quarta-feira, 28 de agosto de 2024

O trabalho doméstico no capitalismo periférico

Os dados sobre o trabalho doméstico remunerado no Brasil apenas confirmam um fato já notório: sendo a categoria laboral que “mais emprega mulheres em nosso país”, o trabalho doméstico pago corresponde à ocupação de “principalmente mulheres negras com baixa escolaridade e oriundas de famílias de baixa renda”. Em termos numéricos, isso significa que em 2022 esse tipo de trabalho respondia por 12,6% do total da ocupação feminina e menos de 1% da ocupação masculina. Se em aparência essa porcentagem pode ser vista como pequena, pois equivale a pouco mais de um décimo das mulheres economicamente ativas, por outro, ela também indica o número acachapante de 5,8 milhões de mulheres, cujos indicadores raciais aparecem como ainda mais significativos. Contabilizado o número total das empregadas domésticas, 61,5% correspondem a mulheres negras, o que quer dizer que a cada 100 trabalhadoras negras, 16 se dedicam a esse trabalho — no caso das mulheres brancas, esse número cai para menos de 9.

Se as estatísticas oficiais não expõem nenhuma novidade, é porque elas ratificam um perfil bastante familiar da trabalhadora doméstica brasileira. Em primeiro lugar, se trata de uma ocupação majoritariamente feminina, marcada por um recorte racial histórico e que, acima de tudo, é determinada por uma remuneração abaixo da média. Enquanto as trabalhadoras domésticas recebiam em torno de 90% do valor do salário-mínimo vigente em 2022, quando são trabalhadoras sem carteira assinada, esse número vai para 60%. Mais uma vez, são as mulheres negras o grupo de maior vulnerabilidade, ganhando 84% do valor que ganham as mulheres brancas para realizar a mesma atividade. A conclusão óbvia é que o trabalho doméstico no Brasil possui gênero, classe e raça.

Dada a natureza simultaneamente exploratória e feminina desse tipo laboral, é compreensível que o feminismo marxista tenha elevado esse problema a um estatuto de centralidade. São as mulheres que cuidam, que limpam, que fazem as refeições e administram o lar. São elas que criam os filhos e zelam pelos idosos. São as mulheres que fornecem desde suporte emocional até vestimenta pronta para uso. Assim, é justamente por conta do caráter de manutenção da sobrevivência, da própria subsistência familiar do dia a dia, que as feministas reivindicaram a categoria teórica, presente em Marx, de Reprodução Social: se a sociedade precisa se reproduzir para se manter e se perpetuar, no capitalismo, é a manutenção desse modelo econômico e social que deve ser assegurado, algo que seria impossível caso não houvesse trabalhadores prontos para vender sua força de trabalho. E como se daria a reprodução da força de trabalho? A partir de todo o processo de alimentação, limpeza, cuidados com a saúde etc., o que compreende o conjunto de atividades laborativas da manutenção da casa e das atividades biológicas da família que, embora muito simples, é o que permite que a sociedade capitalista continue funcionando (Fraser, 2016, p. 99; Fraser, 2017, p. 147).

Embora fundamental para a perpetuação do capitalismo, o trabalho doméstico só recebeu a devida atenção teórica das feministas a partir das décadas de 1960–70. Esse enfoque levantou, contudo, uma considerável resistência por parte da ortodoxia marxista que se recusava a considerar o trabalho doméstico como trabalho em primeiro lugar. O longo debate que a Teoria da Reprodução Social (TRS) estabeleceu sobre a categorização teórica das atividades domésticas girava em torno de como elas não participavam do circuito produtivo de mercadorias strictu sensu, o que as relegava a uma posição secundária nas análises sobre o capitalismo. As discussões acadêmicas, portanto, ficaram às voltas com a impossibilidade de encaixar o trabalho doméstico feminino nos pré-requisitos marxistas da produção capitalista, sobretudo industrial. Análises teóricas sobre como essa atividade era improdutiva sob o ponto de vista do valor e do circuito monetário refletiam a miopia acadêmica em considerar o fato irrefutável de que, sem alguém que lave, passe, cozinhe e limpe, simplesmente não há produção e subsequentemente capitalismo (Federici, 2019, p. 68; Dalla Costa; James, 1972, p. 11).

