Caso Silvio Almeida - Perdemos todas ou
ganhamos uma oportunidade de avançar?
E aí, o que é que você
acha?
Qual a sua opinião?
De que lado você está?
Foi assim, nas redes
sociais e fora delas, o último final de semana inteiro: de repente, era como
uma espécie de telecatch perverso no qual duas pessoas pretas ocupavam o
ringue. De um lado, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco. Do outro, o
ex-ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida. Nossa, pega a pipoca que vai
ter briga. O entretenimento vai ser bom.
E aí: de que lado você
está?
Espetáculo, racismo e
simplificação.
(…)
Pouco depois de as
notícias sobre as acusações de assédio sexual e moral supostamente cometido por
Almeida (envolvendo 14 mulheres, entre elas Franco) começarem a pipocar na tela
do meu celular, as mensagens de texto sobre o assunto também chegaram.
A contabilidade: um
amigo branco enviou uma. Cinco mulheres negras enviaram as outras. A
perplexidade atravessava todas, mas foi nas mensagens das mulheres pretas,
óbvio, que o assombro, a confusão e a tristeza transbordaram. Um grande “que
porra é essa?” generalizado.
E aí, o que vamos
fazer?
De saída, nenhuma
dúvida sobre levar a sério e investigar as denúncias: assédios não costumam ser
filmados. Assédios não costumam ter materialidade. Assédios fazem parte de
nosso passado, que não deve ser romantizado. O machismo e o patriarcalismo
estruturam nossa experiência histórica.
Ao mesmo tempo, duas
das mulheres que escreveram para mim – pesquisadoras de relevante participação
no debate público – colocaram uma questão que deve incorporar essa situação:
não estaríamos discutindo a partir da perspectiva de um feminismo branco?
As críticas de
mulheres negras ao movimento Me Too (e Me Too Brasil, para onde as denúncias
foram enviadas) são muitas, começando pelo apagamento midiático de sua
fundadora, a ativista nova iorquina Tarana Burke. Nesse texto, a arquiteta
Stephanie Ribeiro fala sobre o incômodo dessa captura. Mas é justo reduzir o
movimento a isso?
Apresentava-se ali a
pedra na qual continuamos, ainda agora, a topar: não estamos falando de um
homem qualquer, mas de um ativista de pele retinta que estava presente no alto
escalão do governo federal. Um ativista de pele retinta que é uma referência para
milhões de pessoas negras no país.
E agora, como devemos
olhar para esse homem negro tão presente em nossas telas?
Bugamos todas, como
sintetizou a poeta, cantora e atriz Elisa Lucinda.
Para além do debate
que aconteceu no meu circuito particular de
mensagens, me dediquei também a ler e ouvir o que outras mulheres negras
escreveram e refletiram sobre o caso. A professora Bárbara Carine Soares Pinheiro; as escritoras Marilene Felinto e Eliana Alves
Cruz; a jornalista Flávia Oliveira; a também pesquisadora, ativista e escritora
Carla Akotirene, a citada Elisa Lucinda; a artista e pesquisadora Ana Lira, com
quem divido esse texto (mais à frente).
Tento aqui produzir,
com a ajuda de todas elas em suas declarações públicas, um documento que
reúne parte desse momento que é sim de
assombro, confusão e tristeza, mas não só. É de um aprendizado radical sobre nós mesmas e de como muitas vezes
podemos assimilar práticas que criticamos na branquitude.
Bárbara, que em seu
Instagram se apresenta como @uma_intelectual_diferentona, postou, horas depois
de o caso vir à tona, que era “um momento triste envolvendo os sonhos de
representatividade negra de cada um de nós”.
Depois, que não tinha
vitalidade para gravar um vídeo. “Estamos de luto. Todo brasileiro com
consciência racial na última noite não dormiu (…) os movimentos sociais negros
retrocedem anos em luta em um único dia”, diz parte do texto.
Primeiro, eu curti o
post.
Depois, descurti.
Isso porque reli
posteriormente e percebi que eu não
concordo totalmente com o que está ali,
e o meu coração-emoji meta-eletrônico poderia referendar justamente o
contrário.
Não: por mais peso e
estima que o professor Silvio Almeida tenha na comunidade preta, me parece um
exagero falar em um retrocesso de movimentos sociais negros que há mais de um
século brotam pelo país (penso aqui na Sociedade Floresta Aurora, com mais de
150 anos). São coletivos que mudaram,
através de muito esforço, políticas públicas na saúde, educação, nos esportes,
na Justiça, etc.
