quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Marcelo Barboza Duarte: ‘Antropofagismo político’

A prática do antropofagismo no sentido literal da palavra assim como no sentido simbólico e figurado, foram e em parte ainda são, uma prática comum em quase todas as sociedades e tempos sociais, culturais, místicos, religiosos, econômicos, políticos e históricos. É evidente que não podemos generalizar. Assim como precisamos especificar e contextualizar esses termos e suas práticas literais, simbólicas e figuradas. O que são várias e em vários sentidos, tipos, modos, âmbitos e aspectos.

Também precisamos desde já informar que há o canibalismo ou antropofagismo envolto por práticas místicas, mágicas, políticas, religiosas e culturais quanto o canibalismo como prática de certo tipo de hobby, ainda que soe estranho, cruel e desumano. Mas é um fato e é real. Os canibais das sociedades modernas que o digam. Porém, muitos talvez já estejam mortos ou presos. Entretanto, essa prática é bem antiga, assim como veremos.

Há vários tipos, modos, aspectos e formas de canibalismo ou antropofagismo, como o literal, o simbólico e o figurado. Assim como há o canibalismo cultural, institucional, físico-corporal e dentre tantos outros. Aqui nós nos debruçaremos no canibalismo político, uma nova ou antiga prática. É o que iremos refletir, mas sem fechar o assunto e ou a discussão.

O canibalismo foi amenizado ou suavizado pelo termo antropofagismo ou antropofagia, e que não são práticas novas e nem verificadas apenas entre os povos africanos e indígenas, acusações e práticas comumente atribuídas à apenas a esses dois povos e suas culturas, isso por parte de e entre sujeitos alienados, néscios, incultos e incautos. Ou seja, o canibalismo ou de forma eufemista mais suavizada, o antropofagismo ou a antropofagia, foi na verdade uma prática bastante antiga e evidenciada entre muitos povos, culturas e sociedades que atualmente são consideradas como supostos povos, culturas e sociedades civilizadas e ou altamente civilizadas.

O termo antropofagismo ou antropofagia é de origem grega antiga, o que significava a prática de comer carne humana ou de sua espécie. Podemos dizer que esse termo já era utilizado por volta ou entre os séculos VIII-III a.C., ou seja, há quase 2.800 anos atrás, e a prática em si era bem mais antiga do que os gregos ou da formação dos povos gregos, bem como o da nominação de comer partes ou seres humanos por inteiro, vivos ou mortos, em rituais ou não, como antropofagia ou antropofagismo.

Com isso, em certos contextos políticos, econômicos e históricos as práticas de canibalismo ou antropofagismo foram evidenciadas e criticadas por alguns escritores romanos como Ovídio, Cícero e outros. E não apenas em rituais de sacrifícios humanos. Sendo assim, podemos dizer que rituais de e com sacrifícios humanos, assim como práticas antropofágicas foram evidenciadas em e entre povos e culturas etruscas, egípcias, gregas, judaicas e romanas, assim como também entre normandos, sumérios, mesopotâmicos, babilônicos, persas, fenícios, celtas, turcos, saxões, germanos, pela região da Escandinávia e dentre tantos outros lugares, povos, sociedades e culturas.

Podemos então dizer que a prática do antropofagismo ou canibalismo não nasceu com os povos africanos e indígenas, mas sim que foi uma realidade ocorrida há mais de 3.000 mil anos atrás e em diferentes culturas e sociedades. Assim como por diferentes motivos, ocasiões, contextos, significados e objetivos. Muitos rituais místicos “religiosos” antigos que sacrificavam serem humanos, também em muitos casos de alguma forma, tipo e modo direto e indireto, possuíam rituais de comer partes ou beber o sangue de seres humanos sacrificados.

Sem mencionar hipóteses de seres humanos famintos que devoraram literalmente outros seres humanos pela fome, miséria e escassez de alimentos. Parece estanho, mas há casos recentes de tragédias de aviões e outros tipos, em que seres humanos devoraram o cadáver dos outros. Ou seja, a fome ao extremo e sob condições extremas podem fazer seres humanos se devorarem vivos ou mortos. Isso não é colocar a necessidade de sobrevivência humana em certas circunstâncias juntamente com atos e práticas místicas, mágicas, religiosas e de hobby em que seres humanos devoram seres humanos, sejam vivos ou mortos. Em rituais ou não.

O fato é que a consumação da espécie humana pela espécie humana seja em partes ou total, em vida ou morta, é um tipo e modo de prática de antropofagia. Sobre essas questões práticas há inúmeras evidências, fatos e registros históricos, literários, artísticos e arqueológicos sobre tais eventos nos e dos povos mencionados, sobretudo de povos da Mesopotâmia, Egito, Roma e outros.

No caso grego em específico, e apenas como um exemplo, os constantes rituais e sacrifícios ao Minotauro, no qual Teseu o herói grego se salvou e matou o Minotauro, já pode ser uma de várias amostras das evidências históricas sobre o tema e assunto da antropofagia ritualística, por hobby ou por necessidade e sobrevivência de quem sacrifica e consome o sacrificado (VRGÍLIO, 2021; BULFINCH, 2009; COMMELIN, 2017; COLEMAN, 2018).

Podemos citar Vico, 2008, p. 86-92 quando menciona vários povos, culturas e reinos da Europa, Ásia e Oriente que praticaram rituais de sacrifícios com seres humanos e até mesmo antropofagias ou canibalismos, desde povos saxões, germanos, gregos, fenícios, egípcios, persas, troianos, gauleses, celtas, noruegueses, chineses, normandos etc., onde em alguns casos também se comiam a carne ou bebiam o sangue do sacrificado.

Há também relatos da Bíblia sobre tais práticas, a exemplo, no livro de Gênesis, cap. 22, o patriarca Abraão iria sacrificar seu filho Isaac (importante dizer que ele de alguma forma sacrificou sua concubina Agar e seu filho Ismael com a mesma, quando os mandou ir embora sozinhos pelo deserto perigoso e mortal, ali havia ordens religiosas e de alguma forma, sacrificiais dessas duas vidas humanas).

Por mais que não sacrificou, a Isaac, abrem-se margens para se especular se não era uma prática comum no meio desses povos nômades, que iriam dar origem aos povos tidos como hebreus, judeus e mais tarde israelitas. Ou seja, se Abraão em um lapso de transe religioso, sob forças psíquicas, espirituais, misticismos ou até mesmo estresse da vida no deserto ou vestígios de problemas de saúde mental, como talvez esquizofrenia etc., quase sacrificou o próprio filho, há possibilidades de tais práticas religiosas, místicas e mágicas terem sido comuns aos povos nômades e viajantes daquela época e contexto.

Inclusive por terem contato com vários outros povos, culturas e religiões daquelas regiões. Ou seja, havia indícios de trocas e antropofagismos diversos, sejam culturais, místicos, religiosos etc., isso entre os povos, civilizações, culturas, religiões e indivíduos que viveram muitos séculos antes da era cristã. Na Bíblia há muitos relatos sobre sacrifícios humanos direta e indiretamente. Assim como canibalismos de hebreus em situações de fome e miséria. Passado a idade antiga, o período medievo também não fugiu das práticas de antropofagia ou canibalismos. Fossem eles realizados em práticas e manifestações místicas, ritualísticas e religiosas quanto por questões de fome e miséria.