De modo sintético, portanto, é dessa contradição que a TRS parte: do fato de que a reprodução social possui um lugar indispensável no sistema capitalista e, mesmo não sendo reconhecido enquanto tal, as mulheres que o performam estão em uma posição de superexploração. Uma exploração, portanto, tipicamente feminina, em que gênero e trabalho se entrecruzam (Young, 1981, p. 45). Essa problemática se torna ainda mais relevante na medida em que o trabalho doméstico na contemporaneidade não diz respeito apenas às atividades de donas de casa que cuidam da própria família, ou ainda de mulheres que trabalham fora e, quando terminam a jornada de trabalho, precisam dar conta privadamente das atividades do lar (dupla jornada). Ao contrário, o que observamos é o tipo de trabalho remunerado, tanto feito por empregadas domésticas mensalistas quanto diaristas. É aqui que retomamos os dados inicialmente expostos incialmente, que revelam como as trabalhadoras domésticas pagas correspondem à categoria que mais sofre com má remuneração e exploração. Essas relações foram, portanto, devidamente contempladas pela TRS, uma vez que as dinâmicas entre a exploração capitalista e o recorte de gênero foram colocadas em primeiro plano nas discussões sobre o trabalho feminino. E indiretamente se contempla também o marcador racial, a partir da evidência incontestável de que são as mulheres negras que mais se inserem na categoria do trabalho doméstico remunerado.

Dizer que o aspecto racial é examinado de modo indireto significa, contudo, que esta não parece ter sido uma preocupação fundamental nas origens da TRS. Pois, enquanto a relação entre opressão feminina e exploração capitalista esteve na base do feminismo marxista como um todo, não é possível afirmar o mesmo sobre a questão de raça. Esse problema não apenas foi apontado pelas próprias teóricas da TRS em textos mais recentes, mas se tornou um imperativo teórico atual (Bhattacharya, 2017, p. 89; Bakker; Silvey, 2008, p. 5-6) como meio de reatualização da TRS no que se refere a conflitos sociais e arranjos contemporâneos sobre o trabalho doméstico. Isso explica a eclosão de uma série de pesquisas empíricas que possuem como objeto o trabalho de mulheres migrantes na Europa e na América do Norte (Hopkins, 2017, p. 136–138). Por um lado, essas investigações apontam para como os países das zonas centrais do capitalismo têm gradativamente incorporado modalidades de trabalho informal feminino, sobretudo sob o ponto de vista da não aplicação de direitos trabalhistas; por outro, elas indicam a tendência que tem se tornado cada vez mais hegemônica de um processo de terceirização das atividades domésticas (Glenn, 1985; Castilho; Melo, 2009; Hirata, Kergoat, 2020). Algumas pesquisadoras vão ainda mais longe ao identificar uma transferência direta de valor: é o trabalho das mulheres migrantes das periferias do capitalismo que permite que as mulheres do centro possam abandonar o modelo de dona de casa ou da jornada dupla e se dedicar integralmente às respectivas carreiras (Plá, 2023, p. 10).

Entretanto, essas pesquisas se contentam em mostrar uma fotografia imediata do problema racial, se detendo em uma análise descritiva de um estado de coisas que apenas apreende o efeito e não a causa. Que as mulheres racializadas são as mais vulneráveis à exploração do trabalho doméstico é algo aceito de modo unânime, mas pesquisas que se detenham nas causas desse recorte racial não parecem, de fato, terem sido uma preocupação inicial da TRS. A impressão que se tem é que a relação entre gênero e exploração capitalista sobredetermina o recorte racial, que se torna uma particularidade, especificidade ou mero detalhe nas análises do feminismo marxista. Pensar uma abordagem da reprodução social que não exclua uma consideração racial significa, portanto, recuperar o processo histórico — e não seria essa, justamente, a tarefa do materialismo histórico? —, e mais especificamente a história das localidades marcadas por um passado colonial e que foram absorvidas por relações capitalistas. Isso implica, portanto, uma abordagem que tanto dê conta da investigação sobre o capitalismo, quanto também abranja as relações sociais que geraram uma estratificação social pautada na racialização. Essa avaliação, para nós, se daria através da concepção analítica de centro-periferia, tal como compreendida nas teorias dos sistemas-mundo.

