Ângela Carrato: Como escapar dos candidatos
picaretas e das mentiras nas eleições de outubro
A julgar pela primeira
semana de campanha, as eleições municipais deste ano serão marcadas pela
presença de uma infinidade de candidatos sem qualquer compromisso com os reais
interesses da população e, sobretudo, com a verdade dos fatos.
São extremistas de
direita, propagadores de mentiras e de discursos de ódio, seguidores ou não de
Jair Bolsonaro.
No passado, era mais
fácil identificar tais figuras. A maioria acabava recebendo a pecha de
“oportunista” ou “picareta” e não ia muito longe.
O que não significa
que alguns não tenham conseguido se eleger e seguirem carreira na política.
A entrada em cena das
fake news e da guerra cultural redundou em uma desinformação de tamanha
magnitude, que a maioria da população se mostra preocupada com o assunto.
Mais ainda: a maioria
acredita que a integridade eleitoral depende de medidas eficazes que possam ser
tomadas contra a desinformação.
Isso fica patente
quando se observa os resultados da pesquisa DataSenado, divulgados na última
semana.
Realizada com a
finalidade de subsidiar o parlamento brasileiro, o estudo faz um raio X dos
usuários de redes sociais, especialmente dos que se identificam como tendo tido
acesso a notícias falsas nos últimos seis meses.
O objetivo era avaliar
a dimensão das notícias falsas no Brasil e descobrir como a opinião pública
percebe os seus impactos e compreende o papel das plataformas de redes sociais
para lidar com a questão.
A pesquisa teve como
população-alvo cidadãos de 16 anos ou mais, residentes em todos os estados.
A amostra total foi
composta por 21.870 entrevistas telefônicas, que seguiram questionário
previamente estruturado.
A duração média das
entrevistas foi de 13 minutos e o nível de confiança nos resultados é de 95%.
Esta pesquisa revelou
que 67% da população já foi exposta à desinformação e que essa desinformação
foi compartilhada nas redes sociais.
As razões apontadas
para esse compartilhamento são diversas: 31% acreditam que as pessoas o fazem
para mudar a opinião dos outros, enquanto 30% acham que isso acontece porque
não se sabe que a notícia é falsa.
Uma ampla maioria
(81%) acredita que as plataformas devem ser responsabilizadas pela divulgação
de notícias falsas. Essa opinião é praticamente unânime em todos os estados,
com exceção de Santa Catarina, onde a concordância é um pouco menor (73%).
O impacto da
desinformação em eleições também é uma preocupação central. Para 81% dos
entrevistados, a disseminação de notícias falsas pode afetar “muito” os
resultados eleitorais.
Neste sentido, quase
oito em cada 10 brasileiros avaliam como “muito importante” o controle de
notícias falsas nas redes sociais para garantir uma disputa justa nas eleições.
A partir desses dados
é possível se fazer uma série de reflexões.
Não resta dúvida de
que as notícias falsas circulam com grande intensidade pelas plataformas e por
suas redes sociais.
Não resta dúvida, por
outro lado, que essas plataformas precisam ser responsabilizadas pelo impacto
que os conteúdos falsos podem ter e tem tido na democracia brasileira.
A título de exemplo,
das 10 principais redes sociais em atuação no país, a mais acessada é o
WhatsApp (93%), o que indica uma preferência por mensagens curtas e
instantâneas.
Preferência que pode
ser explicada também pelo fato de a maioria dos smarth phones vendidos aqui
contar com essa rede social instalada e o seu uso não impactar no custo do
pacote de dados dos usuários.
O número dos que se
informam pelo WhastApp é 20% superior ao dos que se informam pela TV aberta,
onde a Globo predomina, com a TV Record, do bispo-empresário Edir Macedo, da
Igreja Universal do Reino de Deus, ocupando o segundo lugar.
Mesmo assim, se a
mídia corporativa tradicional – aqui entendida como jornais, revistas, rádios e
TVs – cumprisse o que sempre prometeu (“compromisso com os fatos”), era para
haver, no mínimo, um importante contraponto às fake news.