Desde o séc. X d.C. ao XIV d.C. houve relatos de práticas de canibalismo pela fome e miséria pelos povos da Europa. Ora, a isso nos recordamos de que quando os colonizadores chegaram nas terras indígenas denominadas de Américas, se espantaram ao ver rituais com práticas de sacrifícios e canibalismo, o que eram ou foi comum e frequente em quase toda a história da Europa até aquele presente séc. XVI d.C. dos colonizadores diante de todos os povos indígenas a serem colonizados na futura América (COULANGES, 2004; FRANCO JR, 1983; VICO, 2008; BATAILLE, 2016; ELIADE, 2014, 2017; LANGER, 2004; JOSEFO, 2007; BÍBLIA, 2010, 2017).

Após o movimento e processo de colonização europeia, o surgimento do capitalismo comercial e ou mercantilista, do capitalismo industrial e atualmente financeiro, ainda foram evidenciadas diversas formas e práticas de antropofagias, tanto literais quanto simbólicas e figuradas. Mas a historiografia europeia e dominante deu conta de fornecer apenas tais práticas relacionadas aos povos africanos e indígenas em e por seus rituais. Pouco ou quase nada se é reproduzido que milhares de europeus se devoraram pela fome e miséria durante o processo de construção e formação da Europa.

Mesmo os povos indígenas naqueles contextos de suas culturas ao praticarem antropofagias, não a faziam por fome e ou miséria, mas em certos rituais a contextos e momentos específicos. Diferentemente dos europeus que em boa parte se devoravam por fome e miséria. Mas a historiografia, antropologia, sociologia e arqueologia oficializada pelos euramericanos não demonstram tais fatos históricos, o da antropofagia deles e entre eles, até mesmo sobre os outros diferentes deles, mas sim apenas as dos povos e culturas indígenas e africanas e em seu passado.

Um bom exemplo de práticas de antropofagias após os períodos medievais dos sécs. XIV d.C. e durante as revoluções burguesas e industriais dos séculos XVI ao XIX d.C., foram justamente a transição dos miseráveis famintos da Europa entre a era feudal para a capitalista comercial e industrial, o que levou inúmeras pessoas a fome, a miséria e as novas práticas de antropofagia. Inclusive também entre esses processos havendo aqueles em que as praticavam seja por rituais quanto por hobby.

Mas o que isso tem a ver com a política? Ou seja, como isso se relaciona com o antropofagismo político ou canibalismo político moderno? práticas simbólicas e figuradas como instrumentos de apropriação do outro e suas qualidades? Ora, vamos restringir os fatos apenas ao Brasil nesse momento. Mesmo eles podendo serem estendidos a outros continentes, países e seus respectivos políticos. Iremos ficar com as reflexões restritas ao Brasil atual.

O Brasil é um país de culturas de antropofagias diversas, indígenas, negras, europeias e americanas que aqui residem, transitam e atuam. Antropofagias figuradas, culturais e simbólicas. Talvez haja como a relacionar direta ou indiretamente a antropofagias literais por hobby ou rituais sem a consumação direta do outro, talvez simbolicamente. Isso pode ser relativo.

Mas quanto a questão política ela é mais limitada ou restrita ao aspecto, âmbito e modo simbólico, figurado e tipológico. Isso porque a antropofagia política ou o canibalismo político moderno estão centrados numa figura política e especializada nela. Talvez nesse momento possamos invocar e relacionar com as teorias políticas da obra O Príncipe de Nicolau Maquiavel. E também com as pesquisas antropológicas, sociológicas, históricas, filosóficas e dentre outras de FRAZER, 1984; DURKHEIM, 2014; TURNER, 2005; MAUSS, 1987; BARTH, 2000 e VAN GENNEP, 1996, que abordam entre tantos outros assuntos, às questões de transições de poder político, ligados ao poder mágico, místico, religioso, simbólico, econômico e de controle de uns sobre outros.

Além dessas transições envolverem também rituais de passagens e de pedagogias que dividem os grupos envolvidos entre superiores e inferiores, mestres e discípulos, especializados e não especializados, iniciados e não iniciados, vítimas e algozes, e assim por diante. Mas, sobretudo e fundamentalmente essas obras em suas observações e comentários envolvem os aspectos dos rituais, dos sacrifícios e da morte. Há aqueles que são os sacrificadores, assim como há aqueles que serão os sacrificantes e consecutivamente há aqueles que serão os sacrificados.

Tudo isso envolvem procedimentos, práticas e modos de se agir para ritualizar e mistificar o processo de sacrifício, morte e tão logo a antropofagia. E antropofagia política ou o canibalismo político moderno. moderno porque em O Príncipe de Nicolau Maquiavel se é possível averiguar a forma com que um líder, governante ou especializado político e politicamente tenta e deve fazer para se manter no poder e sob o controle do mesmo, bem como inutilizar e imobilizar seus atuais e futuros adversários.

Se relacionarmos essas teorias e seus aspectos com os aspectos, simbologias, significados e objetivos de certos rituais antropofágicos, poderemos ver que a consumação e destruição do outro, enquanto eu o devoro e o destruo, simultaneamente eu adquiro as capacidades, instrumentalidades, poderes, habilidades, influências e domínios do outro que foi ritualizado, sacrificado, devorado e destruído. Era exatamente desse modo que se criava o imaginário de controle do caos, administração do presente, controle sobre o mal e o futuro sobre as posses dos que consomem o que ou aquele que é sacrificado e devorado, antropofagicamente falando.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

Entre perdas e ganhos: os perigos que existem no vício em jogos de azar

A ânsia pela ascensão social. Uma maneira, quem sabe, de garantir um dinheiro extra e ajudar nas contas de casa. Aquela emoção em ver os números subindo, a roleta girando e a imprevisibilidade surgindo. Apesar da euforia momentânea, a vida pode mudar de repente. O vício em jogos de azar, definido como jogo patológico, despedaça famílias e leva indivíduos ao fundo do poço. Mudar essa realidade não é uma tarefa fácil, mas há sempre uma luz no fim do túnel.

Segundo Antonio Carlos C. Freire, psiquiatra, doutor em medicina e saúde humana, denomina-se transtorno do jogo o comportamento problemático, recorrente e persistente que acarreta prejuízo significativo ao indivíduo. De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação Americana de Psiquiatria (DSM—5 TR), o transtorno do jogo requer que ao menos quatro critérios diagnósticos estejam presentes em um período de 12 meses.

A gravidade do transtorno, de acordo com o psiquiatra, baseia-se na quantidade de critérios diagnósticos preenchidos, quanto maior o número de critérios, maior a gravidade do problema, de acordo com o DSM -5 TR. "Claro que existem indivíduos que jogam profissionalmente, bem como existem pessoas que jogam socialmente. O jogo social costuma ocorrer em ambiente familiar ou com amigos, tem duração de tempo limitada a um determinado período e não acarreta perdas significativas em nenhuma esfera", explica.

O jogo patológico é caracterizado por uma contínua ou periódica perda de controle em relação ao jogo, uma preocupação em jogar e obter dinheiro para jogar e a manutenção desse comportamento apesar das consequências adversas. No entanto, o aspecto principal, que se faz presente dentro do transtorno do jogo, é o comportamento de jogar de maneira persistente e recorrente que ocasiona prejuízos pessoais, familiares ou profissionais. Na avaliação de Antonio, ao longo da vida, a prevalência do jogo patológico varia entre 0,4% e 1%, porém ainda não se sabe o impacto que as novas modalidades de apostas on-line poderão acarretar nesses números.

— Necessidade de apostar quantias de dinheiro cada vez maiores a fim de garantir a excitação desejada;

— Inquietude ou irritabilidade quando tenta reduzir ou interromper o hábito de jogar;

— Esforços repetidos e malsucedidos no sentido de controlar, reduzir ou interromper o hábito de jogar;

— Pensamentos persistentes sobre experiências de jogo passadas, preocupando-se frequentemente com possibilidades e planejamento de novos jogos;

— Frequentemente joga quando se sente angustiado, impotente, ansioso, deprimido ou culpado;

— Após perder dinheiro no jogo, frequentemente volta a jogar para “recuperar” o prejuízo;

— Costuma mentir para esconder a extensão do envolvimento com o jogo;

— Prejuízos ou perdas em relacionamento importante, emprego ou oportunidade educacional em razão do jogo;

— Depende de outras pessoas para obter dinheiro a fim de saldar situações financeiras desesperadoras causadas pelo jogo.

