As inquietantes dúvidas sobre condenação
perpétua de serial killer de bebês no Reino Unido
Lucy Letby se tornou
possivelmente a serial killer mais conhecida dos tempos modernos.
Condenada por matar
sete bebês sob seus cuidados e tentar matar outros sete, a então enfermeira
neonatal recebeu uma pena de prisão perpétua, para morrer na prisão.
Mas, há algum tempo,
um número cada vez maior de especialistas tem levantado preocupações sobre os
julgamentos dela, alegando que evidências vitais podem ter sido mal
interpretadas.
Outros insistem que
grande parte deste debate é equivocado — e não há evidências que mostrem que os
julgamentos foram de alguma forma injustos ou não confiáveis.
Um inquérito público
sobre como o Hospital Countess of Chester, na Inglaterra, onde ela trabalhava,
e o NHS, serviço público de saúde britânico, lidaram com o caso está marcado
para começar em 10 de setembro.
O julgamento de Letby
por homicídio, no ano passado, foi um dos mais longos da história da Justiça
britânica, após uma investigação policial de seis anos — e foi seguido por um
novo julgamento, depois que não foi possível chegar a um veredicto sobre as alegações
relativas a um bebê.
Seis testemunhas
técnicas da área médica e vários ex-colegas testemunharam contra ela. Milhares
de documentos foram apresentados pela promotoria, e examinados durante vários
meses de análise minuciosa.
O processo era
abrangente, incluindo resultados de exames de sangue que mostravam que dois
bebês haviam recebido uma overdose de insulina; raios-X que indicavam que ar
havia sido injetado em mais sete; enquanto outros haviam sido alimentados à
força com leite.
Além disso, havia as
anotações encontradas na casa de Letby que pareciam conter confissões — uma
delas dizia: "Eu sou má" — e as frequentes buscas que ela fazia nas
redes sociais pelas famílias dos bebês que haviam morrido, o que levou os advogados
a argumentar que a enfermeira demonstrava uma curiosidade mórbida em
testemunhar o efeito que ela teve em suas vidas.
Uma escala de trabalho
também mostrou que ela estava de plantão em cada morte suspeita ou colapso
entre junho de 2015 e junho de 2016.
A escala era uma parte
fundamental do processo — um símbolo visual marcante da acusação contra ela.
Mas vários estatísticos questionaram publicamente sua utilidade.
Um deles é Peter
Green, professor de estatística e ex-presidente da Royal Statistical Society.
"A tabela parece
ser muito convincente, mas há uma série de problemas com ela", ele disse.
"Uma coisa
importante é que ela descreve apenas 25 dos eventos negativos que aconteceram
neste período."
"Não inclui
nenhum dos eventos que aconteceram quando Lucy não estava trabalhando."
Houve pelo menos seis
outras mortes e vários colapsos.
Green afirmou que a
tabela também não reflete o fato de que Letby estava trabalhando em turnos
extras.
"É algo natural
do ser humano. Todos nós vemos padrões que não existem", acrescentou.
"O perigo é que
essa evidência pode ser muito convincente para quem é leigo, e interpretada de
forma exagerada."
Outra parte crucial
dos argumentos apresentados pela promotoria foram amostras de sangue de bebês
que entraram em colapso com baixo nível de açúcar no sangue.
Eles apresentavam
níveis excepcionalmente altos de insulina, e baixos níveis de uma substância
chamada Peptídeo-C.
Essa combinação
geralmente só é vista quando o corpo ingere insulina sintética, levando à
acusação de que Letby havia envenenado deliberadamente os bebês ao adicionar a
substância à alimentação deles no berçário.
Alan Wayne Jones,
especialista em toxicologia forense, é um dos que contestou os resultados.
Ele ressaltou que o
exame usado mede a reação do corpo à insulina, em vez da substância em si.
"O problema é que
o método de análise usado [nestes dois casos] provavelmente era perfeitamente
bom do ponto de vista clínico, mas não do ponto de vista da toxicologia
forense", afirmou.
"Esse exame não
consegue diferenciar entre insulina sintética e insulina produzida pelo
pâncreas."
O próprio site do
laboratório afirma que, se houver suspeita de insulina sintética, os resultados
devem ser verificados externamente por um centro especializado.