<><> A reprodução social como um problema periférico

Um dos vários méritos da teoria dos sistemas-mundo foi a busca por uma compreensão do sistema capitalista a partir de dois princípios basilares: primeiro, que se trata de um sistema de acumulação; segundo que, para acumular, o capitalismo precisa sub-repticiamente se auto expandir. A própria noção marxista de acumulação primitiva remonta aos empreendimentos coloniais que marcaram a história do continente americano entre os séculos XVI e XVIII (Marx, 2013, p. 829; Marx, 2011, p. 408). Mas além da pilhagem e genocídio, coube também ao sistema capitalista promover a alteração estrutural das sociedades pré-capitalistas quando engolfadas pelo capital. A desorganização de formações sociais pré-capitalistas envolveu a modificação das próprias atividades produtivas das áreas colonizadas, que passaram a se orientar economicamente para o exterior, desenvolvendo uma produção de natureza extrativista para abastecimento das metrópoles coloniais (Gunder Frank, 1969, p. 282). Para os teóricos do sistemas-mundo, esse é o início da longa e dura trajetória de um capitalismo dependente, marcado por trocas desiguais (Amin, 1974, p. 88) que, em última instância, organizam áreas periféricas subordinadas a centros do capitalismo — aquilo que hoje se entende como “capitalismo avançado”.

Essa digressão extensa se torna necessária para explicar a hierarquia consolidada na economia mundial, organizada a partir de periferias subordinadas a centros econômicos — organização da economia em zonas geográficas que já nos primórdios do capitalismo “atribuiu papéis econômicos específicos, desenvolveu diferentes estruturas de classe, utilizou, consequentemente, diferentes modos de controle do trabalho e lucrou desigualmente com o funcionamento do sistema” (Wallerstein, 1974, p. 162). O que, contudo, mais marca a relação entre centro e periferia é uma diferenciação no que se refere ao trabalho, pois enquanto os países de centro mantêm um tipo de trabalho formal e remunerado — principalmente marcado pelo modelo fordista do pós-guerra, nas periferias, a atividade laboral é determinada por uma baixa qualificação, má remuneração, informalidade e radical exploração.

Essas formas diferenciadas de trabalho, uma típica das áreas periféricas, outra referente às áreas centrais do capitalismo, não são desconexas, mas antes se interligam no próprio capitalismo enquanto um sistema de dimensões globais (e que fundam, de acordo com a teoria dos sistemas-mundo, uma divisão internacional do trabalho). Isso explica, portanto, de que modo o capitalismo não é homogêneo, mas essencialmente desigual. Essa desigualdade ou desequilíbrio é explicada pela própria divisão entre centro e periferia, que manifesta não apenas atividades produtivas desequilibradas, mas sobretudo modos de trabalho profundamente distintos. É aqui que a dimensão do trabalho doméstico feminino nas periferias do capitalismo pode ser compreendida, em consistência com os dados recentes que citamos no início desse texto. Se, por um lado, eles apontam para um trabalho de mulheres de baixa escolaridade e oriundas de famílias de baixa renda, por outro, eles também revelam que a maioria das mulheres que perfazem esse tipo de trabalho não possuem vínculos formais, estando na categoria de diaristas enquadradas no setor de serviços.

Se o capitalismo, contudo, compreende um sistema econômico-social global, que se articula pela divisão de áreas periféricas e áreas centrais, é importante notar como relações de gênero e diferenças raciais acabam sendo mobilizadas e incorporadas às próprias relações capitalistas. A metáfora já clássica do matrimônio infeliz (Young, 1981; Hartmann, 1979) entre feminismo e marxismo evidenciou a dificuldade de apreender a natureza da união entre relações culturais patriarcais e relações capitalistas. Pois, na medida em que trabalho doméstico se insere em uma dinâmica privada entre homem e mulher, uma que revela laços de subordinação ancorados nas diferenças de gênero — ou seja, que entende o trabalho de cuidar da casa e criar os filhos como decorrente da constituição naturalmente doméstica das mulheres — é o aspecto de dominação de gênero que é posto em foco (Mies, 1986, p. 36). Assim, evidencia-se que a opressão experienciada pelas mulheres parece preceder historicamente dinâmicas capitalistas. Essa opressão de gênero, entretanto, persiste nas relações de trabalho atuais: seja na medida em que o trabalho feminino no âmbito doméstico sequer é visto como trabalho, mas como hobby (Mies, 2012, p. 140), seja pelo fato de serem geralmente associadas a características ou atributos femininos de modo a aparecer como “naturais” da mulher, ou ainda apresentando uma indistinção entre vínculos profissionais e relações pessoais, levando a uma indiferenciação entre o que é trabalho e o que é vida privada. Em outras palavras, isso significou que as relações culturais de dominação de gênero foram aproveitadas e estrategicamente utilizadas a favor da exploração do trabalho, de natureza capitalista.

