sexta-feira, 30 de agosto de 2024

‘Tiro deveria ter acertado o meio do peito’, ouve Guarani-Kaiowá ao ser socorrido com bala alojada na cabeça

Racismo é comum durante atendimento médico em Dourados, no Mato Grosso do Sul. Por conta da hostilidade, indígenas temem ir ao hospital.

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Desde o dia 3 agosto, E. Kaiowá, de 20 anos, está com uma bala alojada na cabeça. Ele foi atingido durante um ataque promovido por jagunços contra uma retomada Guarani-Kaiowá em Douradina, Mato Grosso do Sul. No mesmo dia, outros dez indígenas ficaram feridos. Até agora ele aguarda na casa de um parente, na Terra Indígena Panambi – Lagoa Rica, a transferência para um hospital com mais estrutura para tratar seu caso.

Quando chegou ao Hospital da Vida, em Dourados, cerca de 40 km do local do ataque, o jovem contou que ouviu de um policial militar, que estava no hospital, que o tiro deveria ter sido para matar. “Ele disse que o tiro foi errado. Que deveria ter atingido no meio do peito. ‘Que assim matava logo o vagabundo’”, me contou o Kaiowá.

Situações como essa são corriqueiras no cotidiano dos indígenas da região. No dia do ataque, além do terror vivido, a preocupação das lideranças Guarani-Kaiowá era como e com quem os feridos seriam levados ao hospital. Queriam proteger e evitar que a comunidade enfrentasse mais violência.

Na ocasião do ataque, em 3 de agosto, alguns indígenas, mesmo machucados, escolheram permanecer no território e receberam atendimento de profissionais do Distrito de Saúde Especial Indígena, o DSEI.

Os relatos dos Kaiowá são de desdém e racismo. Foi o caso do G. Kaiowá, de 23 anos, que levou um tiro de borracha no peito e em um dos dedos durante o ataque. No Hospital da Vida, ele relata que foi chamado de “invasor de terra” por um médico.

“O médico ficava dizendo que nós indígenas só roubamos a terra das pessoas. Eu estava com dor e fiquei quieto. Só queria ir embora de lá”, contou o Kaiowá que ainda enfrenta dores no peito, próximo ao ombro esquerdo, onde levou o tiro. Mas optou por não procurar mais atendimento médico por temer os episódios de racismo.

Depois do que enfrentou no primeiro atendimento, ele passou semanas sem ir ao hospital. A ferida do seu dedo começou a necrosar, e só então ele tomou coragem para retornar ao médico, no dia 19 de agosto, quando fez uma drenagem na ferida.

A antropóloga e líder indígena Guarani-Kaiowá, Valdelice Veron, explica que os problemas nos hospitais começam no atendimento que é feito em português, língua que muitos indígenas não dominam, e até mesmo no olhar dos funcionários.

 “A gente sai da aldeia porque a gente precisa. Só a maneira que olham pra gente já nos mata um pouco”, afirma ela, que é filha de Marcos Verón, liderança indígena brutalmente assassinada em janeiro de 2003.

A antropóloga afirma que não são poucos os relatos de violências em atendimentos médicos, que vão de procedimentos cirúrgicos iniciados sem anestesia a acusações em meio a atendimentos de saúde.

“A gente não passa por conflitos, como a imprensa e órgãos públicos costumam dizer. O que acontece com a gente é um massacre. E o resultado disso é gente gravemente ferida, que quando chega no hospital também sofre mais violência”, afirma.

“Meu tio levou um tiro no peito e carrega a bala perto do coração até hoje. Na mesa do hospital, ele conta, abriram ele sem anestesia e o médico dizia: ‘isso é pra você aprender a não invadir mais terra’”, ela lembra. “Aí eu te pergunto: como é que não tem medo? Uma tia minha costuma dizer: vamos lamber nossas feridas, e seguir na luta”.

•        Sociedade de extermínio

O pai do jovem de 23 anos relatou ao Intercept Brasil que falas do tipo são habituais contra os Kaiowá. “Os médicos são assim mesmo. Sempre nos acusam de ser invasor, ladrão, indígenas paraguaios. Eles sabem que quando chegamos feridos de tiro foi por causa da terra. E sempre estão do lado do produtor rural”, afirma.

Matias Benno Rempel, coordenador do Conselho Indigenista Missionário, o Cimi, conta que os relatos dos indígenas são de que eles se sentem vilipendiados, e sofrem violações como violência obstétrica, maltrato na hora de fechar uma ferida e falta de informações sobre o motivo da morte de familiares.

‘Eles sabem que quando chegamos feridos de tiro foi por causa da terra. E sempre estão do lado do produtor rural’

“O medo que os indígenas têm de adentrar hospitais é o medo que eles têm de transitar em qualquer âmbito de uma sociedade de extermínio. É isso que eles sentem. E acaba amplificado num hospital, porque ali você entrega a sua vida e a sua condição física a um profissional, que, para a maioria das pessoas, vai estar empenhado em ajudar. Porém para os indígenas não é sempre assim”, diz Rempel.

