Como a fumaça de incêndios florestais pode
danificar permanentemente a saúde de seu cérebro e seu corpo
O Brasil vem passando
por uma fase de muitos incêndios florestais e secas em várias regiões do país
durante este inverno de 2024, o que está comprometendo muito a qualidade do ar
– além de outras diversas consequências ambientais sérias. Segundo dados da
empresa suíça de tecnologia IQAir, que monitora as condições da atmosfera no
mundo, apontam que oito estados brasileiros e o Distrito Federal estão com o ar
insalubre por conta dos incêndios florestais no final de agosto de 2024.
Os cientistas sabem
que a fumaça de incêndios florestais pode exacerbar doenças como asma e Dpoc
(síndrome que engloba bronquite crônica e enfisema pulmonar), aumentar o risco
de ataque cardíaco e derrame, prejudicar a concentração, reduzir a capacidade do
corpo de combater infecções e causar inflamação nos pulmões, rins, fígado e
provavelmente em outros órgãos.
Mas e quanto aos
efeitos mais duradouros, até mesmo permanentes? A exposição a períodos curtos
de fumaça intensa de incêndios florestais pode deixar cicatrizes permanentes no
corpo?
Embora seja uma área
relativamente nova de investigação científica, a resposta parece ser sim,
embora o dano em potencial dependa da idade, da distância do incêndio, da
quantidade de exposição à fumaça e até mesmo das características do incêndio.
“O problema com os incêndios florestais é que eles estão espalhados por todo o
mapa em termos do que está sendo queimado”, comenta Lisa Miller, imunologista
da Universidade da Califórnia em Davis, nos Estados Unidos, que está estudando
os efeitos de longo prazo da exposição à fumaça de incêndios florestais em
macacos rhesus. “É uma bagunça química”.
“Embora o impacto da
poluição do ar em geral sobre a saúde humana seja conhecido há algum tempo, só
recentemente começamos a entender o impacto da fumaça de incêndios florestais
sobre a saúde humana”, afirma Anthony White, neurocientista do QIMR Berghofer
Medical Research Institute em Herston, Austrália. “Essa questão é ampliada pelo
fato de que pode ser difícil distinguir entre os efeitos da poluição do ar
ambiente e o impacto na saúde especificamente da fumaça de incêndios
florestais, especialmente quando essa poluição ocorre esporadicamente e sem
aviso prévio.”
• Muito pior do que apenas a poluição do
ar
O que os cientistas
estão aprendendo sobre os efeitos persistentes da fumaça de incêndios
florestais é, em grande parte, proveniente de estudos com animais, pesquisas de
curto prazo sobre a fumaça de incêndios florestais e pesquisas sobre a poluição
do ar e incêndios em cozinhas a lenha. A maior parte dessas pesquisas mede a
exposição a PM2.5, partículas de 2,5 micrômetros – cerca de 30 vezes menores
que o diâmetro de um fio de cabelo humano.
“Embora ainda não
tenhamos muitas evidências de exposições de longo prazo à fumaça de incêndios
florestais, é seguro extrapolar muito do que sabemos da poluição do ar urbano
[efeitos] sobre a saúde”, diz Ana Rappold, estatística ambiental da Agência de
Proteção Ambiental dos Estados Unidos. Mas a pesquisa sobre poluição do ar
conta apenas parte da história, pois a fumaça de incêndios florestais difere
não apenas da poluição do ar, mas também de um incêndio florestal para outro.
Sua composição muda
dependendo do que está sendo queimado, tanto a biomassa – árvores, arbustos,
grama, animais – quanto qualquer outro combustível, como casas e empresas,
explica Stephanie Cleland, epidemiologista de saúde ambiental da EPA.
Além do PM2.5, a
fumaça dos incêndios florestais contém outros produtos químicos tóxicos e
compostos orgânicos voláteis que variam de acordo com o combustível, a
temperatura da queima e até mesmo a idade da fumaça. “É provável que ela cause
diferentes tipos de efeitos à saúde ou uma gravidade diferente; e você está
exposto a várias coisas ao mesmo tempo, o que nem sempre acontece com a
poluição típica do ar ambiente”, afirma Cleland. Além disso, com a maior
densidade das concentrações de PM2,5 e os vários gases dos incêndios
florestais, “você pode ter um efeito sinérgico”, acrescenta Rappold.
• Danos cerebrais: uma das possíveis
consequências
Em geral, o cérebro
tem maior proteção do que outros órgãos devido à barreira hematoencefálica, uma
rede estreita de vasos sanguíneos que regula estritamente o que pode passar,
como um segurança que decide quem pode entrar em uma boate. Mas a barreira hematoencefálica
não é totalmente impermeável.
Adam Schuller,
toxicologista ambiental da Universidade Estadual do Colorado, nos Estados
Unidos, descreveu três maneiras pelas quais os poluentes podem chegar ao
cérebro: as partículas viajam no sangue oxigenado dos pulmões diretamente para
o cérebro; as partículas entram diretamente no cérebro pelo trato olfativo; ou
fatores inflamatórios desencadeados por uma resposta inflamatória nos pulmões
invadem o cérebro.
