quarta-feira, 28 de agosto de 2024

'Airbnb e Booking pioram crise imobiliária, mas origem do problema é outra'

O aumento do número de pessoas sem-teto em vários países — como Chile, Espanha, Estados Unidos — é a ponta do iceberg daquilo que o relator especial da ONU sobre o direito à moradia adequada descreve como uma "imensa crise" de escala global.

"Enquanto falamos sobre inteligência artificial, colônias em Marte e outras ideias inalcançáveis, esquecemos que grande parte da humanidade não tem acesso a coisas básicas como moradia", diz Balakrishnan Rajagopal em entrevista à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.

De acordo com suas estimativas, quase um em cada cinco habitantes do planeta vive sem moradia adequada, apesar de ser um direito humano — e este número pode passar de 3 bilhões de pessoas em poucos anos.

Advogado e professor de Direito e Desenvolvimento do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), nos Estados Unidos, Rajagopal aponta diversas razões por trás deste fenômeno.

Mas também sugere soluções — como oferecer uma proteção melhor aos inquilinos contra despejos — e afirma que, apesar da "escassez perpétua" de moradias na América Latina, alguns países da região têm exemplos a serem considerados.

Brasil e Colômbia oferecem, segundo Rajagopal, "boas lições sobre como os governos podem tratar a moradia como um direito humano".

No entanto, ele afirma que, na prática, "o Brasil não tem conseguido garantir a proteção integral do direito à moradia adequada".

<><> A seguir, você confere um resumo da entrevista que Rajagopal concedeu por telefone à BBC News Mundo.

•        O mundo está passando por uma crise habitacional?

Balakrishnan Rajagopal - Sim, o mundo passou e está passando por uma imensa crise habitacional de diferentes dimensões.

Temos crise de moradia a preços acessíveis, de desalojamento forçado, de criminalização das populações sem-teto, e também temos uma crise no fornecimento de moradias adequadas para os desabrigados pelas mudanças climáticas.

Quando as pessoas são desalojadas e perdem suas casas, elas vagam de um lugar para outro sem um reassentamento adequado, e se afundam cada vez mais na pobreza e na falta de esperança.

Isso está criando crises secundárias e terciárias.

•        Você poderia fornecer números?

Rajagopal - Estimamos que cerca de 1,6 bilhão de pessoas carecem de moradia adequada em todo o mundo. Se as tendências atuais se mantiverem, este número pode dobrar até 2030.

Há mais de 110 milhões de pessoas que foram desalojadas à força.

Estes números têm crescido devido ao aumento dos conflitos em todo o mundo, que levam as pessoas a fugirem de suas casas. Vimos isso na Síria, na Ucrânia, em Gaza, nos territórios palestinos. Também vimos pessoas fugindo de suas casas por causa de crises econômicas ou políticas, como a da Venezuela, que gerou um grande número de migrantes.

O número de pessoas desalojadas pelas mudanças climáticas pode aumentar drasticamente, à medida que começarem a atravessar para outros países, se o nível dos oceanos subir cada vez mais rápido, e a desertificação, as chuvas, as inundações e os incêndios aumentarem. Temos visto esta tendência desde os EUA até a Austrália, passando por Europa, América Latina e países da Ásia.

No que diz respeito à crise de moradia acessível, cada vez mais gente em todo o mundo não tem condições de ter uma casa decente. Estimamos que este número ultrapasse 100 milhões de pessoas, e esteja aumentando de forma significativa.

•        O número de 1,6 bilhão de pessoas sem moradia adequada e serviços básicos é historicamente sem precedentes?

Rajagopal - É justo dizer que não tem precedentes devido à natureza do problema. Por muito tempo, a moradia inadequada não foi considerada uma condição problemática pelo ser humano. Pelo contrário, trata-se de reconhecer a habitação digna como algo que vale a pena defender.

Além disso, como vimos na América Latina, o número de pessoas que vivem em áreas urbanas aumentou, e na década de 1960 superou a capacidade dos países de fornecer moradia adequada.

Assim surgiram grandes assentamentos informais, as chamadas favelas, especialmente nos países em desenvolvimento. E aqueles que vivem na maioria destes assentamentos ainda carecem de moradia adequada.

•        Há países latino-americanos com os quais você se preocupa mais?

Rajagopal - Estou muito preocupado com o impacto do desalojamento causado por crises políticas ou conflitos na região, como na Venezuela.

Estou muito preocupado com o impacto das mudanças climáticas nos países da região, incluindo a América Central. Em países como El Salvador ou Guatemala, os impactos são muito fortes.

Vemos uma combinação do impacto das medidas relacionadas à covid-19, da inflação e de uma crescente falta de acesso à moradia devido a uma escassez perpétua de moradias nos países da região.

Tudo isso significa que existe uma verdadeira crise econômica e social na região. Porque o maior gasto na vida de uma pessoa é com moradia.

