'Airbnb e Booking pioram crise imobiliária,
mas origem do problema é outra'
O aumento do número de
pessoas sem-teto em vários países — como Chile, Espanha, Estados Unidos — é a
ponta do iceberg daquilo que o relator especial da ONU sobre o direito à
moradia adequada descreve como uma "imensa crise" de escala global.
"Enquanto falamos
sobre inteligência artificial, colônias em Marte e outras ideias inalcançáveis,
esquecemos que grande parte da humanidade não tem acesso a coisas básicas como
moradia", diz Balakrishnan Rajagopal em entrevista à BBC News Mundo,
serviço de notícias em espanhol da BBC.
De acordo com suas
estimativas, quase um em cada cinco habitantes do planeta vive sem moradia
adequada, apesar de ser um direito humano — e este número pode passar de 3
bilhões de pessoas em poucos anos.
Advogado e professor
de Direito e Desenvolvimento do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT,
na sigla em inglês), nos Estados Unidos, Rajagopal aponta diversas razões por
trás deste fenômeno.
Mas também sugere
soluções — como oferecer uma proteção melhor aos inquilinos contra despejos — e
afirma que, apesar da "escassez perpétua" de moradias na América
Latina, alguns países da região têm exemplos a serem considerados.
Brasil e Colômbia
oferecem, segundo Rajagopal, "boas lições sobre como os governos podem
tratar a moradia como um direito humano".
No entanto, ele afirma
que, na prática, "o Brasil não tem conseguido garantir a proteção integral
do direito à moradia adequada".
<><> A
seguir, você confere um resumo da entrevista que Rajagopal concedeu por
telefone à BBC News Mundo.
• O mundo está passando por uma crise
habitacional?
Balakrishnan Rajagopal
- Sim, o mundo passou e está passando por uma imensa crise habitacional de
diferentes dimensões.
Temos crise de moradia
a preços acessíveis, de desalojamento forçado, de criminalização das populações
sem-teto, e também temos uma crise no fornecimento de moradias adequadas para
os desabrigados pelas mudanças climáticas.
Quando as pessoas são
desalojadas e perdem suas casas, elas vagam de um lugar para outro sem um
reassentamento adequado, e se afundam cada vez mais na pobreza e na falta de
esperança.
Isso está criando
crises secundárias e terciárias.
• Você poderia fornecer números?
Rajagopal - Estimamos
que cerca de 1,6 bilhão de pessoas carecem de moradia adequada em todo o mundo.
Se as tendências atuais se mantiverem, este número pode dobrar até 2030.
Há mais de 110 milhões
de pessoas que foram desalojadas à força.
Estes números têm
crescido devido ao aumento dos conflitos em todo o mundo, que levam as pessoas
a fugirem de suas casas. Vimos isso na Síria, na Ucrânia, em Gaza, nos
territórios palestinos. Também vimos pessoas fugindo de suas casas por causa de
crises econômicas ou políticas, como a da Venezuela, que gerou um grande número
de migrantes.
O número de pessoas
desalojadas pelas mudanças climáticas pode aumentar drasticamente, à medida que
começarem a atravessar para outros países, se o nível dos oceanos subir cada
vez mais rápido, e a desertificação, as chuvas, as inundações e os incêndios aumentarem.
Temos visto esta tendência desde os EUA até a Austrália, passando por Europa,
América Latina e países da Ásia.
No que diz respeito à
crise de moradia acessível, cada vez mais gente em todo o mundo não tem
condições de ter uma casa decente. Estimamos que este número ultrapasse 100
milhões de pessoas, e esteja aumentando de forma significativa.
• O número de 1,6 bilhão de pessoas sem
moradia adequada e serviços básicos é historicamente sem precedentes?
Rajagopal - É justo
dizer que não tem precedentes devido à natureza do problema. Por muito tempo, a
moradia inadequada não foi considerada uma condição problemática pelo ser
humano. Pelo contrário, trata-se de reconhecer a habitação digna como algo que
vale a pena defender.
Além disso, como vimos
na América Latina, o número de pessoas que vivem em áreas urbanas aumentou, e
na década de 1960 superou a capacidade dos países de fornecer moradia adequada.
Assim surgiram grandes
assentamentos informais, as chamadas favelas, especialmente nos países em
desenvolvimento. E aqueles que vivem na maioria destes assentamentos ainda
carecem de moradia adequada.
• Há países latino-americanos com os quais
você se preocupa mais?
Rajagopal - Estou
muito preocupado com o impacto do desalojamento causado por crises políticas ou
conflitos na região, como na Venezuela.
Estou muito preocupado
com o impacto das mudanças climáticas nos países da região, incluindo a América
Central. Em países como El Salvador ou Guatemala, os impactos são muito fortes.
Vemos uma combinação
do impacto das medidas relacionadas à covid-19, da inflação e de uma crescente
falta de acesso à moradia devido a uma escassez perpétua de moradias nos países
da região.
