quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Anistiar crimes contra democracia é inconstitucional, dizem juristas

Os crimes contra o Estado Democrático de Direito, previstos na Lei 14.197/2021 não devem ser anistiados por uma questão de coerência interna da Constituição, que afirma que crimes contra a ordem constitucional e a democracia são inafiançáveis e imprescritíveis. A avaliação é da doutora em direito pela Universidade de São Paulo (USP) Eloísa Machado de Almeida.

Em entrevista à Agência Brasil, a professora da FGV Direito de São Paulo acredita que o Supremo Tribunal Federal (STF) deve considerar inconstitucional o PL da Anistia, caso ele seja aprovado pelo Congresso Nacional.

O projeto de lei em tramitação na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados perdoa os condenados pelos atos do dia 8 de janeiro de 2023, incluindo os financiadores, incentivadores e organizadores. Se aprovada, a lei pode beneficiar o ex-presidente Jair Bolsonaro, que também é investigado nos inquéritos que apuram o 8 de janeiro.

“Apesar de não haver expressa menção sobre vedação desse tipo de anistia na Constituição, há um argumento de que, por coerência interna da Constituição, tais crimes seriam impassíveis de anistia. Assim entendeu o ministro Dias Toffoli [do Supremo Tribunal Federal] ao julgar a inconstitucionalidade da concessão de graça ao ex-deputado Daniel Silveira”, explica a jurista.

O ex-deputado Daniel Silveira foi condenado a mais de 8 anos de prisão por atentar contra o regime democrático. Ao anular a anistia concedida a Daniel Silveira pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, em 2022, o ministro Dias Toffoli afirmou na sentença não vislumbrar “coerência interna em ordenamento jurídico-constitucional que, a par de impedir a prescrição de crimes contra a ordem constitucional e o estado democrático de direito, possibilita o perdão constitucional aos que forem condenados por tais crimes. Pergunto: que interesse público haveria em perdoar aquele que foi devidamente condenado por atentar contra a própria existência do estado democrático, de suas instituições e institutos mais caros?”.

A Constituição, no artigo 5ª, diz que não podem ser objeto de anistia os condenados por tortura, tráfico de drogas, terrorismo e crimes hediondos. O argumento de Dias Toffoli diz que “por coerência interna” da Constituição essa vedação também deve ser atribuída aos crimes contra a ordem democrática.

O PL da Anistia também seria inconstitucional por violar a separação e a independência entre os Poderes uma vez que o Congresso Nacional estaria invadindo uma competência que é do Judiciário, segundo avaliação da jurista Tânia Maria de Oliveira, da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). 

“Essas pessoas estão sendo processadas e julgadas no STF. Se o Congresso resolver dar anistia a essas pessoas, ele está claramente fazendo uma invasão de uma competência que é do Supremo”, explicou.

Tânia Oliveira considera que esses parlamentares usam os instrumentos da democracia para uma briga que não é jurídica, mas sim política. “Querem anistia àqueles que atacaram o próprio Parlamento. Virou um debate que é estritamente político, não é um debate jurídico. Eles querem anistiar estritamente por uma posição política”, acrescentou.

<><> Pacificação

No parecer favorável à anistia, o relator da matéria na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, deputado Rodrigo Valadares (União/SE), diz que a medida visa a “pacificação” do país e que “a polarização política pode levar um país a uma guerra civil quando as tentativas de apaziguamento são deixadas de lado”.

O cientista político João Feres Júnior, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), considera que o projeto deve ter o efeito contrário ao anunciado pelo relator. 

“A libertação dos radicais presos não vai causar qualquer pacificação. Muito pelo contrário, vai sinalizar que é possível atacar as instituições de maneira violenta e sair incólume”, diz.

Para o especialista, a tentativa de anistiar os responsáveis pelo 8 de janeiro revela certo desespero dos atores políticos por trás do movimento que questionou, sem provas, o resultado da eleição presidencial de 2022.

“Os parlamentares bolsonaristas estão meio desesperados. Eles estão se aferrando ao que podem. Essa agenda da anistia é bem limitada. Apenas querem livrar a cara de quem se envolveu na tentativa de golpe. Se você não consegue fazer um apelo para um eleitorado maior, então você tem um problema”, analisa.

<><> Crime

Outro argumento usado pelo relator do PL da Anistia, é de que não houve crime contra a democracia, apenas a depredação do patrimônio público e que aquelas pessoas “não souberam naquele momento expressar seu anseio”.

A jurista Eloísa Machado de Almeida acredita que essa é uma tentativa de se reescrever a História e que as investigações em curso no STF são robustas em relação ao que aconteceu antes e durante o dia 8 de janeiro.

“Os argumentos querem fazer crer que não houve crime, mas sim uma mera manifestação de expressão. Isso está em total desacordo com os fatos revelados nas investigações e nas ações penais, onde se viu uma estrutura voltada à prática de crimes contra as instituições democráticas, inclusive com a participação da alta cúpula da Presidência da República, deputados e populares”, afirma.