Carla Akotirene,
autora do fundamental livro “Interseccionalidade”, também expressou nas redes a sua dor em ver
dois nomes ligados ao antirracismo em um contexto de crime sexual, denúncia e
exoneração, como pontuou.
“A comunidade negra
perde”, escreveu Carla, dizendo ainda que “no dia de hoje, a esperança em
Silvio Almeida está adiada”. Lucinda, no início do seu importante vídeo, diz:
“Aquela sensação de que andamos para trás”.
Compreendo o que
todas, mulheres que sigo e respeito, trazem. Continuarei mais à frente o
diálogo com elas. Entendo que Silvio é um rosto público e portanto coletivo.
Mas fico pensando até se é justo que o impacto de um erro pessoal (ou melhor,
de um crime, se confirmado), por mais
retumbante que seja, leve de rodo o que milhares de pessoas negras vêm
construindo há tanto no país. A maioria delas de forma invisibilizada,
inclusive.
Será que a nossa
sensação de fim de festa, de enterro, de luto, do “perdemos todas” também não é
uma forma de nos cobrarmos uma infalibilidade? A máxima do “preto não pode
errar” não estaria gritando entre nós, como forma inconsciente de atender a uma
expectativa outra?
Eu, pessoalmente, não
admito ser cobrada pelos erros de ninguém, incluindo os de pessoas negras, principalmente quando essa cobrança vem de
pessoas brancas. Para elas, prefiro devolver
o espelho. Que cobrem coletivamente os erros dos seus. No geral, apontam ávidas
para qualquer pessoa de pele escura que alcança lugares de destaque.
Escrevi justamente
sobre esse fenômeno – os diferentes pesos que os erros e crimes possuem a
depender da cor de quem os comete – quando falei sobre outro episódio
envolvendo a ministra Anielle Franco.
Ali, em outubro de
2023, sua assessora Marcelle Decothè realizou postagens não compatíveis com o
cargo que ocupava. Ganhou as redes bolsonaristas e logo foi demitida. Um erro grande, esse sim, do ministério.
Com Marcelle,
aconteceu o fenômeno apontado por Carla Akotirene em seu citado post lamentando
as denúncias de assédio: “em administração pública tanto os gestores negros,
como gestoras negras têm sido considerades pelas branquitudes figuras fracas do
ponto de vista técnico, deslumbradas com o cargo e acusados agora, de assédio
sexual”.
“Nós sabemos que
pessoas negras em espaços de poder incomodam sim, são muito atacadas”, comentou
Flávia Oliveira no podcast O Assunto, lembrando que a pasta de Silvio, a dos
Direitos Humanos, era bastante cobiçada.
Meu incômodo com o
clima de grande funeral foi finalmente apaziguado a partir de um post da
escritora Eliana Alves Cruz. “Alguns erros NINGUÉM pode cometer”, escreveu – e
estou mantendo as maiúsculas porque também entendo que elas são absolutamente
necessárias nesse caso.
A autora seguiu: “Não
estou dando conta da quantidade de pessoas achando que uma briga aguerrida de
quase 400 anos, que teve malê executado, líderes de revoltas decapitados, gente
à rodo morrendo pra gente andar … se acabou.”
Eliana toca aí num
ponto fundamental e que deve nos fazer pensar se não estamos confundindo a tal
representatividade (essa palavra que o neoliberalismo ADORA) com heroísmo – ou
o que ela chama de culto excessivo e irracional à personalidade.
Colocar uma capa
vermelha sobre os ombros de outrem é uma forma de desumanização, de pressupor
infalibilidade, de transferir um fardo que deve ser coletivo para ser
sustentado por um único CPF, ainda que este esteja à frente de um cargo
público.
• É tudo homem?
Concordo inteiramente
com Bárbara quando ela chama atenção para o perigo de universalizar a crítica a
Almeida a partir do gênero. Não é possível
simplificar que “é TUDO HOMEM”, como ela coloca, como se os brancos e negros
experimentassem a mesma estima social. Sabemos que não. Nunca esqueci quando o
Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou, em 2021, que 100% dos homens
mortos pela PM baiana eram pretos.