Uma vez lá, “o
material particulado pode danificar os neurônios tanto diretamente, por meio do
acúmulo de moléculas nocivas e instáveis chamadas radicais livres, quanto
indiretamente”, diz White, acionando as células imunológicas para liberar
moléculas que prejudicam ou matam os neurônios e interrompem as conexões que
permitem que as células cerebrais se comuniquem e armazenem memórias, mesmo que
os neurônios não morram.
Cleland e Rappold
identificaram os efeitos cognitivos de curto prazo dessa exposição, comparando
as pontuações de mais de 10 mil adultos americanos no Luminosity – um
aplicativo móvel de treinamento cerebral – quando alguns estavam em áreas
afetadas pela fumaça de incêndios florestais. Eles descobriram que as pessoas
expostas à fumaça de densidade média ou pesada – com base em dados de satélite
da Noaa – tiveram um desempenho mais fraco, com pontuações de atenção
ligeiramente mais baixas, do que aquelas expostas à fumaça de densidade leve ou
sem fumaça.
A combinação dessas
descobertas com o que se sabe sobre outros tipos de exposição à fumaça sugere a
probabilidade de efeitos cognitivos de longo prazo. Há fortes evidências de que
a poluição do ar ambiente e a fumaça de lenha de fogueiras de cozinha aumentam
o risco da doença de Alzheimer e de outras demências, além de evidências de que
a poluição do ar aumenta o risco de depressão.
“Podemos observar
outros efeitos da fumaça de incêndios florestais em outras alterações
neurológicas, mas isso requer mais estudos e mais pessoas para gerar resultados
sólidos”, comenta White. “Também estamos tentando determinar o impacto que a
fumaça de incêndios florestais tem sobre a demência em comparação com a
exposição à poluição do ar ambiente.”
Pesquisas emergentes
também sugerem que a exposição à poluição do ar durante a gravidez pode
aumentar o risco de transtornos do espectro do autismo e transtorno de déficit
de atenção e hiperatividade (TDAH) no feto em desenvolvimento. A maioria das
pesquisas sobre a exposição à fumaça de incêndios florestais e a gravidez
concentrou-se no nascimento prematuro e no peso ao nascer, mas a fumaça de
incêndios florestais contém o mesmo PM2.5 que a poluição do ar, portanto, é
possível que haja um risco teórico de impactos de longo prazo no feto.
• Efeitos no sistema imunológico e nos
pulmões
As poucas pesquisas
disponíveis sobre os efeitos persistentes da fumaça de incêndios florestais na
saúde sugerem que os pulmões e o sistema imunológico podem ser especialmente
afetados. Quando os incêndios florestais envolveram a região de Seeley Lake, em
Montana, em 2017, Chris Migliaccio, toxicologista da Universidade de Montana,
nos Estados Unidos, começou a estudar os efeitos da fumaça dos incêndios
florestais nos residentes próximos.
Inicialmente, ele não encontrou nenhum efeito
significativo em suas funções pulmonares dois meses após a exposição. Porém, um
e dois anos depois, os residentes tiveram reduções significativas na função
pulmonar – a capacidade de esvaziar os pulmões rapidamente. A pandemia impediu
um acompanhamento de longo prazo.
Um dos únicos estudos
de longo prazo sobre os efeitos da fumaça de incêndios florestais foi realizado
com macacos rhesus em um laboratório apoiado pelo NIH em Davis, na Califórnia.
Embora os cientistas não tivessem planejado estudar a fumaça de incêndios
florestais nos animais, incêndios florestais próximos em junho e julho de 2008
enviaram nuvens de fumaça para os recintos externos dos macacos, expondo-os a
10 dias de níveis de PM2,5 acima do padrão diário da EPA.
Lisa Miller, a
imunologista, tem estudado os efeitos da exposição em macacos nascidos naquela
primavera, que tinham apenas 4 a 6 meses de idade – o equivalente humano a
cerca de 2 a 3 anos – quando a fumaça passou.
Quando Miller cultivou
o sangue de macacos no laboratório e o expôs a bactérias, as células
imunológicas apresentaram uma resposta defeituosa, sugerindo que não seriam
capazes de montar uma defesa robusta contra uma infecção bacteriana. Mas isso
foi há 15 anos, e Miller ainda está observando uma função imunológica anormal
nesses macacos atualmente.
Ela também descobriu
mudanças nos ritmos circadianos dos macacos – o relógio interno do corpo que
governa os ciclos de sono-vigília – e mudanças “bastante impressionantes” na
estrutura pulmonar dos macacos vistas em tomografias computadorizadas. Os macacos
produzem níveis mais altos de cortisol em resposta ao estresse e dormem menos,
e seus pulmões são mais rígidos e têm menor volume. “Eles têm o que parece ser
evidência de doença pulmonar intersticial”, um conjunto de condições que causam
cicatrizes nos pulmões, diz ela.
