Mudança Climática: negação e distração
moldam o debate global
Ogum é o orixá do
ferro, da agricultura e da tecnologia. Assim como Prometeu, que trouxe algo
fundamental e transformador para os seres humanos (o fogo), Ogum oferece o
ferro e suas ferramentas, que são igualmente cruciais para a humanidade. Nessa
encruzilhada de mitos e ìtàn, o ponto de encontro é a necessidade incessante da
busca do ser humano por conhecimento e, com ele, a possibilidade de promoção de
benefícios coletivos. Por outro lado, os abusos provenientes do poder e da
concentração de riquezas, imputa à sociedade uma redobrada atenção quanto às
distorções resultantes do uso desregrado da ciência e da tecnologia. Ferro e
fogo também são instrumentos de guerra, fome, exploração e morte.
Entramos no século XXI
com o entendimento de que o conhecimento simbolizado por Ogum e Prometeu não
foi utilizado estritamente para o bem-estar coletivo. O que testemunhamos é um
processo que intensifica a aplicação desse conhecimento para expropriação, apagamento
e dominação, além da construção de consensos e identidades forjadas não pelo
fogo e ferro, mas pelo capital. Isso reflete a maneira como a humanidade se
apropriou dos benefícios oferecidos por essas divindades de resistência e
força, mesmo diante da desaprovação de Zeus e dos Orixás.
Nessa perspectiva
simbólica, o conhecimento direcionado para expropriação e dominação se
intensifica com o desenvolvimento da máquina a vapor – corte histórico no
funcionamento dos sistemas energéticos – elemento fundamental da Revolução
Industrial, considerada vetor chave da consolidação do modo de produção
capitalista. Com ela, encerra-se a fase de primazia das fontes de energias
biológicas e inicia-se a escalada do triunfo e hegemonia dos combustíveis
fósseis, consolidando ainda mais o domínio do capital sobre as fontes de
energia. Controla-se o fogo e, mais adiante, explora-se exaustivamente essas
fontes de energia de origem fóssil.
Na atualidade,
credita-se à queima desses combustíveis a maior responsabilidade pela emissão
de gases que intensificam o efeito estufa, o que, por sua vez, motiva a chamada
mudança climática global. Tal como Prometeu foi penitenciado ao acorrentamento
a uma rocha no Cáucaso e Ogum ao degredo, na contemporaneidade a punição vem na
forma do urgente enfrentamento das crises ambientais e das emergências
climáticas, propagandeada como responsabilidade de todos. David Harvey, em seu
Enigma do Capital (2011), aponta que a responsabilização de todos alivia a reza
da classe capitalista, mantendo-a feliz, uma vez que desloca e mascara seu
papel na crise, retirando-a da cena como protagonista do problema.
Nesse processo de
partição de responsabilidades comuns, descuida-se, como método, das assimetrias
que imperam no acesso à energia no mundo. Importa registrar que apenas 1% da
população mundial concentra 50% da riqueza planetária. Atualmente, contabiliza-se
cerca de 3,2 bilhões de pessoas que não fazem uso de fogões a gás e, por
consequência, utilizam lenha, esterco seco e outros insumos de baixo valor
energético para a cocção de seus alimentos. Soma-se a esse quadro de pobreza
energética, o fato de que 1,2 bilhão de pessoas não têm acesso à rede de
energia elétrica em seus domicílios. Esses números expressam as profundas
desigualdades socioeconômicas e espaciais impostas pelo modelo de circulação de
mercadorias em voga no planeta.
Nesse contexto, as
alterações climáticas e suas consequências para a sociedade revestem-se de
prioridade. Destarte, os estados nacionais — seja voluntariamente, respondendo
a seus próprios interesses, seja mediante promessas de ajuda financeira dos
países centrais — comprometem-se a atingir emissões líquidas nulas de dióxido
de carbono (CO2) até meados do século com o objetivo explícito de limitar o
aumento da temperatura a 1,5°C, exigindo uma redução das emissões de CO2 de 45%
até 2030. Já uma redução de 25% até 2030
se faz necessária para limitar o aquecimento a 2°C. Para atingir esse objetivo,
catalogam-se diversas ações possíveis de serem suportadas pelo mercado,
destacando-se a promoção da denominada economia de baixo carbono, entre outras.