No Brasil, é crime tentar depor, por meio da violência ou de grave ameaça, o governo legitimamente constituído ou impedir e restringir o exercício dos poderes constitucionais, conforme define a Lei 14.197/2021. Essa legislação também considera crime incitar, publicamente, a animosidade entre as Forças Armadas e os demais poderes constitucionais. As penas variam e podem chegar a 12 anos de cadeia.

 

•        O factoide da anistia bolsonarista. Por Jorge Folena

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, comandada por uma deputada bolsonarista, foi empregada para lançar mais um factoide para animar os fascistas e seguidores do ex-presidente inelegível.

Às vésperas do sete de setembro foi anunciado que, na semana seguinte, no dia 10/09/24, seria levado à votação na CCJ o relatório do Deputado Rodrigo Valadares (partido União/SE), sobre a constitucionalidade e juridicidade do projeto de lei 2.858/2022, de autoria do Deputado Major Vitor Hugo, ex-líder do governo anterior, e diversos outros projetos de lei apensados (PLs 2.954/22, 3.314/23, 5.643/23, 5.793/23, 2.162/23, 3.312/23 e 1.216/24), todos com encaminhamento de anistia em favor dos golpistas que atentaram descaradamente contra o Estado Democrático de Direito.

Diante das muitas fragilidades políticas, jurídicas e até mesmo morais existentes nos referidos projetos de lei, que, em certa medida, não beneficiariam o arquiteto-mor do golpe (o ex-presidente), o relator, após longa justificativa de necessidade de “pacificação política”, propôs no final de seu relatório um substitutivo de projeto de lei pelo qual ficarão anistiados todos os que participaram, direta ou indiretamente, dos atos golpistas que culminaram 8 de janeiro de 2023, em Brasília, inclusive com efeitos para eventos subsequentes e anteriores àquela data.

O substitutivo propõe também, de forma muito casuística, a modificação  substancial da tipificação de  diversos delitos previstos hoje na lei dos crimes contra o Estado Democrático de Direito (lei 14.197/2021), a fim de atingir até mesmo interpretações jurisprudenciais, já consolidadas pelo STF, quanto à tipificação e conduta diante do “crime de multidão” (crime multitudinário).

Fica claro que o relator advoga uma anistia, ampla, geral e irrestrita em favor exclusivo dos fascistas, que disseminaram e continuam disseminando ódio, destruição e morte pelo país. Como exemplo recente, tivemos um prefeito do Rio Grande do Sul, que, ao ser fotografado ao lado do ex-presidente, disse que o ministro “Alexandre de Moraes merecia a guilhotina”.

Entendo que qualquer projeto de lei de concessão de anistia para os violadores da Constituição é inconstitucional na essência e, assim, é imoral, indigna e antidemocrática qualquer discussão a esse respeito, por representar um atentado às instituições políticas.

O mais grave, porém, é o Parlamento brasileiro consentir com discussões sobre este tema, uma vez que as ações dos golpistas foram dirigidas diretamente contra os Poderes de República, entre eles o próprio Legislativo, que teve suas instalações atacadas e destruídas pelos fascistas no fatídico 8 de janeiro de 2023.

Assim, é lamentável que a maioria parlamentar permita que deputados fascistas, golpistas e arruaceiros possam, livremente  e sem qualquer reprimenda por violação ao decoro, debater sobre a possibilidade de anistia para os que atentaram contra o  Estado Democrático de Direito, princípio fundamental da Constituição de 1988, do qual o Congresso Nacional deveria ser o maior defensor.

Importante lembrar que bolsonaristas são ardorosos defensores da última ditadura brasileira (1964-1985), constando sempre em suas manifestações públicas os pedidos de “intervenção militar”, imposição do “AI-5” (o famigerado Ato Institucional número 05, de 13/12/1968, o mais duro e autoritário implantado pela ditadura no país), o fechamento do parlamento e do STF.

Os fascistas brasileiros não perdem nenhuma oportunidade de expressar, sem vergonha ou escrúpulos, o seu desejo de reimplantar uma ditadura no Brasil e repetir os atos autoritários praticados pelos militares ao longo dos vinte e um anos em que imperaram as perseguições, torturas, assassinatos e desaparecimentos; e que também favoreceu o enriquecimento ilícito para muitas pessoas que serviram ao regime e dele se serviram, utilizando a estrutura do Poder Público.

Este era o objetivo final da grande organização criminosa formada no Brasil, segundo apurado pelas investigações em curso realizadas pela Polícia Federal. E golpe de Estado foi  o que se tentou desde 1º de janeiro de 2019 (data da posse do ex-presidente) até o dia 8 de janeiro de 2023, que fracassou. Porém o grande líder do movimento golpista não foi preso até hoje, mesmo que preventivamente, nem foi processado criminalmente, e assim continua a circular livremente, disseminando ódio e pedindo anistia para si.

Ao contrário do que manifestou o deputado-relator do projeto de lei de anistia para os bolsonaristas, o país não esteve diante de “manifestações pacíficas”, até porque os fascistas não desejam paz. Como exemplo, lembremos os ataques às instituições que proferiram no ultimo sete de setembro, na avenida Paulista.

