quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Medellín, um laboratório do urbanismo social

Nasci em Medellín, na Colômbia, e tenho vivido boa parte dos meus 62 anos nesta cidade. Disso, talvez o leitor deduza: estou habituado a viver em um país em guerra. Um país tomado por guerrilhas rurais e urbanas, por grupos paramilitares, por gangues de narcotraficantes de enorme poderio bélico e tudo o que essa mistura explosiva costuma gerar: medo e sangue, em razão de milhares de mortes violentas todos os anos.

A Colômbia é uma das nações com maior iniquidade do mundo: o índice de Gini, que mede a concentração de renda, foi, em 2023, de 0.546 (quanto mais alto, pior). Houve uma ligeira melhora na comparação com o ano anterior, em que o país marcou 0.556 pontos. A Colômbia registrou, no ano passado, uma taxa de mortes violentas de 25,7 por 100 mil habitantes, o que nos alçou à posição de número 12 dentre as nações com maiores índices de violência da América Latina e Caribe. O Brasil ficou na 16ª posição.

Medellín já foi símbolo do pior: teve, durante vinte anos, a mais alta taxa de mortes violentas do mundo. Em 1991, o número de homicídios chegou a 6700, uma taxa de 383 casos por 100 mil habitantes, dezoito por dia. Foram mais de 66 mil mortes violentas em duas décadas. O cartel liderado por Pablo Escobar ostentava o título de maior grupo criminoso do planeta.

Medellín, hoje, não é mais símbolo do pior, muito pelo contrário: de uns anos para cá, tem sido reconhecida como uma cidade-exemplo mundo afora. Em 2016, ganhou o que alguns chamam de “o Nobel das cidades”: o prêmio Lee Kuan Yew World City, em razão de suas profundas mudanças sociais, educativas, culturais e urbanas. As metrópoles que chegaram à final desse prêmio foram Auckland, Sydney, Toronto e Viena. Em 2013, Medellín já havia conquistado o prêmio de “cidade mais inovadora” do mundo, em disputa, na derradeira etapa, contra Nova York e Tel Aviv.

Esses e outros prêmios vêm nos convertendo em referência para muitas metrópoles, que nos tomam como modelo. Insistimos, porém, que, mais do que modelos, somos um laboratório social e urbano, pois levamos três décadas ensaiando soluções estruturais e conjunturais para as nossas imensas pobreza e desigualdade, para as nossas atrozes violências políticas e urbanas.

Conseguimos uma diminuição radical em nossas taxas de homicídio nos últimos trinta anos. Como foi possível? Graças a ambiciosos projetos público-privados-comunitários e ao entendimento de que Medellín tinha que se converter no que é atualmente: um exemplo de que é possível superar, de maneira coletiva, o fracasso social de uma cidade. Mudamos de pele. Por sorte – e não sem enormes dificuldades –, estamos mudando também de alma.

O que ocorre na Colômbia não é o mesmo que na Europa, onde a desigualdade social se manifesta de formas mais amenas e a violência é menor. Não se trata, aqui, de um simples projeto de melhoramento de bairros. Trata-se de um caminho para aprimorar as cidades e, com isso, as mazelas de nosso país. Nossa ferramenta, nesse processo, foi e segue sendo o urbanismo social.

Quando se fala em urbanismo social, é normal que as pessoas prestem mais atenção à primeira parte da expressão: “urbanismo”. Afinal, é um substantivo, a essência do que se quer dizer. A palavra “social”, um adjetivo, é tomada como mero complemento, uma qualificação. Isso se reflete nos projetos focados em comunidades pobres: antes de qualquer coisa, discutem-se obras físicas. O que proponho, a partir de agora, é que seja dada a mesma força às duas palavras. É preciso entender que o social, tanto quanto o urbanismo, é essencial na transformação das cidades.

Durante muito tempo, em Medellín, nós dissemos que precisávamos de projetos físicos, urbanos, que dessem resultados sociais. Com o passar do tempo, notei que estávamos equivocados. Aquilo que realmente queríamos soava parecido com isso, mas era na verdade uma inversão: um projeto de transformação social, educativa e cultural que desse resultados urbanos.

O que sempre buscamos foi ampliar a inclusão e a coesão social em nossas cidades, costumeiramente excludentes e indiferentes. Por isso, constatamos que, no urbanismo, as obras físicas devem sempre estar submetidas ao projeto social, e não o contrário. É preciso pensar a sociedade em todas as suas dimensões – educativas, culturais, ambientais, esportivas, recreativas, de saúde, econômicas, de gênero – e moldar com base nelas um projeto urbanístico.