O debate relativo à
mudança climática global revela uma dicotomia explícita. De um lado,
encontramos um segmento que se empenha em negar a existência da mudança
climática, empregando diversas estratégias para promover uma cosmovisão
distorcida que rejeita o conhecimento científico e manipula a percepção
pública. Esse grupo ignora a ciência estabelecida, cria um debate enviesado e
sabota as ações necessárias para enfrentar a crise climática. Nas palavras do
filósofo Zygmunt Bauman, apresentam um “leve desvio de olhar” sobre a garantia
da sobrevivência da espécie humana. Nesse sentido, Noam Chomsky (2014) destaca
que, por essa lógica, consensos são construídos, não apenas controlando mentes,
mas conformando-as.
Em um campo
antagônico, há um segmento de maior amplitude que dá relevo à fé na ciência ou
crença na tecnologia. Este grupo dissemina a ideia de que, por meio de novas
tecnologias, é possível enfrentar a mudança global do clima. Como método de
alcance de seus objetivos, sedimenta-se um novo consenso que credita a urgente
necessidade de se assegurar uma transição energética de abrangência planetária.
A simplificação de
caminhos, a exemplo da transição energética, é uma afronta ao pensamento
crítico, uma vez que esse desenlace não contempla a questão da desigualdade
social, assim como não propõe, por definição, uma alteração do modo de produção
vigente. Ao contrário, soma-se a uma visão conservadora, embora faça uso de uma
roupagem de sofisticação, não apresenta um elaborado decoro intelectual.
Esse encaixilhar a
realidade, responde, segundo Bauman (2001), a imperativa necessidade posta pela
contemporaneidade de buscar convergências, criar consensos, fundir ideias já
consolidadas e gerar novas abstrações mais bem ajustadas às esperanças humanas
com a promessa adicional de reduzir assimetrias presentes nas estruturas
anteriores.
No ambiente global de
construção de consensos, Mészáros (2011) critica a constante afirmação do
capital de que “não há alternativa”, máxima frequentemente associada à frase
igualmente tendenciosa de autojustificação que proclama que “no mundo real” não
pode haver alternativa ao curso das ações em movimento. Supõe-se, então, que
essa proposição seja uma verdade óbvia, isentando automaticamente do ônus da
prova todos que continuam a afirmá-la.
As verdades
encapsuladas nos consensos construídos demandam a articulação de inúmeras
frentes. Do balaio etimológico do desenvolvimento sustentável – esse já
apartado das ideias basilares de Ignacy Sachs – sustentabilidade e outras
derivações, germina-se esse mais novo “consenso”: não mais revoluções
energéticas, agora transições, mesmo sem garantir aonde se quer chegar e nem o
que é inegociável nessa travessia.
Em seu corolário, a
transição energética (re)ordena as prioridades dos Estados Nacionais, sendo
oferecida como uma nova esperança que a sociedade deve abraçar. Esse novo
consenso respalda-se nos sinais do aumento crescente das concentrações de CO2
na atmosfera, mostrando de forma inconteste que as esperanças depositadas no
ideário da sustentabilidade patinam. Isso posto, é inadmissível que o mundo
pautado na promoção da sustentabilidade siga mantendo níveis insustentáveis de
pobreza e iniquidades no acesso aos direitos humanos fundamentais.
Esse novo consenso
enfatiza a urgência de transicionarmos de uma matriz energética fóssil para uma
matriz descarbonizada. Neste admirável mundo novo, as fontes renováveis assumem
um papel transformador, como um “pó mágico de pirlimpimpim”, que abre possibilidades
para um futuro sustentável utópico.
A formulação desse
novo sólido enfrenta movimentos de descontentamento quando se encara a justiça
energética. Nessa arena, é permitido reivindicar tudo, contando que nada de
substantivo, que afete a estrutura de produção e acumulação, seja realmente
materializado. Vociferam-se alteridades como escape, garantindo-se a manutenção
de tudo no mesmo lugar: a indústria do petróleo é apontada como a financiadora
da transição energética, senda essa risível. Nessa roda, nossas autoridades
tocam pandeiro para europeu aplaudir.
Reafirma-se, nesta
senda, a máxima de “fazer quadrados de três lados”, como externada por Mészáros
(2007). Seus formuladores, em um processo de hipnose orientado à adesão a um
novo consenso, que segue a lógica de fragmentação do antigo consenso, agora reformatado
e reafirmado mais forte. Não logram, assim, ordenar saídas orientadas à
igualdade substantiva, que superem a fé no progresso cultuada no altar
tecnológico.
Os defensores desse
novo velho consenso, como se um ato heroico assim o fosse, alardeiam que a
transição energética exigirá investimentos elevados em infraestrutura para
geração “limpa” de energia. Camuflam, em contrapartida, os significativos
impactos regionais e/ou locais, criando também zonas de sacrifícios, que afetam
grupos sociais vulneráveis, os quais recebem uma quantidade desproporcional de
fontes de problemas ambientais. Importa aqui desembaçar os olhos dos que
propagam o discurso hegemônico ecológico de consenso posto como inegociável.
