Trabalhadores denunciam frigoríficos como
‘fábricas de lesões e acidentes’
“O
TRABALHADOR entra bem na empresa e sai atrofiado”, diz Antônio*, que atuou
por dois anos como operador de máquinas no frigorífico da Marfrig em Ji-Paraná,
em Rondônia, até cair de uma altura de seis metros. Cinco anos depois do
acidente, em 2023, ele ainda não conseguia andar mais de 200 metros sem sentir
dor.
“Eu não dava conta do
trabalho, deixava as peças caírem pela dor nos braços”, conta Marlene*, que
trabalhou refilando carne na JBS em São Miguel do Guaporé, em Rondônia.
Ana*, ex-empregada da
Marfrig na unidade de Bataguassu (MS) foi diagnosticada com tendinite depois de
dez anos de serviço. “Eu sentia muita dor durante o trabalho, mas fui levando
até não aguentar mais segurar um garfo. Hoje não dou conta de lavar nem um
sapato”, revela.
A produção de carne é
um dos pilares da economia brasileira. O país sedia três dos maiores produtores
de proteína animal do planeta: JBS, Marfrig e Minerva. A cadeia produtiva
completa da carne responde por 10% do PIB nacional. Mas essa pujança não se reflete em segurança e saúde para o
trabalhador, segundo investigação do Programa de Pesquisa da Repórter
Brasil, cuja íntegra está publicada em um relatório ‘Fábrica de acidentes’, desenvolvido em parceria com a organização dos Países
Baixos SOMO. O relatório também está disponível em
inglês neste link.
Em 2019, os empregados
da indústria da carne no Brasil sofreram quatro vezes mais acidentes de trabalho e tiveram dez vezes mais doenças profissionais do que o
trabalhador brasileiro médio. Comparada às estatísticas internacionais
disponíveis, a incidência de acidentes não fatais e fatais nos frigoríficos
brasileiros é elevada.
“É uma fábrica de
acidentes e lesões”, confirma Marcos Cardoso dos Santos, presidente do
Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação do Estado de Rondônia
(Sintra Intra).
Quase 140 mil pessoas
trabalham em frigoríficos de bovinos no Brasil, segundo dados publicados
pela Relação Anual de Informações Sociais, do Ministério do Trabalho e Emprego. Além do abate em si, há
setores como a desossa, o corte e a embalagem dos pedaços de carne – é um
serviço que exige manuseio de objetos perfurocortantes como serras e facas, e
muitas horas em ambientes com temperaturas extremas. Os movimentos são
repetidos inúmeras vezes à medida em que as carcaças são carregadas ao longo da
linha de produção por esteiras, e é preciso seguir o ritmo imposto pelas
máquinas.
“Eu sentia muita dor
na caixa do peito, não aguentava respirar. E também dor no ombro e nas mãos”,
diz um trabalhador. “A faca ‘escapou’ e cortei a mão”, revela o outro. “Quem
tem mais de quatro anos de firma, e usa faca, sempre tem dor”, reclama mais um.
“Eu não aguentava puxar as peças da esteira. A enfermeira dava paracetamol,
cataflan, e mandava de volta para o trabalho”, completa uma quarta pessoa –
todas entrevistadas sob condição de anonimato.
A Repórter
Brasil foi a campo e realizou 63 entrevistas com empregados e
ex-empregados de frigoríficos para ouvir suas avaliações sobre o trabalho. A
grande maioria (84%) dos entrevistados diz ter doenças relacionadas ao
trabalho, e muitos deles (40%) sofreram acidentes de trabalho. Quase todos
(93%) relatam desconforto térmico, a grande maioria (87%) faz horas extras, e
menos da metade faz as pausas obrigatórias, sendo que há consenso entre
especialistas de que esses fatores podem levar a mais acidentes e doenças.
“O ritmo de trabalho
intenso, em ambiente confinado que combina diversos fatores de risco, leva ao
adoecimento, a acidentes e a mortes”, confirma Leomar Daroncho, procurador do
Ministério Público do Trabalho (MPT).
Em nota, a Marfrig
afirmou que cumpre todas as normas de segurança e medicina do trabalho, e que
conta, em seu quadro de funcionários, “profissionais especialistas em
fisioterapia e em ergonomia, médico do trabalho, enfermeiro, engenheiro e
técnico do trabalho”. “As atividades dos colaboradores são realizadas dentro
dos parâmetros normativos de segurança, ergonomia e saúde, sem a existência de
ritmo intenso, estipulação de metas ou imposição de jornadas extenuantes de
trabalho”, completa.