• Por que isso não acontece?
Entender esse aspecto
significa chegar ao x da questão.
Vale ressaltar que
esse aspecto não foi captado pela pesquisa DataSenado, por dois motivos:
1. seu escopo envolveu
somente as plataformas e redes sociais; e
2. ainda prevalece a
equivocada visão de que a mídia corporativa não divulga fake news.
A audiência das
emissoras de TVs abertas vem caindo a cada dia. A TV Globo perdeu um terço de
seu público nos últimos anos.
As perdas das demais
emissoras como Record, SBT e Band seguiram caminho semelhante. Já a Rede TV,
que nunca chegou a ter audiência significativa, agora sequer pontua.
Situação que se repete
no canal pago GloboNews, do grupo Globo. O que não significa que o poder da TV
aberta e dos demais veículos da mídia corporativa possa ser subestimado.
É preciso entender que
mídia corporativa junto com as plataformas e redes sociais compõem um
ecossistema de informação que, no Brasil, assume características especialmente
perversas ao combinar interesses supostamente religiosos e o uso das emoções
com a precariedade da educação e da informação por parte do público.
Diferentemente da
maioria dos países europeus, dos Estados Unidos, do Japão e da Austrália, o
Brasil não tem uma legislação capaz de regular o poder das TVs e das emissoras
de rádios.
Mesmo sendo concessões
públicas, seus concessionários agem como se fossem donos do espectro
eletromagnético, transformando-o em espaço para a defesa dos seus interesses.
Diante de qualquer
possibilidade de que esse poder possa ser controlado, esses concessionários
sempre partem para o ataque se dizendo ameaçados por “censura”, apoiando e até
patrocinando golpes de estado.
Foi assim em 1964, com
a derrubada do presidente João Goulart (PTB), que teve na mídia verdadeira
linha de frente contra ele.
Foi assim em 2016, com
o golpe, travestido de impeachment, contra a presidenta Dilma Rousseff (PT).
Golpe que pode ser
definido como parlamentar, jurídico e midiático, tal a importância desses três
setores para a sua concretização.
Ameaças desse tipo
persistem nos dias atuais, com o governo Lula permanentemente atacado pela
extrema-direita, com o apoio dos barões da mídia tradicional e também das
plataformas e redes sociais.
Alguns podem
argumentar que outros governos e populações se encontram sob o ataque das
mentiras da extrema-direita, pois esse é um fenômeno mundial.
É verdade.
É verdade, no entanto,
que o Brasil nunca contou com dois elementos essenciais para que a sua
população pudesse enfrentar as mentiras da mídia tradicional e, mais
recentemente, as fake news das redes sociais: educação e letramento para a
mídia.
Em pleno século XXI,
apenas 30,1% da nossa população possui ensino médio completo. Porcentagem que
cai para 19,7% quando se trata do ensino superior.
O Brasil tem ainda
9,3% de analfabetos (5,4 milhões de pessoas) e 29% de analfabetos funcionais
(38 milhões de pessoas). Esses dois contingentes representam quase um quarto da
população, parcela significativamente mais vulnerável a discursos autoritários,
mentirosos e de ódio.
Tão grave quando a
ausência ou precariedade do ensino no Brasil é o desconhecimento de como a
mídia funciona, mesmo que, aqui, como acontece no futebol, quase todos se
julguem craques no assunto.
Desde o final da
Segunda Guerra Mundial, quando ficou nítido o papel que os meios de comunicação
tiveram na divulgação de ideias nazistas e fascistas, adotou-se em diversos
países o Letramento para a mídia (Media Literacy).
Junto com o ensino
formal, jovens e adultos passaram a aprender como a mídia funciona. Aprenderam,
por exemplo, que nem sempre o que a mídia divulga é o retrato fidedigno dos
fatos, pois nesse processo interferem as técnicas de edição, a visão dos jornalistas
e, sobretudo, os interesses dos donos das empresas de comunicação.