•        O mal à espreita

A vida em família, antes irretocável, se tornou um inferno para quem vê de perto um ente querido se afundando em um vício. Edna Pereira (nome fictício), 47 anos, conta que o genro sempre foi um homem trabalhador e dedicado. Casado com sua filha há mais de uma década, nunca deixou faltar com as contas de casa, muito menos com compras e outros itens básicos.

Durante o dia, Felipe Bastos (nome fictício), 28, trabalha em uma empresa e, à noite, complementa a renda como entregador de pizza. Ainda assim, de alguma maneira, precisava aumentar os lucros e garantir uma condição financeira melhor e estável. No princípio, a esposa, filha de Edna, resolveu entrar no mundo das apostas online. Sem nenhum resultado, parou assim que perdeu o primeiro dinheiro, de valor irrisório.

Felipe, no entanto, encontrou nesse lugar, um solo fértil para subir na vida. Bom, ao menos, era isso que ele pensava. “Meu genro continuou e não parou. Começou a ganhar muito, mas acabou perdendo tudo. Passou a se vestir mal, não cortava o cabelo e mal conseguia acordar no dia seguinte, porque passava a madrugada inteira jogando. A vida da minha filha virou um inferno. A de todos nós, na verdade”, detalha Edna.

Esse, infelizmente, foi apenas o início de toda a história de Felipe, segundo relatos da sogra. Um rapaz vaidoso e preocupado com a própria aparência, já não tinha mais roupas para usar. O aluguel de casa está atrasado e as prestações do carro não são pagas há um ano. Edna conta que o genro e a filha estão à espera do terceiro bebê. Diferente das outras vezes, eles ainda não conseguiram providenciar nada para a criança que está vindo. Fraldas, berço e outros itens ainda não foram comprados, em razão de toda essa realidade.

•        Tudo ou nada

Bem mais que o descontrole financeiro, o rumo de Felipe se perdeu completamente. Dívidas para agiota e todo o dinheiro das entregas de pizza na busca, sem resultados, de todo o dinheiro que deixou escapar nas apostas online. Qualquer valor que ele tem em mãos, deposita nos jogos de azar. Uma mistura de vício e de esperança. “Estamos tentando de tudo. Conversar, até tirar a moto, porque no emprego diurno ele não vai ter renda suficiente para apostar todos os dias. Mas o pior sempre vem. Agora descobrimos que ele está viciado em cocaína”, revela Edna.

Não bastasse todas as dificuldades em consequência das jogatinas, a droga surgiu como um elemento que veio para completar toda a situação trágica da família. Algumas plataformas virtuais, de acordo com a sogra, pagam mais durante a madrugada. Por isso, Felipe fez uso de cocaína para ficar acordado e ganhar mais dinheiro. No entanto, não conseguiu, pelo menos ainda, recuperar nenhum valor e nem se livrar do vício.

“Ele começou a ter acidentes de moto frequentes. Está completamente abatido, não tem paciência com a filha e nem com nada da vida. O motor da moto acabou quebrando e o Felipe está em casa esses dias. Era um menino muito alegre, brincalhão, uma pessoa vaidosa, que tinha dó de gastar dinheiro. Hoje não tem dinheiro para comprar balinhas pras filhas. Vamos ver o que vai acontecer, estamos esperançosos, dando força e apoio”, finaliza Edna.

•        Destrinchando o transtorno

Do ponto de vista biológico e de forma similar ao que acontece nos casos de dependência química, quanto mais rápido o estímulo para tentar novamente e mais atrativo do ponto de vista financeiro, maior o risco de desenvolver o transtorno do jogo. O psiquiatra Antonio Carlos ressalta a importância do circuito de recompensa do cérebro que, quando funciona normalmente, é crucial para a saúde, já que ele é responsável por trazer vontade de viver.

"É o sistema cerebral que nos gratifica por prazeres habituais. Isso é feito por meio da liberação de um neurotransmissor bem conhecido, a dopamina. O sistema de recompensa pode ser ativado por várias coisas, como comer um chocolate, ouvir uma música ou jogar. Ele nos gratifica pela experiência prazerosa, mas sem prejudicar nossas capacidades de avaliar riscos e julgar se nosso comportamento é adequado ou não. Quando entra em desequilíbrio, porém, nosso controle inibitório é prejudicado", completa o professor do Departamento de Neurociências e Saúde Mental da Universidade Federal da Bahia.

A grande questão, para o especialista, é que esse desequilíbrio não se restringe ao prazer, até porque, se fosse só uma resposta a essa questão, tecnicamente, seria mais fácil buscar o controle adequado. "As alterações alcançam áreas cerebrais mais nobres, como as relacionadas à capacidade de julgamento, levando a uma hipoatividade do sistema reflexivo. Assim, a velocidade e a facilidade de jogar com Tigrinho e bets podem desencadear comportamentos problemáticos em relação a esses jogos", acrescenta.

Por isso, essas modalidades parecem acometer pessoas mais jovens, além de serem mais prevalentes entre o gênero masculino. De acordo com o especialista, em um artigo de 2014, para o Royal College of Psychiatrists, sobre a necessidade de tratamento para jogadores problemáticos, a doença pode ser descrita como um vício oculto.

Suas manifestações e, de fato, presença na sociedade, não eram tão aparentes para a população em geral ou profissionais de saúde da época e, consequentemente, permaneceu subdiagnosticado e não tratado, realidade que é vista e ocorre no Brasil.  "Todavia, proibir os jogos não parece ser uma estratégia possível neste momento, e talvez não seja o caminho", afirma Antonio Carlos. Contudo, algumas medidas podem ser levadas em consideração, entre elas:

Marketing: inclusão de um contraponto, que destaque os riscos, até o cerceamento da publicidade dos jogos;

Psicoeducação: é preciso educar a população no sentido que entendam os riscos associados às "bets", Tigrinho e demais jogos.

Rastrear jogadores patológicos através de cadastros obrigatórios que podem ser criados pelo Governo.

•        Perdas drásticas

Um casal feliz, pais de uma criança inteligente de 11 anos. No fim, é o que praticamente todas as pessoas esperam da vida: um lar para viver com as pessoas que ama. Era essa a vida que Irenice Silva (nome fictício), 48, batalhou tanto para construir. Mas, de repente, assistiu a tudo acabar. Há três meses, se separou do marido Antônio Silva (nome fictício), 49, que trabalhava como motorista de aplicativo. Com uma renda considerável, conseguia fazer altos valores juntando todas as corridas mensais.

Mas, ainda assim, não era suficiente. Em uma espécie de busca pelo sucesso e estabilidade, nada parece estar bom o bastante.

"O cunhado dele mandou uma plataforma on-line para que ele tirasse uma renda extra, com jogos conhecidos como Tigrinho e Touro. No começo, ganhou bastante, mas acabou querendo mais e mais. Trabalhando na rua e jogando, sem parar. Chegou a fazer um pix falso para pagar o carro alugado, mas a dona acabou descobrindo". 

A primeira grande perda foi o carro, principal instrumento de trabalho de Antônio. De acordo com Irenice, a família nunca passou necessidade, porque ela sempre trabalhou bastante para prover alimentos dentro do lar. Arcava com aluguel e, praticamente, todas as despesas. Contudo, a partir da entrega do veículo, o cenário piorou. Por valores irrisórios, o ex-marido passou a vender qualquer eletrônico que encontrasse em casa para ganhar dinheiro e voltar a jogar.