Assim, não passa de retórica a justificativa apresentada pelo relator de que “A ‘pax’ social pretendida por todos nós passa por pacificar o país”. Ora, na verdade, para que alcancemos a paz social, precisamos, isto sim, colocar os fascistas na cadeia!

Vale dizer que os atos golpistas não foram meramente políticos, praticados por “cidadãos indignados”, como defendem os bolsonaristas; suas ações, em particular a partir da derrota nas urnas, no segundo turno da eleição presidencial, em 30/10/2022, foram um desrespeito flagrante à soberania popular, expressada pela maioria do povo brasileiro, constituindo-se em graves atos de desobediência civil e caracterizando-se, sobretudo, como condutas criminosas, previstas no Código Penal brasileiro, a partir da nova lei dos crimes contra o Estado Democrático de Direito.

Ou seja, a massa golpista, conduzida e incentivada por seu chefe (que covardemente foi se esconder no exterior), tinha a clara noção (dolo) de que estava praticando graves delitos criminais, sujeitos a duras sanções previstas no Código Penal. Seus integrantes apostavam na derrubada da ordem constitucional vigente para introduzir uma ordem autoritária, conforme os interesses e princípios por eles defendidos, e pensam que, com a anistia, ficarão livres dos atos criminosos praticados em desacordo com a Constituição de 1988.

Assim, ao contrário do que sustenta o relator do projeto de lei na CCJ da Câmara dos Deputados, que “os atos de 08 de janeiro de 2023 foram tratados com rigor excessivo”, além da Constituição, o que foi agredido em maior escala foi a vontade da maioria do povo brasileiro, que elegeu Lula da Silva num processo eleitoral livre e direto, de acordo com as regras vigentes. Sinceramente, causa indignação assistir que o Parlamento admita esse debate, cujo objetivo é relegar ao esquecimento todos os atos criminosos praticados pelos golpistas bolsonaristas, num claro desrespeito à Constituição de 1988.

Quando se propõe essa anistia, como consta no projeto de lei 2.858/2022 e no substitutivo do relator da CCJ da Câmara dos Deputados, objetiva-se única e exclusivamente “apagar da lembrança, esquecer o que ocorreu” em relação a todas as ações que culminaram no 08/01/2023, como as reuniões promovidas no Palácio do Planalto para conspirar contra as eleições e a autoridade do TSE.

Os crimes planejados incluíam o fechamento ilegal de rodovias; a tentativa de impor o caos com o desabastecimento de energia, mediante a derrubada de torres de eletrificação; tentativa de promoção de motim militar, com algazarras organizadas de forma permanente em portas de quartéis do Exército; os atos terroristas praticados em 12/12/2022, com incêndio de veículos e bens públicos em Brasília, em que pessoas poderiam ter morrido; a tentativa de explodir o aeroporto de Brasília às vésperas do Natal de 2022, que poderia ter causado uma tragédia com milhares de vítimas; e tudo o mais que ocorreu no fatídico dia 8 de janeiro, na Praça dos Três Poderes, que, inclusive, contou com o apoio logístico e a escolta de policiais do Distrito Federal e militares golpistas, entre estes o comandante da Marinha do governo anterior, como registrado nos depoimentos dos seus colegas ex-comandantes do Exército e da Aeronáutica.

Os bolsonaristas golpistas imaginam que seja possível obter anistia e apagar tudo da memória nacional, mas isto será impossível de ocorrer, assim esperamos, ao menos juridicamente, como explicado acima.

Mas, infelizmente, sob o aspecto da História do país, o factoide da anistia aos golpistas é mais uma lamentável tentativa de “acordão”, promovida pelos representantes de grande parcela da classe dominante brasileira, que ainda consente com tais equívocos por interesses negociais mesquinhos, em detrimento dos interesses da classe trabalhadora.

Os fascistas estão a serviço exatamente da exploração neoliberal, que pretende desregulamentar, financeirizar e privatizar todas as riquezas possíveis do país, em favor de um projeto de concentração de capital que beneficia somente os muito ricos, em detrimento da maioria da população, da soberania e do desenvolvimento equitativo do Brasil.

O deputado relator do parecer e autor do substitutivo diz, com descaramento, que  “a anistia é um instrumento utilizado normalmente para garantir alívio e pacificação política” e que (...) “a história do Basil demonstra a sempre presente polarização política brasileira, sendo o instituto da anistia o meio hábil para a pacificação da população”.

Ora, os fascistas nunca estiveram e nunca estarão em busca da paz; ao contrário, defendem abertamente a violência, a disseminação do ódio e da mentira e querem ver a deposição dos ministros do STF; tanto é que 153 deputados bolsonaristas requereram o impeachment do ministro Alexandre de Moraes no Senado Federal e muitos fascistas defenderam abertamente a sua prisão, como foi apurado pela Polícia Federal.

Assim, a paz somente virá com a responsabilização e a prisão dos fascistas que organizaram, financiaram e atuaram na tentativa de golpe de Estado e desrespeitaram a vontade da soberania popular.

 

Fonte: Brasil 247

 

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