No Reino Unido, por
exemplo, desde o início dos anos 1960 jovens aprendem como se processa a edição
de notícias e os mais velhos, através de programas de educação continuada (a
chamada Universidade Aberta), se inteiram sobre as novas tecnologias e os desafios
por elas colocados.
Na última década, esse
ensino incluiu o conhecimento sobre a internet, a atuação das redes sociais e,
mais recentemente, uma profunda discussão sobre o papel devastador das fake
news e da desinformação em sociedades democráticas.
Pode-se argumentar que
mesmo em países onde há legislação para a mídia tradicional, o nível de
escolaridade é alto e o letramento está presente, a desinformação continua
existindo.
É verdade. O caso da
própria Inglaterra talvez seja o melhor exemplo. No entanto, é inegável que
nesses países as mentiras estão sendo enfrentadas e desmascaradas com maior
rapidez.
Se em 2020 a
Inglaterra deixou a União Europeia após plebiscito (Brexit) em que as fake news
deram o tom, ao responsabilizarem os imigrantes pela crise econômica, quatro
anos depois o Partido Trabalhista chegou ao poder e repôs os fatos no seu
devido lugar.
A maioria da população
percebeu que o inimigo não era o imigrante, mas a política econômica neoliberal
colocada em prática pelo Partido Conservador, que levou ao desemprego, à fome e
à recessão.
As fake news continuam
atuando na Inglaterra e há poucas semanas foram responsáveis por uma série de
distúrbios em Londres e em outras cidades.
Mas a educação da
população e a rígida legislação produziram algo que muitos julgavam impossível:
a população inglesa foi às ruas abraçar entidades de apoio aos imigrantes e
denunciar as políticas neoliberais e o seu estado mínimo.
Não prosperou por lá o
que aconteceu no Brasil em 2013 e que está na raiz de todo o processo que
desembocou na manipulada vitória de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018.
Manipulada, porque o
principal candidato, Luiz Inácio Lula da Silva, foi preso sem crime e proibido
de concorrer, e porque a mídia corporativa comprou, sem qualquer questionamento
ou investigação, a história da tal facada.
É importante lembrar
que em 2013 teve início na cidade de São Paulo um protesto contra o aumento de
R$ 0,20 no preço do transporte público.
Convocado pelas redes
sociais e voltado para um problema urbano específico, ele rapidamente mudou de
figura e passou a denunciar o governo Dilma, a Copa e Mundo e as Olimpíadas,
que aconteceriam aqui. O resto da história é conhecido.
Com esse protesto
apropriado pelas redes sociais da extrema-direita, elas se tornaram
fundamentais para jogar a maioria da população contra o PT e outros partidos
progressistas.
Para o sucesso dessa
estratégia foi igualmente importante o apoio que a mídia corporativa, Grupo
Globo à frente, deu à Operação Lava Jato.
Seus protagonistas,
Sérgio Moro e Deltan Dallagnol, receberam o mentiroso adjetivo de “heróis” no
combate à corrupção.
Apesar de ter sido o
pior presidente da história do Brasil, Bolsonaro perdeu por uma ínfima
diferença de votos para Lula em 2022, e os apoiadores do ex-capitão continuam
numerosos e espalhando mentiras.
PL, de Bolsonaro, e
União Brasil, de Moro, são as agremiações com o maior número de candidatos
nessas eleições municipais.
As mentiras que o
próprio Bolsonaro e família divulgaram e continuam divulgando nas redes sociais
jogam papel central na estratégia para se manter em evidência.
Estratégia apoiada
pela mídia corporativa, jornal Folha de S. Paulo à frente, quando tenta
transformar os golpistas de 8 de janeiro de 2023 em “vítimas” do
“autoritarismo” do ministro do STF, Alexandre de Moraes.
Não por acaso as
“denúncias” da Folha de S. Paulo começaram e seguem sendo publicadas nesse
início de campanha eleitoral, funcionando como uma espécie de apito de cachorro
para candidatos extremistas de direita.
O caso do candidato do
PRTB a prefeito de São Paulo, Pablo Marçal, é o mais gritante, mas está longe
de ser o único.
