quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Mudança Climática: negação e distração moldam o debate global

Ogum é o orixá do ferro, da agricultura e da tecnologia. Assim como Prometeu, que trouxe algo fundamental e transformador para os seres humanos (o fogo), Ogum oferece o ferro e suas ferramentas, que são igualmente cruciais para a humanidade. Nessa encruzilhada de mitos e ìtàn, o ponto de encontro é a necessidade incessante da busca do ser humano por conhecimento e, com ele, a possibilidade de promoção de benefícios coletivos. Por outro lado, os abusos provenientes do poder e da concentração de riquezas, imputa à sociedade uma redobrada atenção quanto às distorções resultantes do uso desregrado da ciência e da tecnologia. Ferro e fogo também são instrumentos de guerra, fome, exploração e morte.

Entramos no século XXI com o entendimento de que o conhecimento simbolizado por Ogum e Prometeu não foi utilizado estritamente para o bem-estar coletivo. O que testemunhamos é um processo que intensifica a aplicação desse conhecimento para expropriação, apagamento e dominação, além da construção de consensos e identidades forjadas não pelo fogo e ferro, mas pelo capital. Isso reflete a maneira como a humanidade se apropriou dos benefícios oferecidos por essas divindades de resistência e força, mesmo diante da desaprovação de Zeus e dos Orixás.

Nessa perspectiva simbólica, o conhecimento direcionado para expropriação e dominação se intensifica com o desenvolvimento da máquina a vapor – corte histórico no funcionamento dos sistemas energéticos – elemento fundamental da Revolução Industrial, considerada vetor chave da consolidação do modo de produção capitalista. Com ela, encerra-se a fase de primazia das fontes de energias biológicas e inicia-se a escalada do triunfo e hegemonia dos combustíveis fósseis, consolidando ainda mais o domínio do capital sobre as fontes de energia. Controla-se o fogo e, mais adiante, explora-se exaustivamente essas fontes de energia de origem fóssil.

Na atualidade, credita-se à queima desses combustíveis a maior responsabilidade pela emissão de gases que intensificam o efeito estufa, o que, por sua vez, motiva a chamada mudança climática global. Tal como Prometeu foi penitenciado ao acorrentamento a uma rocha no Cáucaso e Ogum ao degredo, na contemporaneidade a punição vem na forma do urgente enfrentamento das crises ambientais e das emergências climáticas, propagandeada como responsabilidade de todos. David Harvey, em seu Enigma do Capital (2011), aponta que a responsabilização de todos alivia a reza da classe capitalista, mantendo-a feliz, uma vez que desloca e mascara seu papel na crise, retirando-a da cena como protagonista do problema.

Nesse processo de partição de responsabilidades comuns, descuida-se, como método, das assimetrias que imperam no acesso à energia no mundo. Importa registrar que apenas 1% da população mundial concentra 50% da riqueza planetária. Atualmente, contabiliza-se cerca de 3,2 bilhões de pessoas que não fazem uso de fogões a gás e, por consequência, utilizam lenha, esterco seco e outros insumos de baixo valor energético para a cocção de seus alimentos. Soma-se a esse quadro de pobreza energética, o fato de que 1,2 bilhão de pessoas não têm acesso à rede de energia elétrica em seus domicílios. Esses números expressam as profundas desigualdades socioeconômicas e espaciais impostas pelo modelo de circulação de mercadorias em voga no planeta.

Nesse contexto, as alterações climáticas e suas consequências para a sociedade revestem-se de prioridade. Destarte, os estados nacionais — seja voluntariamente, respondendo a seus próprios interesses, seja mediante promessas de ajuda financeira dos países centrais — comprometem-se a atingir emissões líquidas nulas de dióxido de carbono (CO2) até meados do século com o objetivo explícito de limitar o aumento da temperatura a 1,5°C, exigindo uma redução das emissões de CO2 de 45% até 2030.  Já uma redução de 25% até 2030 se faz necessária para limitar o aquecimento a 2°C. Para atingir esse objetivo, catalogam-se diversas ações possíveis de serem suportadas pelo mercado, destacando-se a promoção da denominada economia de baixo carbono, entre outras.

