Brasil: Que fazer diante da militarização
do cotidiano?
É da existência do
social a dimensão militar, religiosa e econômica. Ela compõe realidade
tripartite que se repete em todas as formações societais. Logo, a defesa
responsável da sociedade civil está na ordem oposta ao esforço de subtração da
cartografia militar do território social. Ou seja, minha escritura está
distante do antimilitarismo contemporâneo. Por certo, para a defesa da
sociedade é imprescindível a presença de aparato militar. A questão, portanto,
é política. Exatamente porque é fundamental defender a sociedade civil da
descarga beendocolonizaçãolicosa do poder militar, dado que o corpo social não
pode ser de ordem semelhante ao campo de guerra. A proteção da sociedade é
prerrogativa da política civil. O militar deve, disciplinadamente, executar a
política de defesa. Obviamente, não trago uma questão nova, a subordinação do
militar ao político está no horizonte da institucionalidade moderna. Assim
sendo, o grau de liberdade da sociedade civil é inversamente proporcional ao de
autonomia militar no interior do Estado Democrático de Direito. Em substância,
o sonho militar de sociedade, ou melhor, a militarização do cotidiano pesa
sobre a democracia como um pesadelo distópico. O processo de modernização das
sociedades percorre caminho espiral de inclinação paradoxal, que polariza
emancipação e regulação dos corpos. Dessa forma, cabe à sociedade civil
questionar, amiúde, o campo de militarização do cotidiano, que inviabiliza a
existência de democracia democrática.
O avanço da
militarização nas sociedades modernas é um fenômeno geral que se amplia a
partir da Era dos Impérios com a formação do exército de massa e a aplicação do
serviço militar obrigatório. A partir do século XX, com as duas guerras totais,
a questão militar passa a compor parte significativa da economia política e a
participação de militares fardados ou à paisana nos governos tornou-se rotina
na maioria dos países. De forma que o campo civil e militar desde então
apresentam uma hierarquia invertida, na qual os interesses políticos civis
estão subordinados à economia de guerra. Efetivamente, a militarização consiste
na ausência de distinção entre a sociedade civil e a militar, também, na
subalternidade do corpo paisano ao militar. Não é tudo. Há distópico afã de
transformação das instituições civis em caserna. Trata-se de progressão da
ideia-mágica que consiste na substituição da democracia pela disciplina
militar. Proposição posta com base na seguinte sentença: imponha o rigor
militar nas escolas, nos presídios, na segurança pública e todos os males
sociais serão resolvidos. É o sonho militar de sociedade já descrito por
Michael Foucault, que desdobra na crescente militarização do cotidiano a fim de
contornar, tresloucadamente, a incerteza do turbilhão moderno sob a égide da
ampliação da reprodução de capital e o medo da insurreição das massas de
excluídos.
A militarização da
sociedade civil não é a imposição de poder de uma casta fardada ou a emergência
de “partido militar”, mas algo mais difuso. Trata-se da sobreposição da
logística militar sobre a economia política, da ética militar sobre a civil.
Ela está imbricada ao diapasão capitalista contemporâneo. Fato, sem a pólvora
dos canhões abrindo todas as barreiras para o fluxo do capital, o capitalismo
não seria a tal “destruição criativa” que indicia o tom revolucionário da
modernidade. O capitalismo tardio do pós-guerra desloca a militarização dos
campos de batalha para o cotidiano. A militarização total é o esbatimento da
sociedade civil. É endocolonização, isto é, a colonização ou subtração da
cidadania operando dentro do próprio território nacional. Sem a destruição
constante das bases dos direitos de bem-estar social é impossível ampliar a
acumulação necessária de capital. Portanto, a militarização do cotidiano é,
acima de tudo, processo de sujeição dos corpos a fim de torná-los dóceis e
produtivos. Ela resulta primeiramente de ação truculenta de repressão sobre a
carne humana para depois assumir a forma de desejo dominante.
É a perpetuação das
práticas belicosas, nomeada Guerra Pura por Paul Virilio. Em poucas palavras, é
a preparação infinita para uma guerra que, ordinariamente, combate fantasmas.
Ela despolitiza e empobrece a sociedade civil em benefício da economia de guerra,
que produz e concentra capital nas mãos dos senhores das armas e das
Nações-Império. É a guerra nomeada hoje de 4ª geração que opera em teatro
belicoso total e totalizante, em que todos espaços existenciais se transformam,
rapidamente, em campo de batalha. Ela pode operar como lawfare (guerra
jurídica), bombas de contrainformação (fake news), contrarrevolução molecular
(guerra cultural) e, também, na guerra contra as drogas (sociedade de
vigilância). Enfim, é a guerra de todos contra todos que opera no cotidiano e
que impulsiona o avanço da extrema direita eendocolonização do Estado de
Exceção. Basta olhar panorâmico para identificar o medo e a corrosão das
democracias na contemporaneidade.
