“Nossos modelos são treinados com nossos dados para nossos resultados. Então, se pegar o nosso modelo e entregá-lo ao seu hospital, ele não funcionará muito bem. Existem algumas técnicas novas, ainda em estudo, que dão indícios de que podemos desenvolver modelos juntos que funcionarão bem em ambos os centros. Entretanto, para países com poucos recursos isso sempre será uma grande barreira, pela falta de experiência ou orçamento”, afirma Lilian. A participação das big techs, nesses casos, pode ser de grande suporte a pequenas instituições de saúde.

O modelo de predição para casos que podem ocasionar vômitos em pacientes em tratamento de quimioterapia pode entrar em uso no SickKids nos próximos meses. A perspectiva é que a publicação científica com os resultados seja publicada em novembro deste ano, embasando a inclusão gradual no dia a dia da instituição.

Os próximos passos serão enfrentar outros desafios da oncologia pediátrica.”Nos próximos cinco anos veremos muitas implementações no mundo. Algumas delas não funcionarão. Vamos aprender muito mais sobre onde elas funcionam, onde não funcionam, e minha esperança é que comecemos a ser capazes de desenvolver abordagens onde possamos compartilhar modelos entre os hospitais. Isso é muito importante para o futuro”, observa Sung.

•        Realidade brasileira

Ter dados é essencial para o treinamento de IA, mas existem alguns desafios em torno dessas informações. Quais dados foram coletados, a qualidade, a forma como está armazenado e organizado são alguns deles. Apesar de ser enfrentado em diferentes lugares do mundo, o Brasil teve uma transformação digital mais atrasada que outras regiões.

“O que a gente faz no papel durante quase 30 anos, acaba sendo consumido de maneira muito específica, ou para um estudo ou pela equipe assistencial. Isso para o mundo do negócio não tem tanto valor, a gente acaba interpretando as coisas de maneira diferente. Dentro desse cenário de quatro anos que começamos a coletar de forma digital, conseguimos construir dashboards. Quando falamos de inteligência artificial uma das premissas para o uso é ter uma massa de dados”, explica Sandra Shiramizo, do GRAACC.

O hospital oncológico pediátrico realizou, em 2023, cerca de 21 mil consultas médicas e 17 mil aplicações de quimioterapia em 3.605 pacientes. Mesmo compilando os dados de quatro anos, o montante ainda é baixo, principalmente pensando em cada condição, sintoma ou tipo de câncer específico. Por isso, a equipe da instituição ainda dá os primeiros passos, tentando construir um modelo que colabore na predição de casos em que um paciente internado apresenta sinais de deterioração clínica.

“Sem dados não temos com o que trabalhar. Ainda estamos bem embrionário no projeto. Até porque a gente já tem conhecimento de alguns modelos rodando em outros hospitais, mas temos a particularidade de ser um hospital muito especializado. Cuidar de criança é uma caixinha de surpresa. Temos campo para explorar e, de fato, melhorar a assistência que prestamos ao paciente”, observa Shiramizo.

A gerente de Projetos & Processos reforça a importância de ter profissionais qualificados para atuarem na construção desses modelos, com suporte da equipe assistencial e profissionais da saúde que atuam no dia a dia dos pacientes. São eles que sabem os problemas que enfrentam junto aos pacientes e captam os dados que serão utilizados. No entanto, a questão do financiamento ainda é um desafio.

“A gente precisa investir em tecnologia e não é barato. O retorno também não é instantâneo. Mesmo para fazer um modelo de inteligência artificial preciso entender a acurácia e acompanhar este modelo para ver se traz uma resposta satisfatória ou não. Precisamos definir o que queremos, quais são as linhas para acompanhar, qual o detalhe do dado que a gente quer acompanhar e investir em capacitação e treinamento”, explica.

•        Captação de dados

Para melhorar a coleta de informações é preciso ter objetivos claros para orientar a equipe assistencial, que está na ponta do atendimento ao paciente. No entanto, é preciso se atentar que o processo de captação de dados não pode tornar o cuidado mais burocrático e atrapalhar a relação do profissional de saúde com o paciente.

Existem tecnologias já em uso no mercado que podem colaborar. É o caso, por exemplo, de wearables como relógios inteligentes, que captam informações de saúde no dia a dia dos pacientes. Também existem ferramentas de captação de voz, utilizando inteligência artificial, que registram o diálogo do médico com o paciente, preenchendo o prontuário eletrônico automaticamente.

Jamil Cade, médico, professor e fundador da W3.Care, observa que essas tecnologias, aliadas ao uso da telessaúde, podem trazer ganhos para as instituições e na coleta de dados. Em casos de acompanhamentos clínicos, por exemplo, é possível fazer o atendimento à distância, principalmente em casos de câncer infantil.