Mas entender que “raça
vem antes” sem interseccionalizar esse ponto de vista pode solapar o peso que o
domínio masculino tem sobre cada uma de nós. Como bem disse Elisa Lucinda em
seu vídeo, os homens recebem uma mesma educação na qual o corpo feminino está,
supostamente, sempre à disposição. É um romantismo, diz ela, achar que “nossos
heróis” não estão suscetíveis a esse fenômeno.
“Nossos heróis”. Pois
é.
Mais: o mesmo poder
que coloca um alvo nas costas de pessoas negras, é também um dos ativos mais
comuns nos casos de assédio moral e sexual. Por mais que doa na carne – e dói
um bocado – não é aceitável colocar qualquer tipo de pano quente nas denúncias,
diminuir 14 depoimentos.
Nesse sentido,
Marilene Felinto é direta ao afirmar, em seu último artigo para a revista Gama,
que “Silvio Almeida foi demitido antes de ter direito a sua defesa não por ser
negro, mas porque ocupava um cargo de confiança”. Segundo ela, “o caso ganhou
tamanha dimensão pública não pela condição de negritude de Almeida, mas por
tratar-se de autoridades públicas de grande visibilidade”.
Ouvi e li muitas
pessoas fazerem comparações absurdas entre Almeida e o presidente da câmara dos
deputados Arthur Lira (PL-AL), acusado de violência doméstica pela ex-mulher.
Como se a queda de
Almeida se desse por sua cor – e a permanência de Lira à frente do congresso
também. Como se o presidente Lula simplesmente pudesse demitir Lira. Uma
comparação sem sentido e que termina contaminando o debate com espantalhos.
É importante lembrar
que Silvio Almeida citou interesses do Me Too Brasil em licitações envolvendo o
Ministério dos Direitos Humanos, um fato que sua defesa utiliza no processo
agora movido pelo ex-ministro contra a organização. Há muita coisa ainda para
vir à tona.
E agora, o que vamos
fazer?
Entendo que é tempo
de, realmente, nos escutar. Não precisamos todas estarmos de acordo. Estamos
construindo políticas, e o dissenso é parte importante disso.
<><> Cedo
agora a palavra a Ana Lira, a quem agradeço a parceria nesse debate espinhoso e
necessário:
Quando eu olho para
esta situação, eu percebo que o nosso desamparo, evidenciado a plenos pulmões
nas redes sociais e veículos de comunicação, é resultado das lacunas que temos
enquanto coletividades negrodescendentes.
Este sentimento de
perda coletiva é derivado do fato de não observarmos que estamos em lugares de
poder, independente da posição que ocupamos na sociedade. Eu escrevi isso sobre
no texto que publiquei no livro “Negros na Piscina”, da editora Fósforo.
Na escrita do texto eu
digo que “como resultado da operação colonial, ouvimos que precisamos ocupar
espaços de poder e de decisão, como se estivessem fora do lugar em que estamos.
Sinto que, primeiramente, precisamos admitir que o lugar em que qualquer um de
nós está é um lugar de poder e de decisão porque dele movemos muitas coisas e
escolhemos como nos articular”.
Dito isso, nós temos
investido em organização para levarmos mais pessoas aos espaços de poder e
decisão institucionalizados, ter presença negra altiva e centrada em
negociações estratégicas no mundo inteiro.
Mas não construímos
uma quantidade suficiente de estruturas coletivas, sociais e institucionais de
acompanhamento e acolhimento para responder às situações quando algumas das
nossas lideranças falham gravemente e isso desestabiliza estes lugares tão sonhados.
Além disso, por não
considerarmos que, mesmo estando ausente do lugar de decisão institucional,
como um ministério, também temos poder e possibilidade de atuação, as nossas
forças se esvaem diante de ocorridos como os da semana passada.
Tenho defendido entre
as amizades que, dos lugares em que as pessoas estão, em qualquer ponto do
país, é possível construir alternativas de presença, sejam elas como grupos ou
instituições (para os cenários em que a institucionalização é necessária).
E, neste momento,
fortalecer uma conexão nossa é importante porque temos:
a) de um lado um grupo
de mulheres (negras e não-negras) que precisam de escuta, amparo e
acompanhamento para retomarem suas vidas e reconstruírem confiança nos lugares
em que precisam estar. Entre elas uma líder negra, Anielle Franco, que no
último ano passou pelas emoções intensas de ver revelados os assassinos de sua
irmã, Marielle, e ter que reconstruir uma base de segurança em seu próprio
estado de nascença, diante da reconfiguração de forças que a revelação trouxe.