Os médicos do Hospital
Countess of Chester não fizeram isso porque, felizmente, ambos os bebês se
recuperaram.
E, na época, não havia
suspeita de dano intencional.
Jones disse que não
tem dúvidas de que eles sofreram quedas bruscas nos níveis de açúcar no sangue,
mas que poderia haver outra explicação natural para o fato de isso ter
acontecido.
Outras pessoas também
questionaram a acusação de que Letby injetou ar nos vasos sanguíneos dos bebês
com consequências muitas vezes fatais.
Foi constatado que
cada um deles tinha bolhas de ar no sangue, o que é conhecido como embolia.
Vários médicos também
contaram ter testemunhado erupções cutâneas incomuns e repentinas nesses bebês.
A promotoria citou um
artigo sobre o fenômeno, escrito em 1989 pelo neonatologista canadense Shoo
Lee, que descreveu uma erupção cutânea característica de vasos sanguíneos rosa
contra a pele azulada como um indicador de embolia gasosa.
Mas, em abril, durante
a audiência de Letby do Tribunal de Apelação, Lee falou pela defesa.
A defesa alegou que a
erupção cutânea característica que ele havia descrito não parecia ser aquela
descrita pelas testemunhas no processo.
Lee não foi chamado no
julgamento original. A defesa não chamou nenhuma testemunha técnica — apenas a
própria Letby e o encanador do hospital, que testemunhou que havia problemas de
drenagem na unidade.
Em contrapartida, seis
testemunhas técnicas depuseram por parte da acusação.
Grande parte do
processo se baseou no depoimento do médico Dewi Evans, pediatra com décadas de
experiência como testemunha técnica.
Ele disse que havia
lido 18 artigos de pesquisa no total sobre embolia gasosa, destacando
diferentes indicações.
Em outras palavras,
não estava se baseando apenas no relatório de Lee.
Ele também destacou
que suas descobertas foram respaldadas no tribunal por um radiologista e um
patologista neonatal.
E acrescentou que os
casos na escala estavam lá porque, depois de revisar todas as mortes e
colapsos, ele acreditou que só aqueles eram suspeitos ou inesperados.
Ele disse ainda que,
naquele momento, não sabia que Letby havia estado de plantão — e que isso só
foi revelado depois pela Polícia de Cheshire.
Evans também
argumentou que nenhuma das pessoas que estão levantando preocupações havia
visto os prontuários dos pacientes.
O Tribunal de Apelação
passou três dias ouvindo os argumentos da defesa e da acusação, mas acabou
rejeitando o caso — um documento de 58 páginas explica sua conclusão.
No caso do depoimento
de Lee, o tribunal concluiu que Evans havia se baseado em inúmeras fontes para
chegar às suas conclusões, incluindo outros artigos de pesquisa, exames de raio-X
e opiniões de outros especialistas.
O Crown Prosecution
Service, o Ministério Público britânico, disse que dois júris e três juízes do
Tribunal de Apelação já "haviam revisado as evidências contra Lucy Letby,
e ela foi condenada por 15 acusações distintas após dois julgamentos separados".
"Em maio, o
Tribunal de Apelação indeferiu a autorização para Letby recorrer em todos os
aspectos — rejeitando seu argumento de que as provas periciais da acusação eram
falhas", acrescentou um representante.
Nada disso convenceu
aqueles que lutam para que o caso seja julgado novamente — eles citam ocasiões
anteriores em que o Tribunal de Apelação errou.
O parlamentar David
Davis tem um histórico bem-sucedido de defesa de casos de erros judiciais.
Mais recentemente, ele
ajudou Mike Lynch, o empresário britânico da área de tecnologia que venceu uma
batalha legal de 12 anos nos EUA, mas morreu depois que seu iate naufragou no
início deste mês.
Davis disse que
começou pensando que Letby era culpada.
Suas dúvidas começaram
em maio, depois que ele levantou uma questão na Câmara dos Comuns sobre por que
um artigo crítico em uma revista americana não tinha permissão para ser
publicado aqui.
Isso foi antes do
segundo julgamento, e a legislação britânica não permite a publicação de nada
que possa influenciar o júri.