Sempre que Medellín é lembrada em foros urbanísticos, vangloriam-se seus avanços puramente físicos: a arquitetura de nossos novos edifícios públicos, os parques-bibliotecas, as Unidades de Vida Articulada (UVA), os colégios, os centros culturais, os jardins infantis. Por trás desse urbanismo fotogênico, no entanto, corre um profundo trabalho social, educativo, cultural, de comunicação pública e de construção de uma nova história de cidade. É nisso que reside a verdadeira transformação de Medellín.

Muitos projetos de urbanismo social fracassam devido ao fato de serem projetos meramente urbanos, onde o social é um fraco complemento, convertido em simples ferramenta ocasional. Penso que a Habitat III (Quito, 2016), conferência das Nações Unidas sobre o desenvolvimento urbano sustentável, se equivocou ao definir uma Nova Agenda Urbana mundial, pois a urgência deveria ser projetar uma Nova Agenda Social Mundial. Como seria uma cidade projetada a partir de uma perspectiva social, que almeje a convivência e a coesão de todas as classes?

Quem quer que ande hoje por Medellín pode fazê-lo seguindo o mapa das transformações. Sem que tenhamos planejado isso, nos tornamos a cidade com maior turismo estrangeiro da Colômbia e um dos principais destinos para nômades digitais. Um dos motivos para isso é que em Medellín se pode andar por todos os cantos, incluindo os bairros que durante anos foram impenetráveis devido aos alarmantes índices de violência. Essa paisagem de transformações inclui o “mapa das maravilhas”: edifícios e equipamentos públicos de alta qualidade em termos de arquitetura e de impacto na vida cotidiana das comunidades.

Tudo o que é público deve contribuir para a equidade social. O acesso a equipamentos e serviços públicos de qualidade foi uma das fórmulas empregadas em Medellín: aumentou-se a cobertura de fornecimento de água, esgoto, energia, telefonia e gás; mais ruas foram asfaltadas; e instalou-se equipamentos educativos, culturais, esportivos e recreativos de máxima excelência em todas as regiões da cidade. O sistema de mobilidade pública virou um elemento de integração territorial. O sistema de metrô, em funcionamento desde 1995 e sem o qual não teríamos boa parte das dinâmicas sociais e culturais de Medellín, inclui duas linhas de trem, uma transvia (VLT), seis metrocables (teleféricos urbanos) e várias linhas de Metroplus (BRT, com integração ao metrô). Um detalhe de extraordinária relevância: o melhor transporte público em Medellín está justamente nas zonas de maior pobreza.

Nestes tempos em que o urbanismo social anda na moda, acho importante frisar que essa política não se faz por meio de um mero “retoque” em bairros pobres. Não se trata de embelezar uma favela. Urbanismo social não é Photoshop. Seu impacto, mais do que estético, é ético. Ele é chave para que alcancemos profundas transformações sociais em nossas cidades.

Uma das grandes dificuldades da gestão municipal, tanto na Colômbia quanto em outros países, é conseguir fazer com que haja integração de todo o gabinete – ou seja, articular as secretarias de modo que elas deixem de trabalhar somente em sua própria dimensão setorial (de saúde, educação, cultura) e se coordenem também de forma territorial. Em Medellín, estruturamos em 2004 os PUI, Projetos Urbanos Integrais, uma ferramenta que busca precisamente o trabalho conjunto, com objetivos compartilhados, de todas as instâncias municipais. Os PUI tiveram um bom antecedente nos anos 1990: o Primed, Programa Integral de Melhoramento de Bairros Informais de Medellín. O Primed, por sua vez, se inspirou, e muito, no programa Favela-Bairro, implementado no Rio de Janeiro no início daquela década, e que depois de alguns anos passou a ter apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

Para definir em quais bairros de Medellín deveríamos implantar os PUI, levamos em conta quatro critérios:

•          Menor índice de desenvolvimento humano;

•          Maior índice de violência;

•          Maior densidade populacional (especialmente, maior quantidade de crianças com menos de 6 anos);

•          Que a localidade em questão representasse algo de especial para a cidade, por sua história, ou porque trouxesse à tona algum feito relevante. Bairros que gerassem nas pessoas a sensação de que, “se foi possível aqui, pode ser em qualquer outro lugar”.