O debate relativo à mudança climática global revela uma dicotomia explícita. De um lado, encontramos um segmento que se empenha em negar a existência da mudança climática, empregando diversas estratégias para promover uma cosmovisão distorcida que rejeita o conhecimento científico e manipula a percepção pública. Esse grupo ignora a ciência estabelecida, cria um debate enviesado e sabota as ações necessárias para enfrentar a crise climática. Nas palavras do filósofo Zygmunt Bauman, apresentam um “leve desvio de olhar” sobre a garantia da sobrevivência da espécie humana. Nesse sentido, Noam Chomsky (2014) destaca que, por essa lógica, consensos são construídos, não apenas controlando mentes, mas conformando-as.

Em um campo antagônico, há um segmento de maior amplitude que dá relevo à fé na ciência ou crença na tecnologia. Este grupo dissemina a ideia de que, por meio de novas tecnologias, é possível enfrentar a mudança global do clima. Como método de alcance de seus objetivos, sedimenta-se um novo consenso que credita a urgente necessidade de se assegurar uma transição energética de abrangência planetária.

A simplificação de caminhos, a exemplo da transição energética, é uma afronta ao pensamento crítico, uma vez que esse desenlace não contempla a questão da desigualdade social, assim como não propõe, por definição, uma alteração do modo de produção vigente. Ao contrário, soma-se a uma visão conservadora, embora faça uso de uma roupagem de sofisticação, não apresenta um elaborado decoro intelectual.

Esse encaixilhar a realidade, responde, segundo Bauman (2001), a imperativa necessidade posta pela contemporaneidade de buscar convergências, criar consensos, fundir ideias já consolidadas e gerar novas abstrações mais bem ajustadas às esperanças humanas com a promessa adicional de reduzir assimetrias presentes nas estruturas anteriores.

No ambiente global de construção de consensos, Mészáros (2011) critica a constante afirmação do capital de que “não há alternativa”, máxima frequentemente associada à frase igualmente tendenciosa de autojustificação que proclama que “no mundo real” não pode haver alternativa ao curso das ações em movimento. Supõe-se, então, que essa proposição seja uma verdade óbvia, isentando automaticamente do ônus da prova todos que continuam a afirmá-la.

As verdades encapsuladas nos consensos construídos demandam a articulação de inúmeras frentes. Do balaio etimológico do desenvolvimento sustentável – esse já apartado das ideias basilares de Ignacy Sachs – sustentabilidade e outras derivações, germina-se esse mais novo “consenso”: não mais revoluções energéticas, agora transições, mesmo sem garantir aonde se quer chegar e nem o que é inegociável nessa travessia.

Em seu corolário, a transição energética (re)ordena as prioridades dos Estados Nacionais, sendo oferecida como uma nova esperança que a sociedade deve abraçar. Esse novo consenso respalda-se nos sinais do aumento crescente das concentrações de CO2 na atmosfera, mostrando de forma inconteste que as esperanças depositadas no ideário da sustentabilidade patinam. Isso posto, é inadmissível que o mundo pautado na promoção da sustentabilidade siga mantendo níveis insustentáveis de pobreza e iniquidades no acesso aos direitos humanos fundamentais.

Esse novo consenso enfatiza a urgência de transicionarmos de uma matriz energética fóssil para uma matriz descarbonizada. Neste admirável mundo novo, as fontes renováveis assumem um papel transformador, como um “pó mágico de pirlimpimpim”, que abre possibilidades para um futuro sustentável utópico.

A formulação desse novo sólido enfrenta movimentos de descontentamento quando se encara a justiça energética. Nessa arena, é permitido reivindicar tudo, contando que nada de substantivo, que afete a estrutura de produção e acumulação, seja realmente materializado. Vociferam-se alteridades como escape, garantindo-se a manutenção de tudo no mesmo lugar: a indústria do petróleo é apontada como a financiadora da transição energética, senda essa risível. Nessa roda, nossas autoridades tocam pandeiro para europeu aplaudir.

Reafirma-se, nesta senda, a máxima de “fazer quadrados de três lados”, como externada por Mészáros (2007). Seus formuladores, em um processo de hipnose orientado à adesão a um novo consenso, que segue a lógica de fragmentação do antigo consenso, agora reformatado e reafirmado mais forte. Não logram, assim, ordenar saídas orientadas à igualdade substantiva, que superem a fé no progresso cultuada no altar tecnológico.

Os defensores desse novo velho consenso, como se um ato heroico assim o fosse, alardeiam que a transição energética exigirá investimentos elevados em infraestrutura para geração “limpa” de energia. Camuflam, em contrapartida, os significativos impactos regionais e/ou locais, criando também zonas de sacrifícios, que afetam grupos sociais vulneráveis, os quais recebem uma quantidade desproporcional de fontes de problemas ambientais. Importa aqui desembaçar os olhos dos que propagam o discurso hegemônico ecológico de consenso posto como inegociável.