“Muitos centros especializados estão nas capitais e logicamente todo o restante do Brasil tem casos. A gente consegue levar um bom atendimento ou pelo menos uma orientação às regiões que não tem centros. A telemedicina é muito importante nesse sentido para você levar acesso a uma população que não tem aquele profissional”, observa Cade.

O médico também observa que o uso da IA pode colaborar com os próprios médicos para trazer lembretes e alertas relacionados às consultas, que podem contribuir com o diagnóstico ou tratamento do paciente. Utilizando informações do prontuário eletrônico, é possível utilizar modelos que contribuam com o cuidado. Cade também defende a ampliação das discussões sobre telessaúde com outros profissionais, como enfermeiros e técnicos de enfermagem.

No entanto, a discussão sobre o uso da telessaúde para auxiliar na coleta de informações também esbarra na tecnologia. “As barreiras no Brasil são gigantes principalmente no quesito social. Muitos lugares não têm internet, por exemplo. Vilas de pescadores e áreas rurais têm mais essa dificuldade. Mas depois de superada, temos dificuldade do paciente ter uma cultura digital, como uma pessoa que nunca acessou um sistema de computador poder fazer a consulta”, observa o fundador da  W3.Care, que reforça o papel da educação nesse sentido.

 

•        Tecnologia, desafios ambientais e novas competências para líderes da saúde

O avanço exponencial das novas tecnologias e a urgência por atuações sustentáveis frente às demandas climáticas estão entre os desafios que pautam as agendas institucionais. No setor da saúde, que cumpre um papel social inerente ao negócio, esses movimentos ampliam as exigências por competências específicas dos profissionais, sobretudo, dos líderes da saúde.

Nossa sociedade tem sido descrita como frágil, ansiosa, não-linear e incompreensível. Traduzida do acrônimo BANI, esta definição demonstra a complexidade de um mundo que experimenta mudanças em maior volume e velocidade. Populações hiper conectadas, impactadas por informações que circulam velozmente, impõe aos líderes cuidados redobrados no que diz respeito a uma atuação que evidencie coerência entre discurso e prática.

Mais recentemente, o uso das Inteligências Artificiais Generativas (GenAIs) tem se consolidado como novo marco da revolução tecnológica. No setor da saúde, se por um lado a Inteligência Artificial (IA) viabiliza o diagnóstico de doenças, otimiza recursos e prioriza demandas, por outro, há a preocupação de que, dependendo do seu uso, pode trazer frieza e impessoalidade. É o que diz a Organização Mundial da Saúde (OMS) em seu recém-lançado “Guia de Ética e Governança da Inteligência Artificial na Saúde”.

A publicação destaca seis princípios éticos relacionados às GenAIs: proteção da autonomia humana, assegurando que profissionais tragam a palavra final em decisões no sistema de saúde, e não as máquinas; promoção da proteção e bem-estar das pessoas além do interesse público; garantia da transparência, explicabilidade e inteligibilidade da tecnologia para que profissionais da saúde tenham total compreensão do que estão utilizando e em quais condições a tecnologia foi desenvolvida; promoção da responsabilidade e prestação de contas da IA; garantia da inclusão e da equidade na aplicação e desenvolvimento da tecnologia; e, por fim, a promoção de uma IA responsiva e sustentável.

Liderar em meio a esse cenário exige boas doses de resiliência, muita disposição para mediar e resolver conflitos – incluindo os geracionais – e ampla escuta ativa. Aqui, cabe um olhar cauteloso  sobre a habilidade de ouvir atentamente: uma cultura justa, na qual os colaboradores se sentem seguros e livres para trazer suas sugestões, reportar eventuais falhas, erros e não conformidades, é o que potencializa – ou abre caminho – para a prática dessas competências.

Nesse sentido, retórica não basta: é preciso começar praticando com quem é de dentro. No ambiente assistencial, falamos que é preciso “cuidar de quem cuida”, o que pode tomar corpo por meio do fomento à diversidade e inclusão, oferta de cuidado aos colaboradores, acolhimento, prevenção de riscos, promoção de uma relação de confiança, transparência e meios de fortalecer uma cultura justa que estreita vínculos. Isso não pode ser visto como gasto, mas como investimento, que traz ganhos para o negócio e toda a sociedade.

Em janeiro deste ano o Fórum Econômico Mundial lançou um relatório em que aponta o calor extremo como o principal risco global no curto prazo. Em 2025, o Brasil será palco da 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP30). Mais que apontarmos culpados para as catástrofes humanitárias, é preciso assumir nosso papel como agentes de transformação.

Tempos desafiadores exigem criatividade e inovação. E inovar não significa, necessariamente, fazer algo novo, e nem pode ser visto como sinônimo de tecnologia, mas buscar formas diferentes de fazer. É tornar o ordinário extraordinário. Que possamos buscar na simplicidade do ordinário, começando por quem está a nossa volta, caminhos para os desafios do presente.

 

Fonte: Futuro da Saúde

 

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