Tudo isso significa
que existe uma verdadeira crise econômica e social na região. Porque o maior
gasto na vida de uma pessoa é com moradia.
Por isso, é muito
importante que o preço e a acessibilidade da moradia estejam em ordem. Do
contrário, a maioria vai se sentir vulnerável, e pode facilmente entrar em
crise. E é muito difícil tirá-los da crise.
• E qual é a situação nos EUA, a principal
economia do mundo?
Rajagopal - Há uma
crise muito grave, com mais de 650 mil pessoas sem-teto nos EUA, contando
apenas os que dormem na rua e em abrigos. Se adotarmos a definição que está
ganhando cada vez mais aceitação na Europa, talvez estejamos falando do dobro
disso.
Isso se tornou uma
questão política nas atuais eleições, com um partido defendendo que a crise dos
sem-teto seja resolvida com medidas extremamente violentas, com ameaças de
expulsar os sem-teto das cidades, e colocá-los no que parecem ser campos de
concentração, algo alarmante, perigoso e contrário aos direitos humanos.
A raiz da crise dos
sem-teto nos EUA é que eles não conseguem construir moradias com rapidez
suficiente. E as moradias que existem são inacessíveis para a maioria das
pessoas devido às regras que regem quem pode ter acesso a elas, administradas
pelas comunidades de forma a manter afastados aqueles que consideram
indesejáveis.
A resposta é dizer que
vamos colocar os sem-teto na cadeia ou impor sanções a eles. A recente decisão
da Suprema Corte no caso de Grants Pass, no Oregon, dá luz verde para essa
abordagem [a Suprema Corte dos EUA determinou que as cidades podem punir os sem-teto
por dormirem em espaços públicos, mesmo que não tenham outro lugar para ir].
Então, cada vez mais
cidades e até mesmo governos estaduais estão adotando essa posição bastante
perigosa. Outras abordagens que funcionam não são consideradas.
As pessoas perdem suas
casas porque os aluguéis não param de subir e, quando não conseguem pagar, são
expulsas. Isso afeta desproporcionalmente as minorias, pessoas não brancas,
mulheres e crianças.
Deveria ser um dos
desafios de política pública mais importantes para qualquer governo. Mas isso
ainda não aconteceu.
• Você vê algo semelhante na Europa?
Rajagopal - Na maioria
dos países europeus, observo tendências semelhantes. Estive recentemente na
Irlanda do Norte, onde há uma enorme crise à espera de moradias a preços
acessíveis, de pessoas sem-teto por causa disso, uma incapacidade de investir
na construção de moradias, e uma crescente demonização dos sem-teto.
Também vi isso na
Holanda, onde alguns partidos políticos culpam os migrantes pela crise,
especialmente os migrantes não ocidentais, o que é impreciso e injusto.
A crise habitacional
ali se deve a políticas equivocadas. Mas era mais fácil para os políticos
dizerem que se deve aos migrantes. Além disso, em vez de apontar para os
ucranianos que estão chegando ao país em maior número, eles apontam para
aqueles que vêm de países do sul global, por exemplo, sírios ou afegãos, porque
é sempre conveniente culpar alguém que não se parece com você.
• O que você diz é chocante: numa época de
consumismo crescente, de acesso a bens e tecnologia inimagináveis há algum
tempo, cada vez mais pessoas têm dificuldade de acesso a serviços básicos e
moradia adequada, um direito humano fundamental...
Rajagopal - Exato. É
quase como prestar atenção nos detalhes, e não no que realmente importa. Porque
enquanto falamos de inteligência artificial, colônias em Marte e outras ideias
inalcançáveis, esquecemos que grande parte da humanidade não tem acesso a coisas
básicas como moradia, alimentação, água potável ou saneamento.
E não estamos fazendo
um bom trabalho para resolver esses problemas.
• Você ressalta que este é um problema
político. A responsabilidade é dos governos?
Rajagopal - Sim,
porque os governos não reconhecem coisas tão importantes como a moradia, a
alimentação, a água potável e o saneamento como direitos humanos. Em vez disso,
encaram como mercadorias a serem compradas e vendidas como qualquer outro
produto no mercado.
A moradia é um direito
humano. E, infelizmente, esse paradigma de mercado sobre a habitação tem sido
muito dominante em todos os países. O financiamento habitacional, que é a
tendência de tratar a moradia como um ativo financeiro, é uma das principais causas
da crise habitacional.
Os países devem mudar
a sua atitude e garantir que a moradia seja protegida como um direito humano.
Isso significa atribuir a ela pelo menos o mesmo status de outros direitos que
sustentam uma economia de mercado, como a propriedade privada, que é mais bem
protegida em muitos países.
Não é de se
surpreender que a moradia esteja cada vez menos disponível para as pessoas,
porque é tratada como uma mercadoria.
• O problema de financiamento é político
ou também pode ser atribuído aos bancos e outras instituições financeiras?
Rajagopal -
Fundamentalmente, é um problema político, porque o financiamento é uma questão
que pode ser regulamentada, e suas consequências negativas se devem à falta de
regulamentação.