Embora os macacos não
sejam um substituto perfeito para os seres humanos, eles são o mais próximo
possível, e a evidência de Miller é consistente com outro estudo que analisou
as taxas de gripe e a exposição à fumaça de incêndios florestais durante oito anos
em Montana.
Os pesquisadores
descobriram que a exposição ao PM2.5 durante a temporada de incêndios
florestais (julho a setembro) estava associada a piores índices de gripe na
temporada de gripe subsequente. A poluição atmosférica e, portanto, a fumaça de
incêndios florestais, também traz riscos maiores para as pessoas com doenças
cardíacas, diz Rappold, mas os cientistas estão apenas começando a examinar os
efeitos de longo prazo da exposição à fumaça no coração.
Embora seja a melhor
evidência disponível sobre a exposição de longo prazo, a pesquisa de Miller
ainda revela apenas os efeitos de um único incêndio. “É importante que o
público entenda a diferença entre a fumaça de incêndios florestais e a fumaça
de lareiras e o fato de que nem todos os incêndios florestais têm o mesmo
efeito”, diz Miller.
• Reduzindo os riscos
Um princípio
fundamental da toxicologia é que a “dose faz o veneno”, mas a dose – ou a
densidade de PM2,5 e outros gases no caso da fumaça de incêndios florestais – é
apenas um fator. A duração e a frequência também são importantes, explica Luke
Montrose, toxicologista ambiental da Universidade Estadual do Colorado, nos
Estados Unidos.
“Pensar em como você
pode ajustar essas alavancas em sua própria vida, reduzindo a dose, a duração e
a frequência”, pode ajudá-lo a encontrar maneiras de reduzir o risco de efeitos
sobre a saúde, diz Montrose. Uma maneira de fazer isso é usar um monitor portátil
de qualidade do ar ou verificar os níveis locais de AQI. Da mesma forma que
você verifica a previsão do tempo antes de sair para uma caminhada ou outra
atividade, “as pessoas devem ter a mentalidade de que devem verificar a
qualidade do ar antes de sair para saber se devem sair”, afirma Montrose.
A vantagem dos
monitores portáteis, que Rappold e Cleland também recomendaram, é que eles
também informam sobre a qualidade do ar interno. As recomendações de saúde
pública geralmente aconselham as pessoas a permanecerem em casa durante os dias
com qualidade de ar ruim, mas “a fumaça de incêndios florestais é capaz de
penetrar e prejudicar a qualidade do ar interno”, diz Schuller.
“Ainda não sabemos
como a combinação de fumaça de incêndios florestais e calor extremo afeta a
saúde humana”, já que ambos foram tratados separadamente em pesquisas até
agora, comenta White. “Ambos são estresses importantes para o corpo, e a
combinação pode ter resultados que ainda são desconhecidos.”
Durante os piores
dias, uma máscara pode ajudar a reduzir a exposição ao PM2,5, mesmo que não
consiga filtrar os gases. Uma análise de pesquisa sugere que as máscaras
cirúrgicas reduzem a exposição em 20% e as máscaras N95 em 80%. Vale a pena
considerar também o ajuste de sua rotina de exercícios em dias particularmente
ruins.
O exercício extenuante
força as partículas de poluição a entrarem mais profundamente em seus pulmões e
os enche mais do que a respiração mais superficial durante o repouso, diz
Montrose. E o aumento do oxigênio que você ingere a cada respiração pode fornecer
uma dose maior de poluentes.
As autoridades
governamentais não podem impedir a fumaça, mas podem alertar o público sobre os
riscos e usar e compartilhar recursos como o Smoke-Ready Toolbox for Wildfires
da EPA. “É necessário transmitir ao público a mensagem de que a fumaça dos
incêndios florestais pode ter efeitos mais duradouros”, afirma White. “Fornecer
avisos claros de saúde pública para a comunidade quando a fumaça provavelmente
os afetará é vital para permitir que as pessoas façam planos para evitar a
exposição o máximo possível.”
Um ou dois dias de
céus apocalípticos alaranjados podem não causar efeitos permanentes – ainda não
sabemos – mas, à medida que a frequência e a área geográfica dos incêndios
florestais aumentam, os períodos de céus enfumaçados podem durar mais do que
alguns dias e ocorrer com mais frequência.
“Infelizmente, não
temos uma resposta sobre a quantidade e o tempo que podemos ficar expostos à
fumaça de incêndios florestais antes que ela tenha efeitos de longo prazo sobre
a saúde”, diz White. “Mas talvez o fato mais importante seja que, quanto mais estudamos
a poluição do ar e a fumaça de incêndios florestais, mais aprendemos que
quantidades menores ainda podem ter efeitos tóxicos e, portanto, quanto menor a
exposição, melhor.”
Fonte: National
Geographic Brasil
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