Nem mesmo o apoio familiar e carinho pelo filho foram o bastante para fazer com que Antônio saísse do vício. Até que Irenice, sem conseguir suportar o sofrimento, optou pela separação. "Ainda assim ele continuou, foi uma situação muito difícil. Ele está tentando sair, acredito que vai conseguir. Pelo histórico de apostas, entre perdas e ganhos, foram mais de R$ 280 mil desperdiçados", relata Irenice.

Antônio, agora, está trabalhando como padeiro. Com o salário mensal, não sobram valores para apostar com frequência. Perdeu a família, o carro e a casa onde viveu inúmeros momentos especiais. Não era de beber, tampouco de viver em bar. O único grande vício, beirando os 50 anos, foi em jogos de azar. O filho, de perto, viu o pai se perdendo no meio do caminho.

"Não tenho intenção nenhuma de reatar. Não tinha tempo para o filho, vivia no celular. Ele acabou colocando a gente no vício também. Temos uma criança que sofre com falta de roupa, de calçado. O pai não o levava para passear. São coisas que me machucaram muito", descreve Irenice. Apesar de todo o sofrimento, não consegue desejar mal ao ex-marido. Somente que se recupere e volte a ser o homem que era.

•        Apostas, influencers e alerta

A nível nacional, esse apego fervoroso tem sido notório nos últimos anos. As apostas esportivas, certamente, são o epicentro desse aumento exponencial. De agosto de 2022 até o mesmo período, em 2023, o setor registrou um crescimento de 135% no Brasil. Os dados são do Datahub, divulgados pelo Aposta Legal Brasil.  Para Igor Souza, advogado especialista no direito à saúde, os jogos de azar devem ser tratados muito além do que como uma simples dificuldade de quem os utiliza e realiza as apostas.

“Estamos falando sobre uma questão que envolve vícios de vários cidadãos, de algo que habitualmente destrói famílias e afeta milhares de brasileiros atualmente, de modo que, necessita não meramente de uma regulamentação estatal a fim de ocorrer o recolhimento de impostos, mas uma política pública efetiva para o funcionamento (permitido ou não), com a devida fiscalização e suporte para o enfrentamento de problemáticas decorrentes do jogo”, esclarece o especialista.

Todas as problemáticas envoltas nos jogos de azar perpassam pela devida fiscalização e intervenção do Estado de maneira imediata, para o combate à atos ilícitos decorrentes destes jogos, como lavagem de dinheiro, manipulação de resultados, bem como apropriação indébita de valores dos usuários, situações e casos práticos que vêm ocorrendo diariamente nos últimos tempos.

Graças ao impulsionamento de plataformas que não são fiscalizadas corretamente, bem como pela divulgação nas redes sociais de inúmeros influenciadores, que exercem um grande impacto na vida das pessoas, sobretudo dos jovens, as apostas online estão em alta no Brasil. Essa influência, para o advogado, pode ser muito perigosa, já que cria uma sensação ilusória de dinheiro fácil. Tal ponto é crucial para que mais indivíduos, de diferentes classes, de faixas etárias diversas, desenvolvam problemas sérios com o vício em jogos de azar.

•        O que diz a lei?

A exploração dos jogos de azar é proibida no Brasil desde o ano de 1946, sendo retomada sua discussão acerca da legalização dos cassinos, bingos e apostas, por intermédio do Projeto de Lei 2.234/2022, que apesar de aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça, ainda precisa ser aprovado pelo plenário da Casa Legislativa.

“Importante pontuar que a penalização para a exploração dos jogos de azar possui diversas previsões ao longo do ordenamento jurídico brasileiro, porém, não se trata somente do fato do desenvolvimento e exercício da prática em si, mas principalmente de atos ilícitos indiretos, como por exemplo: o lucro de influenciadores com a perda dos usuários e manipulação de resultados”, destaca Igor.

O Fortune Tiger, conhecido como Jogo do Tigrinho, é um dos principais jogos de azar do momento, em ascensão graças a divulgação desses influenciadores. Nas redes sociais, além de publicar publicidade das plataformas em si, muitos deles postam os supostos ganhos que têm ao utilizar os jogos. Alguns, inclusive, passam por investigação em razão de atos ilícitos provenientes dos jogos, como organização e associação criminosa, através da manipulação de resultados e ganhos sobre as perdas dos usuários. Além dos impactos no âmbito criminal, em algumas hipóteses, é possível buscar a responsabilização civil desses influenciadores.

De acordo com Igor, como a própria nomenclatura do exercício profissional dessas figuras digitais discorre, eles exercem uma grande influência sobre seus seguidores, sendo responsáveis (em alguns casos) por danos ocasionados aos usuários, com influência direta, provenientes dos atos ilícitos exercidos ao divulgarem indevidamente esses jogos de azar e plataformas clandestinas.

O fato de não existir uma regulamentação dessas plataformas no Brasil faz com que em vários casos não seja possível a interferência do Estado, por intermédio do poder judiciário, diretamente em face dessas empresas, já que várias delas sequer possuem vínculo ou sede em território nacional. Ao que tudo indica, este cenário deve passar por uma intensa mudança nos próximos meses. O Ministério da Fazenda deve publicar uma portaria, até o fim deste mês, para liberar jogos eletrônicos de azar no Brasil. A ilegalidade dos caça níquéis online deve acabar em janeiro de 2025.

Segundo a Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA) da pasta chefiada pelo ministro Fernando Haddad, jogos eletrônicos de azar passarão por uma reformulação para que possam funcionar no país. A exigência será registrar essas plataformas no país, sob o domínio “bet.br”. Aquelas que não estiverem com domínio hospedado em território nacional, serão bloqueadas pelo governo. A Secretaria estuda criar mecanismos de monitoramento para avaliar o comportamento dos apostadores, a fim de evitar o jogo compulsivo. Além, é claro, de uma legislação séria com diretrizes voltadas à publicidade responsável dessas plataformas.

•        O melhor dia!

Três anos e três meses sem nenhuma aposta. Ricardo Marques (nome fictício), 51, vive uma realidade completamente diferente de seu passado sombrio. A vida nos jogos de azar começou ainda na adolescência, quando descobriu nas antigas e populares roletas uma paixão fora do comum. A emoção, o dinheiro fácil e todos sentimentos proporcionados pelo jogo estavam ali. Logo em seguida, já na fase adulta, o vício apareceu com um novo rosto.

Ricardo conheceu o mundo das corridas de cavalo. Antes, imaginava que todo o percurso relacionado a apostas era algo facilmente descartável, que poderia parar em qualquer eventualidade. No entanto, percebeu que sair disso seria mais difícil do que imaginava. “A partir daí passei a perder tudo com o jogo. Minha existência foi muito prejudicada, estava no fundo do poço”, recorda.

Na sequência da vida, aos 25, partiu para a bolsa de valores. Lá, passou a fazer day trade — negociações e investimentos a curto prazo durante o mesmo dia — e perdeu ainda mais dinheiro. Mais de uma década com todos os esforços monetários e a saúde mental arruinadas pelo vício. Ricardo rompeu laços afetivos, destruiu relações familiares e pessoais, além de acabar com a própria autoestima. Todo esse contexto, para ele, parecia ter chegado ao fim, sem nenhuma luz no fim do túnel.