A JBS frisou que segue
as normas previstas em legislações civis e trabalhistas que são “revisadas
anualmente com base em indicadores de saúde e segurança, como rotatividade,
absenteísmo e horas extras, assim como apontamentos feitos pelos funcionários”.
A Minerva também
afirmou seguir medidas de saúde e segurança no trabalho. Em nota, disse que
“busca ainda garantir um ambiente de trabalho de segurança e bem-estar,
promovendo capacitação, iniciativas para a melhoria da qualidade de vida e
seguindo um conjunto de diretrizes que englobam desde seu próprio Código de
Ética – Guia de Conduta até as legislações trabalhistas de cada país em
que atua”.
·
Norma que reduziu riscos esteve ameaçada
por Bolsonaro
As precárias condições
de trabalho em frigoríficos não são novidade. Tanto que em abril de 2013,
após mais de uma década de debates, o governo publicou a Norma Regulamentadora nº 36 do Ministério do Trabalho e Emprego, um texto técnico que
regulamenta o trabalho nas plantas de abate. A NR-36, como é mais conhecida no
meio, estabeleceu parâmetros de saúde e segurança para os trabalhadores do
setor, na época muito criticado pelo
ritmo intenso de produção imposto pelos empregadores.
“Foi uma luta de anos,
demonstrando o quadro de severas consequências sobre a saúde e a vida de
trabalhadores, mas resultou no consenso entre empregadores, trabalhadores e
governo para a construção de balizas que protegessem, minimamente, os
trabalhadores de frigoríficos”, recorda Daroncho, do MPT.
Teresa* e Leandro*
trabalharam em um grande frigorífico no centro-oeste há mais de dez anos, antes
da implementação da NR-36. Naquela época, contam, não existiam pausas ao longo
da jornada e se fazia hora extra todos os dias. “O ritmo de trabalho era pauleira.
Eu fazia o serviço de três pessoas”, relata o funcionário. A intensidade cobrou
um preço: Teresa ainda sente dores nas costas e braços, e seu dedo da mão não
dobra mais: “a vida da gente ficava muito presa lá dentro”, desabafa.
Os dados indicam um
cenário melhor após a entrada em vigor da NR-36. Historicamente, a principal
causa de afastamentos do trabalho no setor são doenças osteomusculares e de
tecido conjuntivo – problemas como lesões nos músculos, tendões e
articulações. Mas essas ocorrências caíram de 1,7 mil em 2012, para 923, em
2022. Já as fraturas, segundo motivo no ranking de afastamentos do INSS em
frigoríficos, passaram de 1,3 mil para pouco mais de mil casos em dez
anos.
“Não temos dúvida que
a NR-36 evitou milhares de acidentes, mutilações e óbitos dentro dos
frigoríficos”, disse o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores da
Alimentação, Artur Bueno, em um evento que marcou os dez anos da normativa,
realizado em 2023.
A celebração também
refletia uma vitória mais recente: em janeiro de 2022, uma liminar freou um
plano do governo do então presidente Jair Bolsonaro (PL) de fazer mudanças na
NR-36. O projeto de revisão da norma, que foi apoiado por entidades que representam os
frigoríficos, previa, entre outros pontos, uma mudança
no regime de pausas estabelecido pela norma regulamentadora – as empresas são
obrigadas a conceder um descanso total de 60 minutos ao dia, distribuídos em
seis pausas de dez minutos ou em três pausas de 20 minutos para a recuperação
física dos trabalhadores.
·
Mais da metade dos frigoríficos foi autuada
recentemente
No período de 2017 a
2020, de 1.437 plantas de abate auditadas no setor frigorífico, 64% foram autuadas por falta de atendimento aos requisitos da NR-36. “Ainda
há necessidade de avançar, especialmente com relação às lesões por esforço
repetitivo, o respeito às pausas e inibição da contaminação dos trabalhadores
por vazamento de gases tóxicos como, amônia”, destaca Rogério Araújo, auditor
fiscal do trabalho do Ministério Público do Trabalho (MTE).
Exemplo: um laudo
pericial do Ministério Público do Trabalho (MPT) feito em novembro de 2022 após
uma ação de fiscalização na unidade de Bataguassu (MS) da Marfrig – a mesma em
que Ana* trabalhou – revela irregularidades em relação à ergonomia, disponibilização
de Equipamentos de Proteção Individual e medidas de proteção para a manipulação
dos maquinários no frigorífico. “A Marfrig de Bataguassu não vem adotando
medidas suficientes de redução e/ou eliminação dos riscos”, conclui o texto.