O seu silêncio, diante de tantas demandas emocionais derivadas de excesso de
exposição, adicionado à necessidade de continuar trabalhando, não é difícil de
entender;
b) de outro, um líder,
professor e intelectual negro, que é acusado de assediar essas mulheres
reproduzindo, em seu cotidiano, os mesmos gestos protagonizados pelos galãs dos
filmes romântico-eróticos cisgêneros que enchem as telas brasileiras 18+ e os manuais
e revistas eróticas (Júlias, Sabinas e afins) ainda vendidas em bancas e sebos
de qualquer lugar do país. Repete o gesto, infelizmente, sem considerar os
desdobramentos das atitudes no lugar de responsabilidade que ocupava, na vida
da sua própria família e nas relações de confiança com suas colegas.
Pode parecer estranho
afirmar isso, mas, se adotamos uma perspectiva negra não-patriarcal, as
instituições negras de suporte deveriam acolher todas as pessoas envolvidas
neste processo.
Acolher as mulheres,
que não deveriam estar dando entrevistas e divulgando relatos sozinhas em
grandes veículos e portais de notícias, sem um amparo mais estruturado e sem
garantia de acompanhamento real a longo prazo; e receber, também, o ex-ministro
para um assessoramento e acolhimento igualmente sérios.
Para que ele possa
olhar e reconhecer verdadeiramente esses danos e ter a possibilidade de
construir um outro caminho.
Temos exemplos de
situações semelhantes na trajetória dos movimentos negrodescendentes que
poderiam nos ajudar a elaborar melhor o que aconteceu e ancorar as práticas dos
grupos de apoio.
Contudo, como mal
temos a oportunidade de descobrir como funcionamos entre pessoas
negrodescendentes, no Brasil, porque nossas convivências mais próximas são logo
questionadas como “projetos identitários”, “células de protofascismo (ouvi essa
uma vez)” e outros racismos afins, acabamos investindo mais no movimento de
“ocupar os lugares” do que no ajuste fino das sabedorias que permitam que
exerçamos este lugar de poder sem autossabotagem.
Não vamos resolver
nossos dilemas sofrendo sozinhas.
Esta é uma das
possibilidades de reflexão que precisamos fazer, neste momento, enquanto
coletividade ampliada para que, mais para frente, consigamos atuar e responder
com alteridade a situações emblemáticas como essa, em vez de sucumbirmos ao
desespero e a desesperança ao nos depararmos com acusações que um dos nossos
representantes assediou mulheres do seu
convívio e sabotou o próprio caminho reproduzindo gestos vendidos em manuais
para galãs brancos.
E falo em instituições
e grupos de forma mais estruturada e ampliada porque acredito que trechos do
texto que Winnie Bueno publicou na Elle Brasil, afirmando o cansaço da mulher
negra em ter que resolver tudo, da violência ao acolhimento de si mesma, é muito
pertinente.
Eu quase não colaborei
com estas reflexões porque estou me sentindo igualmente exausta, travada pelas
lembranças de experiências semelhantes e sem respostas para muitas coisas, mas
a conversa nos solicita parceria e não achei justo deixar uma grande amiga,
Fabiana Moraes, sozinha, neste debate.
Não vamos resolver
nossos dilemas sofrendo sozinhas, sozinhes e sozinhos, em casa, mas também não
andaremos crendo que nossos sonhos foram destruídos.
Precisamos conseguir
olhar para os grupos e instituições negrodescendentes que temos, no Brasil,
compreender quais as suas atribuições e como podem conduzir este processo de
modo restaurativo, em vez de adotarmos as mesmas premissas dos sistemas
tradicionais em vigor que expõem e abandonam.
E, quando menciono
isso, acho importante falar que entendo que existem diversas instituições
negras de direitos humanos no Brasil, mas o foco delas é cuidar das relações da
violência racista de estado e da violência racista da branquidade contra
pessoas negrodescendentes.
Contudo, quando o
problema ocorre entre negrodescendentes, ainda mais atuando no alto escalão,
parece que não desenvolvemos a sistematização de um repertório que nos caiba,
nos cuide e nos transforme para um lugar menos refém do que a neocolonialidade
ainda nos oferece.
Fonte: Por Fabiana
Moraes e Ana Lira, em The Intercept
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