Até que, em 2013, descobriu a irmandade Jogadores Anônimos. Na partilha das dificuldades com outros colegas teve a sensação de que sairia do fundo do poço com a ajuda daqueles que estavam no mesmo barco. “Fiquei sete anos longe de qualquer tipo de jogo de azar. Minha vida voltou ao eixo e fiquei bem melhor. Mas, em 2019, tive uma recaída de 10 meses. Mas, há três anos, estou livre novamente”, completa.

Hoje, está em processo de recuperação. Mas, sem sombra de dúvidas, mais distante do que perto do vício que o destruiu durante toda sua jornada. Isso, deve-se ao grupo que lhe deu todo o suporte necessário na escuta e no acolhimento. “A minha vida é um milagre, a irmandade me salvou. Me deu direcionamento para viver um dia de cada vez. Todo dia em que não aposto vira o melhor dia da minha vida”, finaliza. Continuar nesse processo é fundamental. Ajudar mais pessoas também. Por isso desistir nunca foi uma opção, e Ricardo comemora bem o fato de nunca ter ficado no chão.

<><> Jogadores Anônimos

Irmandade composta de homens e mulheres que compartilham suas experiências, força e esperança com o intuito de resolver o seu problema comum e ajudar outros a se recuperarem de problemas com o jogo. O único requisito para fazer parte da Irmandade é o desejo de parar de jogar. Não há mensalidades ou taxas para tornar-se membro de Jogadores Anônimos. O grupo existe em todo o país.

 

Fonte: Correio Braziliense

 

"Em novembro, começa outro pico de dengue", aponta diretora da Takeda Brasil

O Brasil bateu o recorde histórico de casos de dengue neste ano — foram mais de 6,5 milhões de pessoas infectadas. Isso representa, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 80% dos casos de dengue registrados em todo o mundo. Felizmente, 2024 também marcou o início da vacinação contra a dengue, que era esperada pela comunidade científica havia mais de 15 anos.

A Qdenga, fabricada pela farmacêutica japonesa Takeda, foi aprovada pelos órgãos reguladores de 24 países, com índice de 84% de proteção contra a doença. Em 2023, a Agência Nacional de Vigiância Sanitária (Anvisa) aprovou o imunizante para a população de 4 a 59 anos. A vacina é distribuída pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para a faixa etária de 10 a 14 anos. Até o momento, 2,2 milhões de crianças e adolescentes foram imunizados com a primeira dose, mas apenas 537 mil retornaram para a segunda, após os 90 dias de intervalo entre as aplicações.

LEIA A ENTREVISTA:

•        Qual o cenário da dengue, atualmente?

No ano passado, a Ásia era a região com mais casos de dengue do mundo, mas a OMS, neste ano, mostrou que o Brasil é responsável por 80% dos casos de dengue do mundo. São dados muito tristes para o país, a gente teve mais de 6,5 milhões de casos e 5.303 óbitos. Isso significa que, considerando o mesmo período do ano passado, tivemos mais de 40% de aumento de casos e atingimos cinco vezes o número de óbitos de 2023.

•        A que a senhora credita esse surto? As pessoas deixaram de se preocupar com a dengue?

Em 2021, a população achava que não existia mais dengue por causa da covid. Fizemos a mesma pesquisa com a Ipsos, ano passado, e já havia uma conscientização maior, com todos esses casos de dengue, e até epidemia em algumas cidades. Agora, 67% da população se lembra da dengue. Mas, existem muitos mitos.

•        Quais mitos?

Cerca de 42% da população pesquisada disse que a dengue ocorre mais no verão, mas não é mais assim. Outros 24% falaram que ocorre mais em populações de baixo nível socioeconômico, mas a dengue é democrática, atinge várias pessoas. O que a gente tem trabalhado é mostrar o quanto a dengue está presente no país, que pode ter casos graves. Mostrar também a questão de que, no Brasil, houve uma queda muito grande da cobertura vacinal em todas as vacinas.

•        A Qdenga também está com baixa cobertura?

Aproximadamente só 50% das doses entregues pela Takeda foram utilizadas. Das 5,5 milhões doses entregues, foram utilizadas somente 2,7 milhões. Em relação a doses administradas, a preocupação é com a segunda dose. Foram 2,2 milhões utilizadas na primeira dose e somente 537 mil na segunda. Não sabemos exatamente quantos desses já fecharam os três meses e ainda não retornaram, mas de qualquer forma, o número da segunda dose é bem menor. Ainda neste ano, vamos entregar mais 600 mil doses de Qdenga, que completam os 6,6 milhões do contrato com o Ministério da Saúde. Para o ano que vem, está prevista a disponibilização de 9 milhões de doses para o SUS. A nossa prioridade é o mercado público, mesmo fornecendo as vacinas também em clínicas particulares.

•        O primeiro lote da Qdenga foi uma doação ao Ministério da Saúde, e essas doses venceram em julho. O Ministério da Saúde chegou a recomendar que as doses fossem aplicadas em toda faixa etária permitida para evitar que se perdessem imunizantes. Chegaram a ser descartadas doses por não terem sido utilizadas?

Até onde a gente sabe, não. Todas as doses foram utilizadas. Nós acompanhamos isso porque, se não tiver sido usado, nós precisamos fazer o procedimento de descartar. Mas, somente as primeiras venceram "mais rápido" porque já tinham sido fabricadas havia algum tempo. Daqui para a frente, os lotes têm validade mais longa.

•        Há uma previsão de como será a vacinação contra a dengue, no ano que vem? Vai aumentar a faixa etária, por exemplo?

A ministra da Saúde, Nísia Trindade, disse, recentemente, que eles vão avaliar, em setembro e outubro, os sorotipos da dengue no Brasil para ver como vai ser a campanha do ano que vem e qual a faixa etária. No mercado privado, a vacina já pode ser tomada por pessoas de 4 a 59 anos de idade. Mas, no setor público, a faixa etária é definida por onde há maior impacto epidemiológico, maior número de hospitalizações e, também, pelo orçamento disponível. Provavelmente, ela não será oferecida ainda para toda faixa etária permitida pela Anvisa para tomar a vacina.

•        O cenário da dengue no ano que vem pode ser pior?

Os dados são altos e a dengue está antecipando o período de pico. Há alguns anos, começava em abril ou maio e agora começou em fevereiro. Os especialistas acreditam que novembro deste ano já vai começar outro pico de dengue.

•        A Qdenga é uma das respostas para essa alteração da doença no país?

A gente está com muito orgulho de ter incorporado a vacina. O Brasil é o primeiro país do mundo a ter incorporado a vacina da dengue em um sistema público de saúde. Recentemente, a OMS incluiu a Qdenga como vacina pré-qualificada, ou seja, que pode ser comprada por organizações, como a Organização das Nações Unidas (ONU), para fazer vacinação em larga escala, em várias regiões. Depois de 15 anos, trouxemos uma vacina quadrivalente (previne os quatro sorotipos da doença) que demonstrou alta eficácia e segurança.

•        A Qdenga precisa de duas doses para alcançar o máximo de eficácia. Alguns especialistas dizem que as vacinas de duas doses são mais suscetíveis a ter menor cobertura, pela necessidade de as pessoas voltarem aos postos de saúde. Chegou a ser estudada a possibilidade dessa vacina ser dose única?

Fizemos estudos com uma dose e duas doses e o que se observou, no nosso estudo de quatro anos e meio, foi que um mês depois da primeira dose já se observa uma boa eficácia, mais ou menos 80% de redução de casos de dengue. Porém, havia pessoas que não ficavam protegidas com o passar do tempo, então foi visto que era necessário aplicar a segunda dose três meses depois. Isso já foi avaliado antes e vimos que para a Qdenga a melhor maneira é com duas doses.

•        E será necessária a dose de reforço nos próximos anos?