"Foi só pelo fato
de ter recebido ligações qualificadas de pessoas que realmente sabem sobre
estatística, medicina, ciência, direito, e nunca tinha acontecido nada parecido
antes", ele contou.
"Comecei a
pensar: é um crime terrível, mas se eles erraram, é um erro judicial
terrível."
Davis disse acreditar
que outras possibilidades para as mortes poderiam incluir a falta de
funcionários e treinamento na unidade e um surto infeccioso, possivelmente
ligado à drenagem defeituosa discutida no julgamento.
"Todos nós
achamos mais fácil acreditar que um vilão matou pessoas do que um sistema ou um
ato aleatório", observou.
Agora, ele está lendo
milhares de documentos detalhando o julgamento antes de tomar uma decisão sobre
se deve levar o caso adiante e pressionar para que a Comissão de Revisão de
Casos Criminais se envolva.
Davis disse que já
acredita que o julgamento foi falho, mas isso por si só não significa que Letby
não seja culpada.
Ele acrescentou que
não vai levar o caso adiante a menos que chegue à conclusão de que ela
provavelmente era inocente.
Alguns dos pais dos
bebês que morreram falaram sobre sua dor ao ver dúvidas sendo levantadas sobre
as condenações.
Davis afirmou que
pensa sobre isso, e entende que eles passaram por anos de sofrimento.
Mas disse que, se for
comprovado que a condenação não é segura, é importante analisar outros motivos
que podem ter levado ao que aconteceu.
"Se erramos, não
é só porque colocamos uma jovem na prisão pelo resto da sua vida efetivamente,
é também porque não respondemos por que esses bebês morreram, e por que outros
bebês podem morrer", explicou.
Mas outros questionam
a base para alegações de que o julgamento foi falho.
Tim Owen trabalha há
40 anos como advogado de defesa e atuou em muitos casos que encaminhou com
sucesso ao Tribunal de Apelação e à Comissão de Revisão de Casos Criminais.
Ele também é
coapresentador de um podcast jurídico, Double Jeopardy, que analisou o debate
sobre o julgamento de Letby.
Muito foi falado sobre
o fato de que o processo contra Letby se baseou em evidências circunstanciais —
e ninguém definitivamente a viu fazendo mal a nenhum dos bebês.
Owen acredita que este
ponto é muito menos relevante do que muitos podem pensar.
"Algumas pessoas
acreditam que evidências circunstanciais não são realmente evidências",
ele disse.
"Isso
simplesmente não é verdade."
"Um caso
circunstancial pode ser um caso poderoso, mas para entendê-lo, é preciso
analisar a totalidade."
"Você não pode
simplesmente escolher um pedacinho e dizer: 'Ah, olha só isso, não é confiável'
ou 'Isso não prova nada'."
Owen disse que ninguém
sabe exatamente por que as duas testemunhas técnicas instruídas pela equipe de
defesa de Letby nunca foram chamadas.
Uma conclusão, segundo
ele, teria que ser que a defesa decidiu que o testemunho não ajudaria seu caso.
Ele enfatizou que não
tem uma opinião pessoal em relação à culpa ou inocência de Letby — e destacou
que havia lidado com muitos erros judiciais, mas acrescentou que, até o
momento, não há provas de que este seja um deles.
"É preciso haver
algo novo e convincente que questione a teoria fundamental apresentada ao júri
em dois julgamentos", ele disse, acrescentando que até agora não viu isso.
"Estou vendo
muitas pessoas apresentando teorias. Elas estão fazendo suposições sem uma base
sólida para isso."
Mas ainda assim as
perguntas continuam. Nesta semana, uma carta privada assinada por 24
especialistas pediu que o inquérito público sobre Letby fosse adiado ou que
seus termos de referência fossem alterados para refletir o debate atual.
Um dos signatários, o
estatístico Peter Green, disse que também não tem uma opinião sobre a culpa de
Letby.
"Não tenho ideia
se ela é inocente ou não", ele afirmou.
"Minha
preocupação é simplesmente sobre a possibilidade de que esta não tenha sido uma
condenação segura."
O toxicologista
forense Alan Wayne Jones concordou.
"Não sei se ela é
culpada ou não", ele disse.
"Acho que ninguém
sabe, exceto Lucy Letby."
Fonte: BBC News
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