Nesse espetáculo de
ilusionismo, a transição energética tem sido o grande truque de mágica. As
promessas de ações para mitigar gases de efeito estufa foram apresentadas como
a única solução capaz de salvar o planeta. A cada ano, o mesmo número é
repetido nas 29 edições da Conferência do Clima, com um foco inabalável na
mitigação. Enquanto isso, o palco é dominado pela expansão das energias
renováveis, como se fossem a peça única deste grande show.
Ao contrário do
esperado, o crescimento das emissões supera, e muito, o que foi projetado pelo
Protocolo de Kyoto e o Acordo de Paris. Isso representa um evidente fracasso
nas negociações internacionais, reforçando o antagonismo entre o modo de
produção e circulação de mercadorias e a promoção da sustentabilidade.
Nessa cena, uma “nova
esperança” é apresentada: a adaptação à mudança do clima como possibilidade de
preservação da humanidade, mas sob a égide do modo de produção vigente. Essa
alternativa ganha corpo diante do aumento da frequência e intensidade dos eventos
climáticos extremos, forçando uma mudança de roteiro na forma de apresentação
dos consensos. Importa destacar que o mercado ao assumir a impossibilidade de
avançar na mitigação e reorientar a “biruta”, por sobrevivência, assume que o
modo de produção se manterá no “trilho que o trouxe até aqui”.
O mote da adaptação é
agora sustentado pelo termo “urgência climática”, no qual os eventos
registrados já em 2024, credenciam esse novo consenso que ganha espaço na mídia
corporativa. A tragédia recente do Rio Grande do Sul é simbólica neste debate.
A imprensa nacional e internacional apresenta o evento e seus danos como
resultado do seu elevado volume de chuvas decorrente da mudança climática. É
recorrente na mídia corporativa responsabilizar o excesso de chuvas pelo
desastre, omitindo como método o real endereçamento. Não é a chuva que mata,
mas sim a desigualdade que alimenta o capitalismo. Há uma distribuição desigual
dos riscos no espaço, assim como o acesso a serviços sociais e de
infraestrutura. Ignora-se, portanto, a desigualdade gerada pela distribuição
dos ativos econômicos produzidos, sendo este um aspecto crucial para a questão
em discussão. Na visão de Porto-Gonçalves (2015), tem-se empregada uma
estratégia de concentração dos proveitos articulada com a organização espacial
da socialização dos custos.
Nesse sentido,
compreende-se que não haverá uma luta eficaz contra os efeitos da mudança
climática enquanto persistirem a pobreza e as assimetrias no acesso a serviços
básicos, incluindo as formas modernas de energia. Para que todos se apropriem
da forma equivalente aos resultados obtidos, a transição energética deve ser
justa, o que exige implementação de políticas públicas e diálogo social
necessário para avançar, devendo gerar benefícios a toda sociedade, a partir de
uma perspectiva inclusiva, garantindo a sobrevivência da humanidade, mas também
promovendo uma sociedade digna, ética e próspera, ou seja, reafirmar que a
promoção da sustentabilidade como um caminho inseparável da realização
progressiva da igualdade substantiva, formulada em Mészáros (2007).
Nesse âmbito,
destacamos o “ecologismo dos pobres”, proposto por Joan Martínez-Alier, que
aborda as lutas e os movimentos que emergem principalmente das comunidades
marginalizadas e empobrecidas, especificamente do Sul Global. Essas lutas não
são motivadas apenas por uma preocupação abstrata com o “meio ambiente”, mas
também por questões de sobrevivência, justiça social, e direitos territoriais.
As comunidades resistem à destruição ambiental não apenas por uma preocupação
com a natureza em si, mas porque a terra e os elementos naturais são essenciais
para sua sobrevivência, identidade e cultura.
Na prática, o que
vemos é um tipo de transição feita por cima que sufoca os “de baixo”. O que não
se esperava é que mesmo com a missão de invisibilizá-los, eles não
desapareceram. Como contracorrente, emergem movimentos de r-existências,
problematizados por Porto-Gonçalves (2015), posto que não só lutam para
resistir contra quem domina, e sim “por uma determinada forma de existência, um
determinado modo de vida e de produção, por modos diferenciados de sentir, agir
e pensar”.
Fonte: Por Neilton
Fidelis, Marcio G. Pereira e Leandro Andrei Beser de Deus, no Le Monde
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