Rempel explica que os indígenas relatam o envolvimento da classe médica com os fazendeiros da região. A partir daí, os médicos “tomam partido nas situações que envolvem reivindicações territoriais por parte dos indígenas, e no atendimento assumem uma postura que não condiz com o seu ofício”,  pontua.

A Secretaria de Estado de Saúde do Mato Grosso do Sul não se manifestou sobre o caso, nem detalhou as ações adotadas para combater o racismo e outras formas de violência no atendimento aos indígenas no estado, que conta com uma população de 116 mil indígenas, segundo o IBGE.

A prefeitura de Dourados não respondeu sobre as acusações de racismo e maltrato no Hospital da Vida.

O Ministério Público Federal também não se pronunciou se há inquéritos sobre o tema em curso no órgão.

•        Sem definições

Embora a situação de E. Kaiowá seja delicada, ele teve alta. E aguarda por novos exames que devem ocorrer em setembro. O jovem está tomando três medicações – uma delas é para evitar possíveis convulsões devido à bala alojada no crânio.

A expectativa de sua família e das organizações sociais que o acompanham é que ele seja levado ao Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer, no Rio de Janeiro. O local atende exclusivamente pacientes do Sistema Único de Saúde, e é o primeiro centro voltado para o tratamento de doenças neurocirúrgicas do país.

Eles temem que o jovem não receba a atenção adequada em Dourados. Além disso, a família ainda não tem clareza sobre as possíveis consequências do trauma a curto e longo prazo.

A remoção de E. Kaiowá para o Rio de Janeiro depende de uma solicitação inicial do DSEI, que deve pedir o encaminhamento do indígena para atendimento fora do estado. Somente após esse pedido outros órgãos poderão atuar para viabilizar a transferência. Apuramos que, no entanto, até o momento, nenhuma ação foi tomada.

Rempel frisa que um profissional de saúde de Campo Grande afirmou que o mais indicado seria o jovem ser transferido para um local com melhor estrutura, como o instituto no Rio de Janeiro. Mas, segundo ele, não há planejamento específico e adequado para tratar esses casos com a seriedade que exigem. “Como resultado, essas pessoas continuam à mercê de um sistema complexo, temendo buscar os hospitais locais e enfrentando riscos significativos, inclusive de vida”.

O Intercept Brasil entrou em contato com o Ministério da Saúde, que é o responsável pela Secretaria de Saúde Indígena, a Sesai, órgão que  coordena e executa a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, para saber se havia alguma definição sobre os procedimentos a serem adotados em relação ao Kaiowá.

O orgão informou que por meio do DSEI Mato Grosso do Sul, destacou uma Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena para atender as vítimas. A equipe é composta por um enfermeiro, um médico, um agente de saúde indígena e um técnico de enfermagem. De acordo com o ministério, “o grupo mantém coordenação com o município e o estado para a regulação de pacientes em casos de média e alta complexidade na rede SUS”.

 

•        Lideranças indígenas são perseguidas e atropeladas ao voltar de moto para retomada em Douradina (MS)

Um casal Guarani-Kaiowá, lideranças de uma retomada da Terra Indígena Panambi Lagoa-Rica, em Douradina (MS), relata ter sofrido uma tentativa de homicídio no último sábado (24). Voltavam de moto da cidade para a área que, sobreposta por fazendas, está ocupada pelos indígenas desde meados de julho, quando um carro os perseguiu e atropelou. O homem machucou a perna e a mulher se feriu seriamente no rosto, além do joelho e braço. Por segurança, ambos pediram para não serem identificados.

Este é o quarto ataque sofrido pelos Guarani-Kaiowá desde que realizaram três retomadas neste território indígena, em 13 de julho. Além de um acampamento de fazendeiros, montado a poucos metros de uma das áreas recuperadas, o tekoha — ‘lugar onde se é’, em guarani — Yvy Ajerê, houve atentados contra as comunidades indígenas feitos por homens armados, de cima de caminhonetes. No último 3 de agosto, entre dez feridos, dois jovens foram alvejados no pescoço e na cabeça, mas sobreviveram.

Desta vez, segundo relata o casal Guarani-Kaiowá ao Brasil de Fato, a perseguição na estrada foi feita por “pistoleiros” em um uno vermelho. Por volta das 19h deste sábado (24), quando voltavam do mercado, os indígenas da retomada Yvy Ajerê passaram de moto e foram reconhecidos por homens que estavam em um bar. Ainda de acordo com eles, os homens os perseguiram de carro por cerca de 1 km, até os derrubar.