Por isso, é muito importante que o preço e a acessibilidade da moradia estejam em ordem. Do contrário, a maioria vai se sentir vulnerável, e pode facilmente entrar em crise. E é muito difícil tirá-los da crise.

•        E qual é a situação nos EUA, a principal economia do mundo?

Rajagopal - Há uma crise muito grave, com mais de 650 mil pessoas sem-teto nos EUA, contando apenas os que dormem na rua e em abrigos. Se adotarmos a definição que está ganhando cada vez mais aceitação na Europa, talvez estejamos falando do dobro disso.

Isso se tornou uma questão política nas atuais eleições, com um partido defendendo que a crise dos sem-teto seja resolvida com medidas extremamente violentas, com ameaças de expulsar os sem-teto das cidades, e colocá-los no que parecem ser campos de concentração, algo alarmante, perigoso e contrário aos direitos humanos.

A raiz da crise dos sem-teto nos EUA é que eles não conseguem construir moradias com rapidez suficiente. E as moradias que existem são inacessíveis para a maioria das pessoas devido às regras que regem quem pode ter acesso a elas, administradas pelas comunidades de forma a manter afastados aqueles que consideram indesejáveis.

A resposta é dizer que vamos colocar os sem-teto na cadeia ou impor sanções a eles. A recente decisão da Suprema Corte no caso de Grants Pass, no Oregon, dá luz verde para essa abordagem [a Suprema Corte dos EUA determinou que as cidades podem punir os sem-teto por dormirem em espaços públicos, mesmo que não tenham outro lugar para ir].

Então, cada vez mais cidades e até mesmo governos estaduais estão adotando essa posição bastante perigosa. Outras abordagens que funcionam não são consideradas.

As pessoas perdem suas casas porque os aluguéis não param de subir e, quando não conseguem pagar, são expulsas. Isso afeta desproporcionalmente as minorias, pessoas não brancas, mulheres e crianças.

Deveria ser um dos desafios de política pública mais importantes para qualquer governo. Mas isso ainda não aconteceu.

•        Você vê algo semelhante na Europa?

Rajagopal - Na maioria dos países europeus, observo tendências semelhantes. Estive recentemente na Irlanda do Norte, onde há uma enorme crise à espera de moradias a preços acessíveis, de pessoas sem-teto por causa disso, uma incapacidade de investir na construção de moradias, e uma crescente demonização dos sem-teto.

Também vi isso na Holanda, onde alguns partidos políticos culpam os migrantes pela crise, especialmente os migrantes não ocidentais, o que é impreciso e injusto.

A crise habitacional ali se deve a políticas equivocadas. Mas era mais fácil para os políticos dizerem que se deve aos migrantes. Além disso, em vez de apontar para os ucranianos que estão chegando ao país em maior número, eles apontam para aqueles que vêm de países do sul global, por exemplo, sírios ou afegãos, porque é sempre conveniente culpar alguém que não se parece com você.

•        O que você diz é chocante: numa época de consumismo crescente, de acesso a bens e tecnologia inimagináveis há algum tempo, cada vez mais pessoas têm dificuldade de acesso a serviços básicos e moradia adequada, um direito humano fundamental...

Rajagopal - Exato. É quase como prestar atenção nos detalhes, e não no que realmente importa. Porque enquanto falamos de inteligência artificial, colônias em Marte e outras ideias inalcançáveis, esquecemos que grande parte da humanidade não tem acesso a coisas básicas como moradia, alimentação, água potável ou saneamento.

E não estamos fazendo um bom trabalho para resolver esses problemas.

•        Você ressalta que este é um problema político. A responsabilidade é dos governos?

Rajagopal - Sim, porque os governos não reconhecem coisas tão importantes como a moradia, a alimentação, a água potável e o saneamento como direitos humanos. Em vez disso, encaram como mercadorias a serem compradas e vendidas como qualquer outro produto no mercado.

A moradia é um direito humano. E, infelizmente, esse paradigma de mercado sobre a habitação tem sido muito dominante em todos os países. O financiamento habitacional, que é a tendência de tratar a moradia como um ativo financeiro, é uma das principais causas da crise habitacional.

Os países devem mudar a sua atitude e garantir que a moradia seja protegida como um direito humano. Isso significa atribuir a ela pelo menos o mesmo status de outros direitos que sustentam uma economia de mercado, como a propriedade privada, que é mais bem protegida em muitos países.

Não é de se surpreender que a moradia esteja cada vez menos disponível para as pessoas, porque é tratada como uma mercadoria.

•        O problema de financiamento é político ou também pode ser atribuído aos bancos e outras instituições financeiras?

Rajagopal - Fundamentalmente, é um problema político, porque o financiamento é uma questão que pode ser regulamentada, e suas consequências negativas se devem à falta de regulamentação.