Cerca de 20 mil crianças e adolescentes participaram do estudo para a Qdenga durante 4 anos e meio. Em algumas dessas, foram aplicadas uma terceira dose de reforço para saber se aumenta a eficácia. Essa parte do estudo ainda está em andamento. Devemos saber o resultado sobre o reforço em 2026. As pessoas também perguntam se a Qdenga não funciona para outras arboviroses, como zika e chikungunya, mas ela não tem proteção cruzada.

•        Atualmente, a produção da Qdenga é suficiente para atender aos brasileiros?

A gente tem, hoje, uma fábrica na Alemanha, que produz a Qdenga para o mundo, e estamos construindo outra para entregar no ano que vem. Em fevereiro deste ano, a Takeda fez contrato com a empresa indiana Biological e foram fabricadas 50 milhões de doses da Qdenga por ano para os países mais endêmicos do mundo. O Brasil sempre é prioridade, principalmente, porque tem 80% dos casos no mundo. Tudo isso é plano estratégico para que, até 2030, nós possamos fornecer 100 milhões de doses por ano da Qdenga. Aqui no Brasil, também estamos abertos para fazer transferência de tecnologia, seguimos as tratativas com a Fiocruz e o Ministério da Saúde.

•        E como estão essas tratativas de parceria?

Em junho, a Lei de Parceria de Desenvolvimento Produtivo (PDP) saiu e colocou o prazo de 26 de setembro para que Fiocruz, Butantan e outras instituições com projetos de transferência de tecnologia e produção local apresentem seus projetos. A Fiocruz tem muitos projetos e já adiantou que não deve dar tempo de apresentar a parceria com a Takeda até o fim deste mês. Então, eles estão pegando os dados da Takeda e planejando o projeto. A transferência de tecnologia é um contrato de 10 anos, como mostra a experiência com a Hemobras (estatal de insumos farmacêuticos inaugurada neste ano).

•        Ao que a senhora atribui a baixa vacinação contra a dengue?

É muito crítico, porque o Brasil era referência mundial com o Programa Nacional de Imunização (PNI). Desde 2016, a gente observa uma queda na cobertura vacinal, e, quando chegou a covid, o movimento antivacinas e de fake news aumentou muito. O Brasil é o segundo do mundo a usar WhatsApp e tecnologia. Nós, especialistas, entendemos que a grande causa da baixa cobertura vacinal vem de desinformação e dos mitos que citei sobre classe socioeconômica baixa e regiões do país.

•        Como a Takeda tem atuado para combater essas desinformações?

Temos um trabalho muito grande com a mídia para corrigir informações equivocadas sobre a Qdenga e, também, sobre vacinação. Criamos o site Conheça Dengue para conscientizar a população sobre a doença e a responsabilidade de cada um para preveni-la, além de falar da vacina. Juntando com a arte, estamos fazendo uma exposição itinerante chamada Sem Sombra de Dengue, que chegará a Brasília no próximo dia 20. São obras de arte que mostram que a dengue parece invisível, mas está aí. O primeiro local de exposição foi no Japan House, em São Paulo, e foi um sucesso. Iniciamos por lá porque é onde a Takeda Brasil está. Depois, fomos para Dourados, em Mato Grosso do Sul, porque é a cidade que está participando de um estudo de caso da Qdenga. A população do município foi a primeira a tomar a vacina e está sendo acompanhada para verificar a eficácia ao longo dos anos. Agora, chega a Brasília, que é a cidade brasileira que teve a maior taxa de concentração de casos de dengue. Neste momento, são mais de 9,7 mil casos a cada 100 mil habitantes. Na sequência, a exposição segue para Salvador, na Bahia, que foi o local do Nordeste a registrar epidemia da doença neste ano.

 

Fonte: Correio Braziliense

 

Pistas para pensar o futuro do trabalho no Brasil

O mundo do trabalho no Brasil está passando por transformações profundas, influenciadas por mudanças globais e decisões políticas internas. Essas transformações não são meros reflexos passivos de tendências internacionais, mas resultado de uma complexa interação entre forças globais e escolhas nacionais. A reestruturação produtiva, a flexibilização das relações de trabalho e a incorporação de novas tecnologias têm reconfigurado não apenas os processos de produção, mas também as próprias relações sociais e a subjetividade dos trabalhadores. Este cenário de mudanças aceleradas demanda uma análise crítica e minuciosa, capaz de desvelar as contradições e os desafios que se apresentam para a classe trabalhadora brasileira.

Neste contexto, é fundamental compreender que as transformações no mundo do trabalho não ocorrem em um vácuo histórico ou social. Elas são parte de um processo mais amplo de reconfiguração do capitalismo global, marcado pela financeirização da economia, pela ascensão de novos polos de poder econômico e pela intensificação das desigualdades sociais. No Brasil, esse processo se desdobra de maneira particular, refletindo tanto a posição do país na divisão internacional do trabalho quanto as especificidades de sua formação social e econômica. A persistência de formas precárias de trabalho, a informalidade e a desigualdade estrutural são elementos que se entrelaçam com as novas dinâmicas impostas pela globalização e pela revolução tecnológica, criando um cenário complexo e desafiador.

Este artigo busca, portanto, analisar essas transformações sob uma perspectiva crítica, considerando tanto as tendências globais quanto as especificidades do contexto brasileiro. Propõe-se a examinar não apenas os indicadores econômicos e as estatísticas do mercado de trabalho, mas também as experiências concretas dos trabalhadores, suas lutas e formas de resistência. Ao adotar essa abordagem, pretende-se contribuir para uma compreensão mais profunda e nuançada das mudanças em curso, bem como para a formulação de estratégias e políticas capazes de enfrentar os desafios que se apresentam. A análise se debruçará sobre questões como a precarização do trabalho, a uberização da economia, o impacto das novas tecnologias, as mudanças nas formas de organização sindical e as perspectivas para a construção de um futuro do trabalho mais justo e inclusivo no Brasil.

•        A ascensão do Oriente e a Nova Divisão Internacional do Trabalho

O protagonismo chinês na economia global tem reconfigurado as relações comerciais internacionais, afetando diretamente o Brasil e outros países em desenvolvimento. Esta mudança no centro dinâmico mundial, caracterizada pela ascensão da China como potência econômica, representa uma transformação significativa na divisão internacional do trabalho. Como observa Alves (2014), esse processo não se limita a uma simples realocação geográfica da produção, mas implica uma reestruturação profunda das cadeias globais de valor e das relações de poder no capitalismo global.

A nova configuração da economia mundial, impulsionada pelo crescimento chinês, tem impactos contraditórios sobre o mercado de trabalho brasileiro. Por um lado, a demanda chinesa por commodities tem favorecido o setor primário-exportador do Brasil, gerando empregos e divisas. Por outro lado, como argumenta Pochmann (2016), essa dinâmica tem intensificado o processo de reprimarização da economia brasileira, comprometendo o desenvolvimento industrial e tecnológico do país. Este cenário coloca em xeque a capacidade do Brasil de gerar empregos de qualidade e de se inserir de forma competitiva nos segmentos mais dinâmicos da economia global.

A inserção do Brasil nessa nova divisão internacional do trabalho é marcada por contradições e desafios. Antunes (2018) ressalta que o avanço do capitalismo informacional-digital, liderado pelos países do centro, tem aprofundado as desigualdades entre as nações e dentro delas. No caso brasileiro, observa-se uma tendência à precarização e informalização do trabalho, com a proliferação de ocupações de baixa qualificação e remuneração, especialmente no setor de serviços. Este processo é agravado pela concorrência com produtos manufaturados chineses, que pressionam a indústria nacional e contribuem para a desestruturação de setores intensivos em mão de obra.