Sem qualquer
conhecimento sobre os problemas da cidade e sem uma única proposta para
administrá-la, ele pauta seu discurso por mentiras e acusações infundadas
contra seus adversários, especialmente o candidato Guilherme Boulos, do PSOL,
que lidera as pesquisas de intenção de votos.
Marçal está crescendo
em cima de mentiras e ataques pessoais e é preciso que esse tipo de campanha
seja coibida.
Em Belo Horizonte,
quem lidera a disputa é o deputado estadual Mauro Tramontes (Republicanos), um
parlamentar sem qualquer destaque, que deve seu sucesso eleitoral até agora ao
fato de ser apresentador licenciado de programa policialesco na TV Record e do
apoio que tem do bispo Edir Macedo.
O Republicanos é
ligado à Igreja Universal que, em seus cultos, compara a esquerda a satanás.
Marçal está tão
confiante, que nem se preocupa em não dispor de tempo na propaganda eleitoral
gratuita no rádio e na TV, que começa na próxima sexta-feira (30). A sua
estratégia está voltada para continuar mentindo e caluniando adversários.
Tramontes, por sua
vez, nega a pecha de bolsonarista, ao mesmo tempo em que se apoia nos votos dos
fieis da Universal para se eleger.
Fórmulas semelhantes
estão sendo adotadas por candidatos nos diversos os quadrantes do país. Razão
pela qual é preciso levar muito a sério o resultado da pesquisa realizada pelo
DataSenado, no que diz respeito às redes sociais, mas sem perder de vista que
essas redes não atuam sozinhas.
Se elas e a própria
mídia corporativa não forem alvo de rígida legislação por parte do TSE nessa
eleição, o risco de mentirosos, divulgadores de discurso de ódio e
manipuladores da opinião publica conseguirem se eleger é enorme.
Talvez esteja aí
principal razão da campanha que o ministro Alexandre de Moraes está sendo
vítima.
Por inspiração dele, o
TSE aprovou, em março, uma série de resoluções para disciplinar essas eleições:
• A grande novidade é a proibição de
deepfakes;
• obrigação de aviso sobre o uso de
inteligência artificial (IA) na propaganda eleitoral;
• restrição do emprego de robôs para
intermediar contato com o eleitor (a campanha não pode simular diálogo com
candidato ou qualquer outra pessoa); e
• responsabilização das big techs que não
retirarem do ar, imediatamente, conteúdos com desinformação, discurso de ódio,
ideologia nazista e fascista, além dos antidemocráticos, racistas e
homofóbicos.
Outro ponto de
destaque da resolução é que provedores e plataformas passam a ser considerados
“solidariamente responsáveis, civil e administrativamente, quando não
promoverem a indisponibilização imediata de conteúdos e contas durante o
período eleitoral”.
Essas decisões estão
por trás do que disse o bilionário estadunidense, Elon Musk, dono da rede
social X (ex-Twitter), na semana passada, ao anunciar o fechamento do
escritório de sua empresa no Brasil.
Agindo assim, ele
tentou ficar a salvo da Justiça local.
Entre as 10 principais
redes sociais no país, o X ocupa o 9º lugar. Ele tem sido importante para a
divulgação de mentiras.
O X funciona sem
qualquer moderação, com as mentiras que lá circulam sendo replicadas em outras
redes sociais, em especial o WhatsApp.
Daí ser fundamental
que haja leis para combater as mentiras na mídia. E o conhecimento de como a
mídia funciona é um dos antídotos mais poderosos.
Tomara que essa
eleição possa ser um divisor de águas e finalmente mostre para as autoridades
que uma população instruída e letrada para a mídia é indispensável para o
combate às mentiras e ao discurso de ódio.
Não há como pensar em
democracia sem que as pessoas tenham acesso à informação correta, ao
conhecimento que só a educação e o letramento para a mídia possibilitam.
Fora disso,
continuaremos aprofundando o fosso que só interessa à extrema-direita.
Fonte: Viomundo
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