Diante do exposto,
sigo na escritura para descrever a militarização do cotidiano no território
nacional a partir de olhar crítico-sensível. O Brasil ingressa na modernidade
capitalista a partir do final do século XIX arrastado por uma república da
espada, ou seja, a militarização da sociedade civil marca a genealogia da
história política republicana e é, também, o estorvo que impede a
democratização do país no tempo presente. É a militarização da sociedade civil
que impossibilita a completa transformação das instituições militares no
“Grande Mudo”. A naturalização do corpo militar como ator político é uma
realidade que se estende ao longo da temporalidade republicana. De fato, o
Brasil – após Estado Monárquico baseado na formação de sistema escravocrata – seguiu
mudança sem transformação significativa, configurando uma República de
Fazendeiros que, independentemente, da modernização capitalista ainda carrega
no campo o poder do agronegócio e na política, o do homem fardado.
O sonho militar de
sociedade está no horizonte do imaginário conservador do país. Sem dúvida, não
resulta de acidente ideológico a relação entre o desejo militarizante de
sociedade que domina regiões do Brasil e a presença de economia baseada na
produção agroexportadora. O Brasil nasce independente como uma nação de
fazendeiros que deve assegurar a ordem com a contenção de uma massa de negros
escravizados distantes das prerrogativas da cidadania liberal. Nesse quadro
histórico, a encolonização foi a geopolítica necessária para salvaguardar a paz
dos senhores em detrimento da formação de nação, verdadeiramente, democrática e
cidadã. Não é sem razão que os inimigos do Estado-nação brasileiro de ontem e
de hoje são antes corpos nacionais do que estrangeiros.
É o inimigo interno
que mobiliza as forças de defesa nacional. A militarização do cotidiano
nacional resulta de formação de nação, profundamente desigual e, naturalmente,
permeada pelo medo. No passado o medo da massa de negros escravizados e no
presente a de afro-brasileiros marginalizados da cidadania consignada nas
promessas da Constituição Cidadã. O sonho militar de sociedade inscreve o
projeto político das elites e da classe média para dirimir o medo e a
insegurança que impera no território brasileiro. A questão militar,
particularmente no Brasil, atravessa o corpo fardado, porque essencialmente
compõe a militarização da identidade e da consciência coletiva nacional. O
processo brasileiro de militarização da sociedade civil, ou seja, da política
corresponde à potência dissuasória para subtrair a emergência de revolução
molecular e dos conflitos de raça e classe. Objetivamente, as forças
tradicionais da elite branca desencadeiam o medo da insurreição das forças
populares e o poder endocolonial é, imediatamente, acionado.
Três acontecimentos
importantes evocam nossos laços militarizantes no tempo presente: a
bolsonarização da política, escolas cívico-militares e a expansão do
armamentismo. São frutos ruins à democracia advindos da mesma árvore. A
bolsonarização da política corresponde ao deslocamento de parcela significativa
de militares fardados ou à paisana para o centro da política civil. A
transformação rápida das escolas públicas em cívico-militares – com a presença
de militares da reserva a fim de impor a disciplina militar sobre a comunidade
escolar – corrobora o sonho militar de sociedade. E, finalmente, a expansão da
posse de armas como afirmação da liberdade do “eu” acuado encerra a
militarização do cotidiano, corpos paisanos com armas de guerra deflagram forte
movimento armamentista como parte importante da rarefação do Estado Democrático
de Direito.
É impróprio o debate
sobre a eficiência da militarização sobre os males nacionais. A questão é de
outra ordem, visto que o Brasil quando intensifica a militarização do cotidiano
adentra no transpolítico. Isto é, no esgotamento da política em nome da hierarquia
e da disciplina. A política é baseada no diálogo horizontal, no conflito e na
soberania popular. Não há democracia no interior de uma sociedade militarizada.
O sonho militar de sociedade é o desaparecimento da política com a substituição
da palavra pelas armas e do conflito pela guerra. Em nome da engenharia social
de matiz neoliberal e pragmática impõe-se o silêncio e a negligência sobre a
perigosa militarização da sociedade civil no Brasil. Ela decorre,
essencialmente, de forma social escravista que persiste na longa duração e que
arrasta ideologicamente a política nacional para o fascismo de cor tão bem
descrito por Muniz Sodré e que revela, objetivamente, o pesadelo de uma
sociedade desigual, equilibrada e dócil. O fascismo de cor que emerge no Brasil
republicano conjuntamente com a transformação do militar em ator político tem
suas bases no medo dos movimentos populares organizados. Uma sociedade civil
realmente autônoma e democrática não tem medo. O Brasil é militarizado porque
tem medo.
Fonte: Por Ronaldo
Queiroz de Morais, em Outras Palavras
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