Outra vistoria do MPT
em 2019 já havia “constatado a presença de situações de risco grave e iminente,
colocando em risco a integridade física, a saúde e a vida das pessoas”. O órgão
levantou que entre 2018 e 2019 foram fornecidos mais de 1,5 mil atestados por
doenças osteomusculares na unidade de Bataguassu, número considerado elevado
frente aos 1,3 mil trabalhadores da unidade.
Em agosto de de 2023,
o MPT também concluiu que a JBS apresenta “resistência em implementar medidas
que afetem diretamente os custos e a produção das unidades frigoríficas” em
Rondônia. Além disso, o órgão afirma que a empresa foi “incapaz de comprovar
que mantém a temperatura dos ambientes de trabalho dentro dos limites de
tolerância, realiza o controle adequado das pausas e possui parâmetros de
produtividade compatíveis com a capacidade laboral de cada trabalhador”. A ação
trabalhista, iniciada em 2010, determinou o pagamento de multa de R$ 552,2 mil
pela empresa.
Parte dos prejuízos
com o descumprimento de normas trabalhistas, como a NR-36, recaem sobre os
cofres públicos. Em 2021, o governo federal desembolsou R$ 1,8 bilhão com
auxílio doença por acidente de trabalho ocorridos no país, em todos os setores
econômicos – as despesas acumuladas desde 2012 já bateram R$ 23,4 bilhões.
“Acidente de trabalho é algo que precisa ser combatido, é algo interligado com
o subdesenvolvimento da nação”, diz Alberto Balazeiro, do Tribunal Superior do
Trabalho. “É preciso compreender que além do drama de uma família, que é
irreparável, existe um drama geracional, social, de gravidade imensa”,
completa.
Em relação às
irregularidades encontradas em suas plantas em Vilhena e Porto Velho, a JBS
disse que “o tema é anterior à publicação da NR dos Frigoríficos (NR36). Não há
laudo que indique descumprimento das normas em vigência”. Já a Marfrig afirmou
que “a maioria absoluta dos itens de segurança e de ergonomia foram
considerados adequados pela fiscalização e que as melhorias sugeridas estão
sendo colocadas em prática”.
*Nomes fictícios
para preservar as identidades dos trabalhadores
¨ Trabalhadores de Congonhas seguem sob risco de atropelamento,
diz fiscalização
RESPONSÁVEL desde
outubro do ano passado pela administração do aeroporto de Congonhas, na capital
paulista, a concessionária espanhola Aena não vem cumprindo medidas para
garantir mais segurança aos funcionários que atuam nas pistas do terminal de voos,
afirmam auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
A Aena também é
acusada pelo sindicato dos aeroportuários de pressionar e até demitir
empregados contrários às mudanças implementadas pela empresa no regime de
trabalho dos funcionários.
Desde março, o
aeroporto passa por uma inspeção. Em abril, todas as faixas de pedestres usadas
por trabalhadores no pátio de aeronaves foram interditadas pelos fiscais do MTE, por risco de atropelamento.
Nessas faixas, também
atravessadas por veículos transportando bagagens e outras cargas, uma
funcionária terceirizada que atuava na limpeza de aeronaves morreu depois de
ser atingida por um caminhão de combustíveis, em julho de 2023. Na época, o
aeroporto ainda era administrado pela Infraero, estatal brasileira. Porém, os
fiscais avaliam que, mesmo após a Aena assumir a concessão, o perigo persiste.
“Em Congonhas, se
‘normalizou’ que os trabalhadores circulem a pé ao longo do pátio de aeronaves,
mas isso gera um enorme risco de atropelamento”, explica Filipe Nascimento,
auditor fiscal do MTE que integra a equipe que inspeciona o aeroporto. Um vídeo
obtido pela reportagem mostra um fiscal de pista orientando um avião, em meio
ao trânsito dos veículos.
Questionada, a Aena
respondeu em nota que “cumpre rigorosamente todas as normas e regulamentos da
aviação civil e passa por inspeções periódicas da Anac (Agência Nacional de
Aviação Civil), atestando o cumprimento de todas as exigências regulatórias de
segurança para passageiros e trabalhadores que atuam no aeródromo”.
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Fiscalização já dura
mais de três meses
Em abril passado,
depois de interditarem as faixas de pedestres, os auditores fiscais do MTE
determinaram que os funcionários que atuam nas pistas fossem transportados por
veículos ou circulassem por meio das pontes de embarque, também chamadas de
‘fingers’.