Sobreposta por fazendas, a TI Panambi-Lagoa Rica já foi reconhecida e delimitada pela Funai como de ocupação tradicional indígena em 2011. Passados 13 anos, o processo demarcatório, que depende ainda da portaria declaratória e da homologação, está estagnado. Cansados de esperar, indígenas optaram por recuperar áreas das quais seu povo foi expulso na década de 1940, quando o Estado brasileiro os confinou em reservas e emitiu títulos de colônias agrícolas para fazendeiros.

Desde o acirramento do conflito, a região recebeu comitivas de órgãos como Funai e Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Um efetivo da Força Nacional, vinculada ao Ministério da Justiça, foi enviado ao local e atualmente estabeleceu uma base no território. A tensão, no entanto, segue.

No último 16 de agosto, produtores rurais “em defesa do direito de propriedade” organizaram um “tratoraço” que desfilou pelas ruas de Douradina, com bandeiras do Brasil e ao som do hino nacional.

 

•        Quilombos e impunidade: resíduo da lógica escravocrata

O projeto colonial que se desenvolveu no Brasil teve por princípio criar aquilo que Achille Mbembe chama de “um mundo composto por duas categorias de pessoas: de um lado, os sujeitos que agem, do outro, os objetos sobre os quais se intervém”. O escravizado, assim, é a experiência da cisão do humano e da ausência de autonomia, vontade e razão. Essa violência a um só tempo de dessubjetivação, exploração e extermínio foi o embrião dos grandes genocídios do século XX.

A transferência da violência em suas formas mais abjetas para o solo europeu foi o motor da criação, logo após a Segunda Guerra Mundial, da Organização das Nações Unidas e da subsequente Declaração Universal dos Direitos Humanos, que formula um regime de direitos universais para todas as pessoas. Perante esse regime de direitos, Estados, como o brasileiro, assumem o compromisso com sociedades inclusivas, diversas e orientadas pela paz. Isso é o que também diz a nossa Constituição, que anuncia a igualdade e a justiça como valores supremos.

As normas de direitos humanos partem de duas premissas muito simples: a violação deve ser investigada e punida em tempo razoável e as vítimas e seus familiares devem ter centralidade nos processos de apuração de responsabilidade. O Estado brasileiro já foi condenado por diversas vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por não tomar medidas eficazes para reprimir delitos e proteger pessoas, gerando impunidade e violando direitos humanos. São exemplos disso os casos Ximenes Lopes, Sétimo Garibaldi, Escher, Gomes Lund, Favela Nova Brasília, Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde, Herzog, Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus, Márcia Barbosa e Sales Pimenta.

Nos assassinatos de pessoas quilombolas, da falta de ação eficaz do Estado brasileiro decorre uma situação intolerável de impunidade sistêmica. O assassinato de Mãe Bernadete expôs de forma crua o problema da omissão e da falta de diligência devida nos homicídios de quilombolas. Com sua morte, a sociedade tomou conhecimento de que ela lutava há mais de seis anos por justiça pelo assassinato de seu filho Flávio Gabriel Pacífico, o Binho do Quilombo. Depois de a própria família ter conduzido investigações para elucidar o caso, suspeitos da morte de Binho foram finalmente identificados no último mês de julho.

Dados inéditos da Conaq, reunidos no relatório “Assassinatos de Quilombolas – ameaças a quilombolas defensores de direitos humanos 2019-2024”, apontam para uma quantidade desproporcional de homicídios de pessoas quilombolas nos estados do Maranhão, da Bahia e do Pará, assim como a lentidão absurda nos processos de titulação dos quilombos. As duas questões se alimentam e mantêm os resíduos de uma lógica escravocrata: negar direitos e eliminar corpos negros.

É a própria Constituição brasileira que afirma o reconhecimento do domínio das terras que comunidades quilombolas ocupam. A inércia do Estado na titulação reforça a percepção dos grupos hegemônicos de que são os únicos portadores de direitos, inclusive a ideia de que seu poder inclui o uso inconsequente da violência. Quando os processos judiciais se eternizam, os fatos não são devidamente investigados e os agressores não são responsabilizados, vai sendo semeada a certeza da impunidade e a de que o direito à vida da população quilombola não é fundamental para o Estado brasileiro.

Poucos meses antes de sua morte, Mãe Bernardete tinha estado com a Presidente do Supremo Tribunal Federal em visita ao Quilombo Quingoma, na Bahia. Em sessão do Colegiado, a Ministra afirmou que “ainda temos um longo caminho a percorrer, como sociedade, no sentido de um avanço civilizatório e da efetivação dos direitos fundamentais que nossa Constituição Cidadã assegura a todos”. Quanto as famílias quilombolas ainda terão que percorrer? Quando alcançarão paz, segurança e direitos nos seus territórios?

 

Fonte: Por Leandro Barbosa, em The Intercept/Brasil de Fato/Correio Braziliense

 

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