Diante desse cenário, é crucial repensar as estratégias de desenvolvimento e as políticas de trabalho no Brasil. Braga (2017) argumenta que é necessário superar a lógica da especialização regressiva e buscar uma inserção mais qualificada na economia global. Isso implica investimentos em educação, ciência e tecnologia, bem como o fortalecimento de setores estratégicos capazes de gerar empregos de qualidade. Além disso, é fundamental a adoção de políticas de proteção social e regulação do trabalho que combatam a precarização e promovam condições dignas de emprego. Só assim será possível enfrentar os desafios impostos pela nova divisão internacional do trabalho e construir um futuro mais promissor para os trabalhadores brasileiros.

•        A Era Digital e a transformação do trabalho

A transição para a Era Digital, intimamente ligada à ascensão do Oriente discutida anteriormente, está revolucionando as formas de trabalhar, distribuir e viver em escala global. Esta mudança, caracterizada pela introdução massiva de tecnologias digitais e de automação nos processos produtivos, cria uma nova divisão internacional do trabalho, aprofundando as desigualdades entre países produtores e exportadores de tecnologia e aqueles que são meros consumidores. Castells (2020) argumenta que essa nova configuração resulta em uma “sociedade em rede”, na qual o controle sobre os fluxos de informação e tecnologia se torna um elemento central de poder econômico e geopolítico.

No contexto desta nova divisão internacional do trabalho digital, o Brasil encontra-se em uma posição particularmente delicada. Como observa Schwab (2016), a chamada Quarta Revolução Industrial tem o potencial de exacerbar as desigualdades tanto entre países quanto dentro deles. No caso brasileiro, o risco de se tornar predominantemente importador de tecnologia é real e preocupante, podendo limitar severamente a criação de empregos de alta qualificação no país. Esse cenário é agravado pela situação de dependência tecnológica que, segundo Antunes e Braga (2019), caracteriza a inserção subordinada do Brasil na economia global digitalizada.

A digitalização da economia e do trabalho no Brasil apresenta características contraditórias. Por um lado, como argumenta Abílio (2020), observa-se a proliferação de formas de trabalho mediadas por plataformas digitais, como no caso dos entregadores de aplicativos. Essas novas modalidades de trabalho, frequentemente apresentadas sob o eufemismo da “economia do compartilhamento”, muitas vezes resultam em precarização e intensificação da exploração laboral. Por outro lado, setores de alta tecnologia, como o desenvolvimento de software e a economia criativa digital, oferecem oportunidades de trabalho qualificado, ainda que de forma limitada e concentrada geograficamente.

A transformação digital do trabalho no Brasil não pode ser compreendida de forma isolada das dinâmicas globais de reestruturação produtiva e financeirização da economia. Dardot e Laval (2016) argumentam que a racionalidade neoliberal, que permeia essas transformações, promove uma lógica de competição generalizada e individualização dos riscos sociais. No contexto brasileiro, isso se traduz em uma tendência à flexibilização das relações de trabalho, com a proliferação de contratos temporários, trabalho autônomo e outras formas de vínculo precário. Essa precarização é particularmente evidente no setor de serviços, que absorve grande parte da força de trabalho deslocada pela automação e digitalização de outros setores.

Diante desses desafios, é crucial que o Brasil desenvolva estratégias para uma inserção mais qualificada na economia digital global. Mazzucato (2014) defende a importância de políticas industriais e de inovação orientadas por missões, capazes de direcionar o desenvolvimento tecnológico para objetivos socialmente relevantes. No contexto brasileiro, isso poderia se traduzir em investimentos estratégicos em áreas como energia renovável, biotecnologia e tecnologias digitais aplicadas à saúde e educação. Além disso, como argumenta Huws (2014), é fundamental repensar as formas de organização e regulação do trabalho na era digital, buscando garantir direitos e proteções sociais adequados às novas realidades laborais. Só assim será possível aproveitar as oportunidades da revolução digital sem comprometer os direitos e a dignidade dos trabalhadores brasileiros.

•        Recuperação pós-pandemia e desigualdades persistentes

A recuperação do mercado de trabalho brasileiro nos últimos dois anos pós-pandemia, evidenciada pelos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), deve ser analisada à luz das transformações globais discutidas anteriormente, como a ascensão do Oriente e a digitalização da economia. Neste contexto, Pochmann (2020) argumenta que a pandemia não apenas expôs, mas também aprofundou as fragilidades estruturais do mercado de trabalho brasileiro, marcado por altos níveis de informalidade e precarização. A recuperação observada, portanto, ocorre sobre bases já fragilizadas, refletindo e reproduzindo desigualdades históricas.

As desigualdades regionais, de gênero e raça que persistem no mercado de trabalho brasileiro são um reflexo direto da inserção subordinada do país na nova divisão internacional do trabalho. Conforme aponta Hirata (2018), a intersecção entre classe, gênero e raça é fundamental para compreender a dinâmica do trabalho no capitalismo globalizado. No Brasil, essa interseccionalidade se manifesta na concentração de mulheres, especialmente mulheres negras, em setores mais precários e mal remunerados da economia, muitos dos quais foram particularmente afetados pela pandemia e pela crescente digitalização do trabalho.

A heterogeneidade da recuperação pós-pandemia revela também as disparidades na capacidade de diferentes setores e regiões de se adaptarem às novas demandas da economia digital. Conforme discutido por Antunes (2020), enquanto alguns setores, como o de tecnologia da informação, experimentaram um boom durante e após a pandemia, outros, como o comércio tradicional e serviços pessoais, enfrentaram dificuldades significativas. Essa dinâmica tende a exacerbar as desigualdades regionais, favorecendo centros urbanos mais desenvolvidos em detrimento de regiões periféricas, num processo que Brandão (2019) caracteriza como “desenvolvimento geográfico desigual”.

Diante desse cenário, é crucial reconhecer que a mera retomada dos níveis de emprego pré-pandemia não é suficiente para abordar as desigualdades estruturais do mercado de trabalho brasileiro. Como argumenta Lavinas (2021), é necessária uma política de desenvolvimento que combine investimentos em setores estratégicos, como tecnologia verde e economia do cuidado, com políticas robustas de proteção social e valorização do trabalho. Apenas através de uma abordagem integrada, que leve em conta as especificidades do contexto brasileiro e as tendências globais discutidas anteriormente, será possível construir um mercado de trabalho mais equitativo e resiliente às futuras crises.

•        Precarização do trabalho e subutilização da força de trabalho

A subutilização da força de trabalho no Brasil, embora tenha apresentado uma leve redução nos últimos anos, continua em patamares alarmantes. Este fenômeno está intrinsecamente ligado às transformações globais discutidas anteriormente, como a ascensão do Oriente e a digitalização da economia, que têm reconfigurado as relações de trabalho em escala mundial. Conforme argumenta Standing (2014), a flexibilização e precarização do trabalho não são anomalias, mas características estruturais do capitalismo contemporâneo, que ele denomina de “precariado”. No contexto brasileiro, essa tendência global se soma a fragilidades históricas do mercado de trabalho, resultando em um cenário particularmente desafiador.

O trabalho intermitente e a contratação temporária, modalidades que ganharam força com a reforma trabalhista de 2017, têm afetado de maneira significativa profissionais qualificados, incluindo professores e trabalhadores da área de saúde. Krein et al. (2021) argumentam que essas formas de contratação, longe de promoverem a geração de empregos como prometido, têm na verdade intensificado a precarização do trabalho. O resultado é a proliferação de jornadas e salários menores, além de uma crescente insegurança laboral, mesmo entre trabalhadores com alta qualificação.