A nota da empresa diz
que, “desde o primeiro momento, a concessionária acatou integralmente todas as
determinações. A Aena proibiu o trânsito de pessoas entre as posições de parada
das aeronaves, colocou ônibus para circulação interna e mudou a faixa de pedestres
de lugar”. O texto sustenta ainda que, “sob gestão da Aena, não houve nenhum
incidente com vítimas no aeroporto de Congonhas”.
Porém, segundo a
fiscalização, os funcionários continuam circulando a pé entre as aeronaves,
mesmo nas faixas interditadas, como mostra outro vídeo obtido pela reportagem.
O transporte
providenciado pela concessionária também é alvo de críticas: além de não
passarem com frequência, os ônibus não param em todos os locais necessários
para acessar as aeronaves, o que obriga os trabalhadores a caminhar pelo pátio,
em desacordo com as determinações dos auditores do MTE.
“Nossa equipe tinha a
expectativa de concluir a operação em pouco tempo, contando com a iniciativa da
concessionária em resolver um problema tão grave”, afirma o auditor Felipe
Nascimento.
A Aena, no entanto,
entrou com uma ação na Justiça do Trabalho para suspender a fiscalização em
Congonhas. Questionada sobre esse assunto específico, a empresa não se
manifestou.
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‘Funcionários estão sofrendo pressão’
Depois de meses de
negociação, um acordo coletivo com os aeroportuários, envolvendo Congonhas e os
outros dez terminais que a Aena administra desde o final de 2023, foi assinado
em abril. Porém, ainda há pendências a serem definidas, principalmente sobre
temas como escalas e compensações das jornadas de trabalho da categoria.
A Aena apresentou uma
proposta de dois regimes, escolhidos de acordo com a necessidade da própria
concessionária. O primeiro tem o formato 4×2: quatro dias trabalhados e dois
dias de folga, com expedientes de 9 horas diárias. Já o segundo é o de 2×2: dois
dias trabalhados e dois dias de folga, com turnos de 12 horas diárias.
Aprovada pelos
trabalhadores dos dez outros aeroportos administrados pela concessionária,
a oferta foi
rejeitada pelos funcionários de Congonhas. Como se tratava de uma negociação
única, os aeroportuários do terminal da capital paulista foram voto vencido.
“Eles fizeram uma
reunião em abril para ‘apresentar’ a proposta deles de acordo coletivo e de
escala. A gente votou contra. Mas eles ameaçaram mesmo para que a gente
aceitasse, se não iam tirar benefícios”, relata um ex-funcionário de Congonhas,
que pediu para não ser identificado.
Segundo Antonio
Macedo, diretor do Sindicato Nacional dos Aeroportuários (Sina), atualmente os
fiscais de pista em Congonhas estão sujeitos a uma escala não amparada pelo
acordo coletivo, no sistema 2×1: dois dias em serviço e um de folga, com 9
horas de jornada.
“Para os trabalhadores
de pista, é algo que não só é ilegal, como é imoral e humanamente impossível de
cumprir”, critica Macedo. Segundo informações da própria Aena, a média de voos
diários em Congonhas foi de 590, ao longo de 2023. “A pressão no pátio de
aeronaves é muito grande. O fiscal de pista, que antes acompanhava um ou dois
‘fingers’, agora precisa monitorar três ou quatro”, complementa o
sindicalista.
“As pessoas que usam o
aeroporto não sabem a que custo estão acontecendo as mudanças em Congonhas.
Elas não sabem que os funcionários estão sofrendo pressão, ficando doentes,
inclusive com transtornos psiquiátricos”, conta outro ex-funcionário do aeroporto
ouvido pela reportagem que também pediu para não ser identificado.
Em maio, alguns
profissionais que questionavam as propostas da Aena foram demitidos, sem justa
causa. “Basicamente, a Aena despediu as pessoas que pediam mudanças na proposta
de acordo coletivo, melhores condições de trabalho, esse tipo de coisa”, conta um
dos desligados.
O diretor do sindicato
diz que há um clima de medo entre os funcionários em Congonhas. “Eles têm
receio de se manifestar e de serem despedidos”, diz. Macedo afirma ainda que o
sindicato vem orientando funcionários demitidos a entrarem na Justiça contra a
Aena. As denúncias sobre assédio e perseguição também estão sendo investigadas
pelos auditores do MTE. Questionada especificamente sobre esse assunto, a Aena
não respondeu.
Fonte: Repórter Brasil
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