A característica principal dos PUI é a simultaneidade das intervenções: vários grandes projetos urbanos e sociais são conduzidos ao mesmo tempo. Os PUI, além disso, permitem que o poder público tenha um diagnóstico preciso dos bairros e de seus problemas. Com isso, o programa se converte em uma ferramenta para conhecer, reconhecer, valorizar e potencializar o que já existe na cidade. Os projetos não são desenhados em um escritório de engenheiros e arquitetos – são pensados por profissionais de todas as áreas, com participação constante da comunidade.

Os PUI não buscam melhor a qualidade de vida em um bairro apenas, mas num conjunto de bairros – as “comunas”, como dizemos na Colômbia. Entre seus objetivos está promover a conexão urbana e social dessas áreas com o restante da cidade, e vice-versa. Coesão urbana e social deveria ser um critério, sempre, no urbanismo social. Trata-se de integrar, de conectar, e não de intervir em um bairro para mantê-lo como um gueto social e cultural. Não podemos pensar a cidade de forma desarticulada.

Nos Projetos Urbanos Integrais de Medellín, foi fundamental a construção de edifícios públicos de alta qualidade arquitetônica. Eles se tornaram símbolo dos processos de transformação da cidade; uma nova referência de dignidade. São prédios que resultaram de concursos nacionais e internacionais, assim como das oficinas de projetos da EDU, a Empresa de Desenvolvimento Urbano de Medellín. Centenas de profissionais de arquitetura e engenharia têm sido formados pela EDU, e seu trabalho se faz perceber na geografia não apenas de Medellín, mas também de outras cidades pelo mundo.

Vinte anos atrás, os edifícios mais importantes de Medellín pertenciam à iniciativa privada ou a organizações religiosas, especialmente a católica. Que hoje sejam as edificações públicas as mais visadas é uma das conquistas da cidade. E é especialmente relevante que esses edifícios estejam localizados em bairros onde era impensável que houvesse investimentos dessa natureza.

A maioria desses novos edifícios públicos – que hoje são os nossos cartões-postais – é formada por centros educativos e culturais. Entre eles estão dez biblioteca-parques, 21 UVAs, a Casa da Música, o Centro de Desenvolvimento Cultural de Moravia, a Biblioteca de EPM (Empresas Públicas de Medellín), 34 jardins infantis do programa Buen Comienzo, vinte colégios públicos de alta qualidade, o Rota N (edifício-base de nossos desenvolvimentos tecnológicos), o Centro da Quarta Revolução Industrial (no lugar onde durante 120 anos funcionou uma prisão para mulheres), o Museu de Arte Moderna (que é privado, mas tem sua sede principal em um prédio público que foi durante anos parte da siderúrgica da cidade), o Mova – Centro de Inovação para Professores, o Museu Casa da Memória, a Plaza Mayor (centro de convenções), parques arborizados e muito mais.

Todas essas edificações são parte da busca por inclusão social; dão à cultura e à educação um papel preponderante na transformação de nossa sociedade. Não são meteoritos de concreto caídos do céu: são fruto de um longo processo de participação popular, de acordos, de valorização das identidades territoriais e de “concertações” entre muitas áreas do governo municipal, sem contar alianças com empresas, fundações privadas e centenas de organizações comunitárias.

O trabalho conjunto em favor da cidade foi a chave principal da transformação de Medellín. Por isso o que ocorreu aqui chama tanto a atenção de outras metrópoles. E por isso temos insistido para que não olhem só o que temos feito, mas também, e especialmente, como temos feito; tudo o que há por trás de cada uma dessas obras, tudo o que conforma nossos projetos.

Nossa arquitetura simbólica, recheada de significado social, tem inspirado projetos que hoje são muito relevantes em outras cidades, com os Compaz (Centros Comunitários da Paz), de Recife, as Usinas da Paz, de Belém, os Nido (Núcleos de Innovación y Desarrollo de Oportunidades), na Argentina, e as Utopías (Unidades de Transformación y Organización para la Inclusión y la Armonía Social), de Iztapalapa, na Cidade do México.

Temos ainda muito o que fazer na América Latina, uma das regiões com maior iniquidade e violência do mundo. Um urbanismo social que não se limite ao estético e se empenhe em transformações éticas – pois, como sociedade, não podemos mais tolerar uma vida tão desigual – é ferramenta indispensável para alcançarmos maior dignidade para todos os que habitam a maior das invenções humanas: as cidades.

 

Fonte: Por Jorge Melguizo,  na revista Piauí

 

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