A precarização do trabalho no Brasil não pode ser dissociada do processo de desindustrialização e reprimarização da economia, discutidos nas seções anteriores. Como aponta Pochmann (2016), a perda de participação da indústria no PIB brasileiro tem sido acompanhada por uma deterioração da qualidade dos empregos gerados, com o setor de serviços absorvendo grande parte da força de trabalho em condições frequentemente precárias. Esse movimento é agravado pela inserção subordinada do Brasil na economia digital global, que tende a concentrar os empregos de alta qualificação e remuneração nos países centrais.

•        Formação e qualificação profissional

Diante dos desafios impostos pela Era Digital e pela nova economia global, o investimento em educação e formação profissional torna-se ainda mais crucial para o Brasil. Contudo, como argumenta Saviani (2018), é necessário superar a visão instrumental da educação, que a reduz a mera formação de “capital humano” para o mercado. Uma abordagem crítica e emancipatória da educação deve visar não apenas a qualificação técnica, mas também o desenvolvimento da capacidade crítica e da cidadania ativa.

A formação profissional no Brasil enfrenta o desafio de preparar trabalhadores para um mercado em rápida transformação, marcado pela automação e pela inteligência artificial. Nesse contexto, Schwab e Davis (2018) argumentam que as habilidades mais valorizadas serão aquelas dificilmente substituíveis por máquinas, como criatividade, empatia e pensamento crítico. Isso demanda uma reorientação dos currículos e metodologias educacionais, privilegiando abordagens interdisciplinares e o desenvolvimento de competências socioemocionais.

Entretanto, é fundamental reconhecer que o investimento em educação e formação profissional, embora necessário, não é suficiente para resolver os problemas estruturais do mercado de trabalho brasileiro. Como alertam Laval et al. (2012), a ênfase excessiva na qualificação individual como solução para o desemprego e a precariedade pode levar à culpabilização dos trabalhadores, obscurecendo as raízes sistêmicas desses problemas. É necessário, portanto, articular as políticas educacionais com estratégias mais amplas de desenvolvimento econômico e social.

•        Políticas de emprego e proteção social

O desenvolvimento de políticas de emprego que garantam direitos sociais e promovam a inclusão é fundamental para enfrentar as desigualdades persistentes no mercado de trabalho brasileiro, especialmente no contexto pós-pandemia e de aceleração da digitalização da economia. Conforme argumenta Lavinas (2021), é necessário repensar o modelo de proteção social brasileiro, superando a lógica da focalização e da financeirização que tem predominado nas últimas décadas. A autora defende a construção de um sistema de proteção social universal, capaz de oferecer segurança econômica e bem-estar a todos os cidadãos, independentemente de sua situação laboral.

Uma política de emprego efetiva para o Brasil contemporâneo deve levar em conta as transformações discutidas nas seções anteriores, como a nova divisão internacional do trabalho e a revolução digital. Nesse sentido, Mazzucato (2021) propõe uma abordagem de política industrial orientada por missões, capaz de direcionar o investimento público e privado para áreas estratégicas como energias renováveis, economia do cuidado e tecnologias digitais inclusivas. Tal abordagem teria o potencial de gerar empregos de qualidade e promover um desenvolvimento mais sustentável e equitativo.

Por fim, é crucial reconhecer que o enfrentamento das desigualdades no mercado de trabalho brasileiro demanda não apenas políticas econômicas e sociais, mas também uma profunda transformação nas relações de poder na sociedade. Como argumenta Braga (2017), a construção de um futuro do trabalho mais justo e inclusivo passa necessariamente pelo fortalecimento da organização e da luta dos trabalhadores. Isso implica repensar as formas tradicionais de sindicalismo, buscando novas estratégias de mobilização e representação capazes de abarcar a diversidade e a complexidade do mundo do trabalho contemporâneo.

•        Sustentabilidade e adaptação às mudanças climáticas

A transição para uma economia verde e a adaptação às mudanças climáticas emergem como imperativos incontornáveis na formulação de políticas de trabalho e desenvolvimento econômico para o Brasil. Esta necessidade se articula diretamente com as transformações globais discutidas anteriormente, como a ascensão do Oriente e a revolução digital, bem como com os desafios internos de precarização do trabalho e desigualdades persistentes. Conforme argumenta Abramovay (2019), a transição para uma economia de baixo carbono não representa apenas uma resposta à crise climática, mas também uma oportunidade de reinvenção do próprio capitalismo, com potencial para geração de empregos de qualidade e redução das desigualdades.

No contexto brasileiro, a implementação de políticas orientadas para a sustentabilidade e adaptação climática deve considerar as especificidades socioeconômicas do país. Isso implica, por exemplo, em estratégias para uma transição justa nos setores mais afetados pela descarbonização, como propõe Rosemberg (2020). Além disso, é fundamental reconhecer e valorizar o conhecimento e as práticas sustentáveis das comunidades tradicionais e povos indígenas, como defende Krenak (2019), integrando essas perspectivas nas políticas de desenvolvimento e trabalho.

•        Considerações finais

O futuro do trabalho no Brasil, como evidenciado ao longo deste artigo, é moldado tanto pelas transformações globais quanto pelas escolhas políticas internas. A ascensão do Oriente, a revolução digital, as mudanças climáticas e a pandemia de covid-19 têm reconfigurado profundamente as relações de trabalho em escala global. No contexto brasileiro, essas tendências se entrelaçam com desafios históricos como a desigualdade estrutural, a inserção subordinada na economia global e a precarização do trabalho.

Para enfrentar esses desafios e aproveitar as oportunidades que se apresentam, é crucial adotar uma abordagem crítica e propositiva, que priorize a garantia de direitos sociais e a redução das desigualdades. Como argumenta Antunes (2018), é necessário superar a lógica da precarização e da uberização do trabalho, buscando formas de organização produtiva que valorizem o trabalho digno e socialmente significativo. Isso implica em repensar não apenas as políticas de emprego, mas também o próprio modelo de desenvolvimento econômico do país.

A construção de um mercado de trabalho mais justo e inclusivo demanda um esforço conjunto da sociedade, do Estado e do setor privado. Nesse sentido, Dowbor (2017) propõe uma “economia do conhecimento socialmente orientada”, na qual o avanço tecnológico seja direcionado para a solução de problemas sociais e ambientais. Isso requer uma articulação entre políticas de inovação, educação e proteção social, capaz de preparar a força de trabalho brasileira para os desafios do século XXI sem deixar ninguém para trás.

Somente através de políticas públicas bem formuladas e de um compromisso com o desenvolvimento sustentável será possível criar um futuro do trabalho que atenda às necessidades e aspirações de todos os brasileiros. Como destacam Cavalcanti e Guedes (2021), a transição para uma economia verde e socialmente inclusiva oferece uma oportunidade única de reconciliar os objetivos de crescimento econômico, geração de empregos de qualidade e preservação ambiental. Para isso, é fundamental fortalecer os mecanismos de participação democrática e controle social, garantindo que as vozes dos trabalhadores e das comunidades afetadas sejam ouvidas no processo de formulação e implementação de políticas.

Em conclusão, o futuro do trabalho no Brasil se apresenta como um campo de disputas e possibilidades. Os desafios são imensos, mas também o são as oportunidades de construir um modelo de desenvolvimento mais justo, sustentável e inclusivo. Como argumenta Santos (2021), é necessário cultivar uma “sociologia das emergências”, capaz de identificar e fortalecer as sementes de futuros alternativos já presentes nas práticas e lutas sociais do presente. Somente assim será possível superar as armadilhas da precarização e da desigualdade, construindo um futuro do trabalho que seja verdadeiramente emancipatório e alinhado com as aspirações mais profundas da sociedade brasileira.

 

Fonte: Por Erik Chiconelli Gomes, em Outras Palavras