O problema é a natureza não regulamentada dos fluxos financeiros, e o domínio das instituições financeiras para tomar decisões em seu próprio interesse, o que não reflete de fato o interesse geral da sociedade. É por isso que é necessária uma regulamentação rigorosa.

Não temos nem sequer um tratado internacional para regular os fluxos financeiros. É terrível que haja trilhões de dólares circulando, e não haja nenhuma maneira de regulá-los a nível global.

Tudo depende dos governos dos grandes Estados hegemônicos, e especialmente dos Estados Unidos, porque todas as transações financeiras passam, em última análise, pelo seu sistema financeiro.

Na verdade, os EUA funcionam como o regulador financeiro global. O resto do mundo paga um preço por essa hegemonia. É inaceitável.

•        Muitos culpam plataformas online — como Airbnb ou Booking.com — pelo aumento dos custos de moradia em diferentes cidades. Qual é o impacto real destas plataformas na crise de acessibilidade à moradia?

Rajagopal - As plataformas podem agravar uma crise quando esta já existe, mas não a criam.

Quando as plataformas entram num mercado com escassez de moradia a preços acessíveis, retiram muitas moradias do mercado imobiliário e as destinam ao aluguel de curta temporada. Isso aumenta a crise existente. E as pessoas concluem erroneamente que as plataformas são o motivo da crise.

Mas em nove de cada dez casos, a crise da moradia acessível se deve a problemas estruturais.

Uma delas é a falta de controle sobre o preço do terreno, que é a parte mais cara da construção de uma casa. Se o governo não controlar os preços dos terrenos, não vai poder garantir moradias a preços acessíveis.

físicas. Compare com cidades ricas sem uma crise de moradia acessível, como Viena ou Cingapura, onde é possível ter uma casa independentemente do seu nível de renda.

Como? Em Cingapura o Estado controla os terrenos, e mais de 85% das casas são alugadas a longo prazo; não são propriedade privada. Em Viena, uma grande parte das moradias é de propriedade de cooperativas.

Por isso, controlar os preços dos terrenos é fundamental para garantir moradia acessível. E, em muitos países, isso não existe.

•        Como você responderia àqueles que acreditam que o que você está propondo contraria os princípios básicos do livre mercado, que é o motor do capitalismo, e poderia aumentar o tamanho do governo e da burocracia?

Rajagopal - Existe o risco de isso acontecer. Estas são críticas ou preocupações legítimas. Por outro lado, Cingapura é a cidade mais hipercapitalista do mundo, e consegue tratar a terra não como uma mercadoria privada, mas como algo mais controlado publicamente, mantendo um sistema capitalista extremamente bem-sucedido. Por que outros países não podem fazer isso?

•        Qual é então a primeira coisa que os países e os governos deveriam fazer para melhorar o acesso da população à moradia adequada e reverter a crise?

Rajagopal - Depende da natureza da crise, mas em geral os países deveriam começar a tratar a moradia como um direito humano, proteger legalmente esse direito, dificultando o despejo, especialmente de inquilinos.

E, a médio e longo prazo, estabelecer as bases para um maior controle sobre os preços dos terrenos, por exemplo, explorando acordos de partilha de terras ou promovendo acordos de cooperativas habitacionais.

•        Você poderia mencionar algum país das Américas como modelo para essas políticas?

Rajagopal - Nas Américas, o Brasil fez o máximo para explorar, pelo menos, as medidas políticas essenciais.

Por exemplo, a Constituição brasileira articula o direito à propriedade como algo que tem uma função social, e não apenas como um bem econômico. Esse é um reconhecimento muito importante, e algumas decisões judiciais ofereceram conclusões bastante interessantes com base nisso.

E, no Brasil, existem leis que permitem a redistribuição de terras. Na verdade, existe um órgão responsável pela distribuição de terras que não são utilizadas de maneira adequada.

Existe também um estatuto municipal que desencoraja a propriedade especulativa de terras e propriedades urbanas, e dispõe de instrumentos para intervir nos mercados de moradias.

Então, de uma perspectiva política e jurídica, o Brasil é, junto à Colômbia, um país da América do Sul que oferece boas lições sobre como os governos podem tratar a moradia como um direito humano.

Devo dizer que, na prática, o Brasil não tem conseguido garantir a proteção integral do direito à moradia adequada. Ficou para trás em muitos aspectos, no número de pessoas com moradias inadequadas, em assentamentos informais e desalojadas, inclusive aquelas que vivem na Amazônia e, muitas vezes, com extrema violência.

Mas, pelo menos, países como o Brasil mostram o que é possível fazer legalmente e do ponto de vista político. E seu atual governo pretende fazer a coisa certa para atingir as metas que seu próprio sistema legal estabelece.

 

Fonte: BBC News Mundo

 

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