Desse modo, a separação entre dominação de gênero e exploração do trabalho não parece se sustentar: ao contrário, é com a expansão do capitalismo que esses campos se misturam, de modo que as relações culturais de dominação passam a se adequar perfeitamente à exploração capitalista. Isso significa dizer, portanto, que o trabalho de subsistência (Bennholdt‐Thomsen; Mies, 2000, p. 11) tipicamente feminino, que também pode ser entendido como manutenção da família e da casa, incorporam aspectos capitalistas como, por exemplo, sua monetarização (Amin, 1974, p.142) e, portanto, sua absorção em relações de mercado — justamente a modalidade do trabalho doméstico remunerado enquanto serviços prestados. O que se percebe, portanto, é como as relações que são entendidas como culturalmente patriarcais são absorvidas pelas relações capitalistas em um processo de “soma” de dominação e exploração.

Uma divisão racial e de gênero

Como já apontamos, a TRS parece ter sido bastante bem-sucedida em descrever e analisar como problemas de gênero se mesclam a problemas de exploração do trabalho — e que ressoam em questões tipicamente marxistas como salário ou remuneração, tempo de trabalho etc. No que se refere ao trabalho doméstico, entretanto, o problema racial parece ter sido sub-teorizado, embora esse recorte seja incontornável em localidades que compartilham tanto de um passado colonial como de herança escravocrata. Vimos de que modo as relações de gênero pré-capitalistas foram adequadas e remoduladas ao serem engolfadas pelo capitalismo. Nosso ponto aqui é que algo similar teria ocorrido com as relações raciais. Em um texto extremamente elucidativo sobre tais dinâmicas, Stuart Hall assinalou como “o racismo nas sociedades escravistas de plantation na fase mercantilista do desenvolvimento capitalista mundial tem um lugar e uma função, meios e mecanismos da sua efetividade específica” (Hall, 1980, p. 337). Ou seja, mesmo que existam racismos florescentes nas formações sociais pré-capitalistas, ao lidar com formações sociais mais recentes, estas são reorganizadas e rearticuladas com as relações de produção do capital. Tal como teria ocorrido com a questão de gênero, as estratégias de dominação racial em períodos anteriores do capitalismo passam a ser mobilizadas e empregadas para a exploração capitalista.

Nesse sentido, é verdade que diferenças étnicas sempre existiram no mundo, mas categorias raciais que se cristalizaram enquanto reificação de certos grupos étnicos, marcados por uma exploração sistemática possuem uma data histórica (Balibar; Wallerstein, 1991, p. 80). A leitura da teoria dos sistemas-mundo sobre o processo colonial indica, assim, um duplo movimento histórico de expansão: a expansão da economia-mundo capitalista que significou, conjuntamente, a expansão de domínio europeu. Os dois processos são indistinguíveis pelo simples fato de que são inseparáveis — ou seja, falar de uma ordem hierárquica social baseada em raça é o mesmo que falar da economia-mundo capitalista em expansão. Embora esse argumento pareça muito sintético ou simplificador, é isso que fundamenta a difusão do capitalismo centrado na Europa, que se valeu de uma escravidão com marcadores raciais (escravidão negra) e de um modelo de plantations (agricultura capitalista) que funcionou como um pontapé para a criação de uma hierarquia racial relacionada à divisão do trabalho. O que se percebe, portanto, é a persistência de certas estratificações sociais que, já presentes no regime escravocrata, continuam nas periferias do capitalismo — o mesmo trabalho servil de mulheres anteriormente escravizadas sendo agora produzido por empregadas domésticas (Ratts; Silva, 2023, p. 195). Esse movimento de hierarquização racial que se torna uma hierarquização no mundo do trabalho é expressão do próprio processo em que a maior parte das antigas colônias se transforaram nas periferias do capitalismo.