O problema é a
natureza não regulamentada dos fluxos financeiros, e o domínio das instituições
financeiras para tomar decisões em seu próprio interesse, o que não reflete de
fato o interesse geral da sociedade. É por isso que é necessária uma
regulamentação rigorosa.
Não temos nem sequer
um tratado internacional para regular os fluxos financeiros. É terrível que
haja trilhões de dólares circulando, e não haja nenhuma maneira de regulá-los a
nível global.
Tudo depende dos
governos dos grandes Estados hegemônicos, e especialmente dos Estados Unidos,
porque todas as transações financeiras passam, em última análise, pelo seu
sistema financeiro.
Na verdade, os EUA
funcionam como o regulador financeiro global. O resto do mundo paga um preço
por essa hegemonia. É inaceitável.
• Muitos culpam plataformas online — como
Airbnb ou Booking.com — pelo aumento dos custos de moradia em diferentes
cidades. Qual é o impacto real destas plataformas na crise de acessibilidade à
moradia?
Rajagopal - As
plataformas podem agravar uma crise quando esta já existe, mas não a criam.
Quando as plataformas
entram num mercado com escassez de moradia a preços acessíveis, retiram muitas
moradias do mercado imobiliário e as destinam ao aluguel de curta temporada.
Isso aumenta a crise existente. E as pessoas concluem erroneamente que as plataformas
são o motivo da crise.
Mas em nove de cada
dez casos, a crise da moradia acessível se deve a problemas estruturais.
Uma delas é a falta de
controle sobre o preço do terreno, que é a parte mais cara da construção de uma
casa. Se o governo não controlar os preços dos terrenos, não vai poder garantir
moradias a preços acessíveis.
físicas. Compare com
cidades ricas sem uma crise de moradia acessível, como Viena ou Cingapura, onde
é possível ter uma casa independentemente do seu nível de renda.
Como? Em Cingapura o
Estado controla os terrenos, e mais de 85% das casas são alugadas a longo
prazo; não são propriedade privada. Em Viena, uma grande parte das moradias é
de propriedade de cooperativas.
Por isso, controlar os
preços dos terrenos é fundamental para garantir moradia acessível. E, em muitos
países, isso não existe.
• Como você responderia àqueles que
acreditam que o que você está propondo contraria os princípios básicos do livre
mercado, que é o motor do capitalismo, e poderia aumentar o tamanho do governo
e da burocracia?
Rajagopal - Existe o
risco de isso acontecer. Estas são críticas ou preocupações legítimas. Por
outro lado, Cingapura é a cidade mais hipercapitalista do mundo, e consegue
tratar a terra não como uma mercadoria privada, mas como algo mais controlado
publicamente, mantendo um sistema capitalista extremamente bem-sucedido. Por
que outros países não podem fazer isso?
• Qual é então a primeira coisa que os
países e os governos deveriam fazer para melhorar o acesso da população à
moradia adequada e reverter a crise?
Rajagopal - Depende da
natureza da crise, mas em geral os países deveriam começar a tratar a moradia
como um direito humano, proteger legalmente esse direito, dificultando o
despejo, especialmente de inquilinos.
E, a médio e longo
prazo, estabelecer as bases para um maior controle sobre os preços dos
terrenos, por exemplo, explorando acordos de partilha de terras ou promovendo
acordos de cooperativas habitacionais.
• Você poderia mencionar algum país das
Américas como modelo para essas políticas?
Rajagopal - Nas Américas,
o Brasil fez o máximo para explorar, pelo menos, as medidas políticas
essenciais.
Por exemplo, a
Constituição brasileira articula o direito à propriedade como algo que tem uma
função social, e não apenas como um bem econômico. Esse é um reconhecimento
muito importante, e algumas decisões judiciais ofereceram conclusões bastante
interessantes com base nisso.
E, no Brasil, existem
leis que permitem a redistribuição de terras. Na verdade, existe um órgão
responsável pela distribuição de terras que não são utilizadas de maneira
adequada.
Existe também um
estatuto municipal que desencoraja a propriedade especulativa de terras e
propriedades urbanas, e dispõe de instrumentos para intervir nos mercados de
moradias.
Então, de uma
perspectiva política e jurídica, o Brasil é, junto à Colômbia, um país da
América do Sul que oferece boas lições sobre como os governos podem tratar a
moradia como um direito humano.
Devo dizer que, na
prática, o Brasil não tem conseguido garantir a proteção integral do direito à
moradia adequada. Ficou para trás em muitos aspectos, no número de pessoas com
moradias inadequadas, em assentamentos informais e desalojadas, inclusive aquelas
que vivem na Amazônia e, muitas vezes, com extrema violência.
Mas, pelo menos,
países como o Brasil mostram o que é possível fazer legalmente e do ponto de
vista político. E seu atual governo pretende fazer a coisa certa para atingir
as metas que seu próprio sistema legal estabelece.
Fonte: BBC News Mundo
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