Nesse espetáculo de ilusionismo, a transição energética tem sido o grande truque de mágica. As promessas de ações para mitigar gases de efeito estufa foram apresentadas como a única solução capaz de salvar o planeta. A cada ano, o mesmo número é repetido nas 29 edições da Conferência do Clima, com um foco inabalável na mitigação. Enquanto isso, o palco é dominado pela expansão das energias renováveis, como se fossem a peça única deste grande show.

Ao contrário do esperado, o crescimento das emissões supera, e muito, o que foi projetado pelo Protocolo de Kyoto e o Acordo de Paris. Isso representa um evidente fracasso nas negociações internacionais, reforçando o antagonismo entre o modo de produção e circulação de mercadorias e a promoção da sustentabilidade.

Nessa cena, uma “nova esperança” é apresentada: a adaptação à mudança do clima como possibilidade de preservação da humanidade, mas sob a égide do modo de produção vigente. Essa alternativa ganha corpo diante do aumento da frequência e intensidade dos eventos climáticos extremos, forçando uma mudança de roteiro na forma de apresentação dos consensos. Importa destacar que o mercado ao assumir a impossibilidade de avançar na mitigação e reorientar a “biruta”, por sobrevivência, assume que o modo de produção se manterá no “trilho que o trouxe até aqui”.

O mote da adaptação é agora sustentado pelo termo “urgência climática”, no qual os eventos registrados já em 2024, credenciam esse novo consenso que ganha espaço na mídia corporativa. A tragédia recente do Rio Grande do Sul é simbólica neste debate. A imprensa nacional e internacional apresenta o evento e seus danos como resultado do seu elevado volume de chuvas decorrente da mudança climática. É recorrente na mídia corporativa responsabilizar o excesso de chuvas pelo desastre, omitindo como método o real endereçamento. Não é a chuva que mata, mas sim a desigualdade que alimenta o capitalismo. Há uma distribuição desigual dos riscos no espaço, assim como o acesso a serviços sociais e de infraestrutura. Ignora-se, portanto, a desigualdade gerada pela distribuição dos ativos econômicos produzidos, sendo este um aspecto crucial para a questão em discussão. Na visão de Porto-Gonçalves (2015), tem-se empregada uma estratégia de concentração dos proveitos articulada com a organização espacial da socialização dos custos.

Nesse sentido, compreende-se que não haverá uma luta eficaz contra os efeitos da mudança climática enquanto persistirem a pobreza e as assimetrias no acesso a serviços básicos, incluindo as formas modernas de energia. Para que todos se apropriem da forma equivalente aos resultados obtidos, a transição energética deve ser justa, o que exige implementação de políticas públicas e diálogo social necessário para avançar, devendo gerar benefícios a toda sociedade, a partir de uma perspectiva inclusiva, garantindo a sobrevivência da humanidade, mas também promovendo uma sociedade digna, ética e próspera, ou seja, reafirmar que a promoção da sustentabilidade como um caminho inseparável da realização progressiva da igualdade substantiva, formulada em Mészáros (2007).

Nesse âmbito, destacamos o “ecologismo dos pobres”, proposto por Joan Martínez-Alier, que aborda as lutas e os movimentos que emergem principalmente das comunidades marginalizadas e empobrecidas, especificamente do Sul Global. Essas lutas não são motivadas apenas por uma preocupação abstrata com o “meio ambiente”, mas também por questões de sobrevivência, justiça social, e direitos territoriais. As comunidades resistem à destruição ambiental não apenas por uma preocupação com a natureza em si, mas porque a terra e os elementos naturais são essenciais para sua sobrevivência, identidade e cultura.

Na prática, o que vemos é um tipo de transição feita por cima que sufoca os “de baixo”. O que não se esperava é que mesmo com a missão de invisibilizá-los, eles não desapareceram. Como contracorrente, emergem movimentos de r-existências, problematizados por Porto-Gonçalves (2015), posto que não só lutam para resistir contra quem domina, e sim “por uma determinada forma de existência, um determinado modo de vida e de produção, por modos diferenciados de sentir, agir e pensar”.

 

Fonte: Por Neilton Fidelis, Marcio G. Pereira e Leandro Andrei Beser de Deus, no Le Monde

 

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