Voltar no passado e determinar as raízes coloniais como explicação para o estado presente significa observar como a condição atual do trabalho doméstico é reflexo da divisão racial do trabalho, consolidada a partir de uma ordenação que excede o âmbito regional e que divide o mundo entre periferias e centros. Desse modo, “raça e, portanto, o racismo é a expressão, promoção e consequência das concentrações geográficas associadas a uma divisão axial do trabalho” (Balibar; Wallerstein, 1991, p. 80). Uma divisão hierarquizada, em que partes do mundo são marcadas não só pela presença massiva de pessoas racializadas, mas que são simultaneamente submetidas a um trabalho exploratório. São nas periferias do capitalismo mundial que observamos a coexistência de uma lógica de dominação racial e de uma superexploração laboral, que confirma a divisão internacional do trabalho. Em outras palavras, lugares com modalidades de trabalho precário e informal, altamente exploratório, com trabalhadores não muito especializados ou qualificados. É esse contexto que leva Lélia González a afirmar que o Brasil possui uma divisão racial e sexual do trabalho, que funcionaria como um processo de tríplice discriminação sofrido pela mulher negra (enquanto raça, classe e gênero), e que a determina a ocupar um lugar na força de trabalho marcado pela concomitância da exploração e dominação (González, 2020).

Cabe ainda uma última consideração. A afirmação de que a atividade das empregadas domésticas seria um trabalho improdutivo, com relações pré-capitalistas, pode nos conduzir à conclusão de que basta haver um amadurecimento total do capitalismo, seguido de uma intensificação produtiva (que, portanto, envolveria um aumento nos números de empregos formais das mulheres), que esse tipo laboral desapareceria automaticamente. Esse argumento parece estar implicado na concepção de que o trabalho doméstico feminino é comum em realidades de capitalismo pouco amadurecido ou “atrasado”. Termos como subdesenvolvimento ou terceiromundismo parecem sugerir a ideia de que, ao se alcançar estágios mais amadurecidos do sistema capitalista, haveria a inserção das mulheres na proletarização, com ocupações com melhores condições e salários. Essa posição é, contudo, equivocada, não apenas porque é plenamente possível que formações sociais capitalistas coexistam com as não-capitalistas, mas porque para haver capitalismo, é necessário que formações sociais não-capitalistas existam. Nesse aspecto, Bennholdt‐Thomsen, Werlhof e Mies (1988, p. 159) estavam corretas ao afirmar que o trabalho feminino doméstico, longe de ser um mero resquício de “sistemas patriarcais arcaicos remanescentes”, é antes parte constitutiva do capital.

Isso significa dizer que o próprio funcionamento do capitalismo exige a existência de atividades laborativas que não entram na categoria do trabalho proletário formal. Não há contradição nenhuma aí: trabalhos precarizados e de subsistência, longe de serem contrários ao desenvolvimento moderno, funcionam antes como expressão do capitalismo, mais especificamente do capitalismo periférico. Sendo um sistema heterogêneo e desigual, com alcance global dada a sua natureza auto expansiva, o capitalismo apresenta diferenças internas que obedecem a organização entre centro e periferia. Se, por um lado, o modelo de trabalho nos centros foi historicamente assegurado por institucionalidades jurídicas, com amparo estatal, leis trabalhistas e remuneração digna, nas periferias, a realidade se torna o oposto: trata-se antes de atividades informais, com má remuneração e de superexploração. Nesse aspecto, o sistema capitalista não funciona apesar das desigualdades de gênero e da hierarquização de raça: ao contrário, essas estratificações e desigualdades fazem parte das estruturas econômicas ou, mais radical ainda, funcionam como pré-condições para que o capitalismo se sustente. É uma necessidade que o sistema capitalista, em sua extensão global, se faça em cima de desigualdades de gênero e de racismo, através da divisão entre centros e periferias.


Fonte: Por Mirian Monteiro Kussumi, na Revista Rosa


 

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