Da boca para dentro: como a saúde oral
afeta o organismo como um todo
A falta de dentes
revela muito mais do que uma higiene bucal deficiente. Peças-chave do sistema
mastigatório, incisivos, caninos, molares e pré-molares estão associados a
funções que ultrapassam os limites da boca. Perdê-los, segundo pesquisas, é um
fator de risco não apenas para patologias orais, mas está relacionado à
mortalidade por todas as causas.
A conexão entre
periodontite e doenças cardiovasculares já é bem conhecida. Porém, mesmo na
ausência da infecção, os estudos mostram que a perda de dentes influencia o
risco não só de infarto e acidentes vasculares, mas de uma variedade de
condições, como desnutrição, obesidade, síndrome da fragilidade, depressão e
até demência.
Um dos maiores estudos
a relacionar o edentulismo — perda dental — à mortalidade em geral foi
realizado por pesquisadores chineses na Coreia do Sul, com 220.189 pessoas
acima de 40 anos. Os participantes foram separados por grupos, segundo o número
de dentes perdidos.
Após ajustar fatores
que poderiam influenciar o desenvolvimento de doenças, como tabagismo,
sedentarismo e histórico familiar, os pesquisadores da Universidade de Sichuan,
na China, descobriram que, entre aqueles com mais de três dentes perdidos, o
risco de mortalidade por todas as causas foi 1,19 vez maior, comparado a quem
tinha uma dentição mais preservada. Doenças metabólicas, digestivas e traumas
foram as principais razões de óbito nesse grupo.
<><> Hipóteses
A relação não é de
causa e efeito, esclarece Fabíola Bof de Andrade, pesquisadora de saúde pública
na Fundação Oswaldo Cruz, em Minas Gerais (Fiocruz Minas). Doutora em
odontologia, ela é autora de estudos que investigam os impactos da perda de
dentes na saúde em geral. "Há muitas pesquisas do tipo desenvolvidas ao
redor do mundo e entendemos que as evidências apontam para a existência de uma
associação. Porém, os mecanismos causais ainda não são completamente
elucidados, embora existam hipóteses."
A pesquisadora é
autora correspondente de um artigo publicado na revista Brazilian Oral
Research, que constatou uma relação estatística significativa entre o
edentulismo total e a mortalidade de idosos por qualquer causa. O estudo
incluiu 1.687 participantes a partir de 60 anos, acompanhados por 11 anos.
Desses, 47,2% não tinha nenhum dente natural na boca.
Feitos os ajustes de
fatores de risco, a expectativa de vida dos participantes foi menor naqueles
com edentulismo total. Ou seja, considerando pessoas com as mesmas doenças,
hábitos e condições socioeconômicas, a mortalidade era maior entre as que não
tinham dentes.
Publicada na Revista
Brasileira de Geriatria e Gerontologia, outra pesquisa recente, da qual Fabíola
Bof de Andrade é coautora, encontrou associação entre a ausência da dentição
natural e o risco aumentado de fragilidade — maior vulnerabilidade a quedas,
hospitalização, incapacidade e morte — moderada e severa. O resultado é
consistente com estudos de outros países que investigaram essa relação.
<><> Nutrição
Segundo a pesquisadora
da Fiocruz Minas, embora não existam, ainda, comprovações sobre os mecanismos
biológicos que expliquem a associação do edentulismo com o risco aumentado de
mortalidade em geral, alguns fatores podem estar por trás dessa relação. Entre
aspectos os mais citados por pesquisadores, está o nutricional.
A falta de dentes ou o
uso de próteses mal ajustadas podem alterar significativamente a dieta: além de
restringir a alimentação, impedem a absorção de micronutrientes essenciais à
saúde. Um estudo experimental com pacientes da Faculdade de Medicina Dental da
Universidade de Rutgers, nos Estados Unidos, encontrou um risco 21% maior de
desnutrição em pessoas com 10 a 19 dentes, comparado às com a dentição mais
preservada.
"A boca é a porta
de entrada para a ingestão de alimentos e líquidos", comentou a autora
principal do estudo, Rena Zelig, diretora do Programa de Mestrado em Nutrição
Clínica da Universidade de Rutgers. "Se sua integridade for prejudicada, a
capacidade funcional de um indivíduo de consumir uma dieta adequada pode ser
impactada negativamente."
A pesquisadora também
publicou, há três meses, um artigo baseado na análise médica de 1.765 idosos e
encontrou um aumento de 2% no risco de obesidade entre aqueles com menos de 21
dentes. Cada par oposto de molares ausentes foi correlacionado a uma chance 7%
mais elevada do distúrbio metabólico. "Há uma tendência de separar a saúde
oral da saúde geral, mas a boca é, na verdade, um espelho do organismo",
comentou, em nota, Steven Singer, coautor do estudo e presidente do
Departamento de Ciências Diagnósticas em Rutgers.
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Entrevista // João Palmieri, cirurgião-dentista
·
Como explicar a relação da perda de dentes
com o risco de mortalidade?
Não é uma questão de
causa e efeito. A perda de dente não causa a morte precoce, mas é fator de
risco. Assim como é fator de risco para debilidade mental, doenças metabólicas,
disfunções nutricionais, para subnutrição. A Organização Mundial da Saúde (OMS)
considera o edentulismo uma enfermidade, é uma doença. A dentadura pode até dar
conta social, mas, do ponto de vista funcional e nutricional, ela não é capaz
de devolver a força nem a coordenação necessárias para a mastigação. O primeiro
aspecto é esse. Hoje, nós também sabemos que o nervo responsável pela
mastigação, o trigêmeo, desempenha um papel-chave no cérebro. É como se esse
nervo exercesse um protagonismo no cérebro que, durante muito tempo, ficou
subestimado. Nós sabemos hoje que a mastigação de determinados alimentos
aumentam tremendamente o fluxo sanguíneo, um aumento de 20% na irrigação no
cérebro. E isso, principalmente, em uma área nobre chamada hipocampo, que é
responsável pelo armazenamento da memória, e também na região da amígdala, responsável
pelas emoções. É como se a mastigação fosse um coadjuvante importante da função
cerebral.
·
De forma geral, as pessoas têm noção de que
a saúde oral vai além da boca?
A importância de uma
mastigação eficiente, a importância de um equilíbrio mandibular, que eu chamo
conforto oclusal, para o bem-estar do indivíduo não deveria mais ser novidade.
No Japão, existe uma campanha de promoção de saúde oral desde 1989, a 8020, com
a premissa de que, para chegar aos 80 anos, é preciso ter, no mínimo, 20 dentes
na boca. Sabemos que o Japão vem batendo sucessivos recordes de centenários, e
o que se vê lá é o envelhecimento saudável, com qualidade de vida, autonomia,
mobilidade, com a mente preservada. Acho muito importante a classe odontológica
estar atenta sobre seu papel como profissional de saúde: a odontologia não é
uma disciplina que cuida de um órgão à parte, que não tem relação nenhuma com o
indivíduo. O cuidado bucal é o cuidado do indivíduo.
Fonte: Correio
Braziliense
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