quarta-feira, 24 de julho de 2024

Trabalhadores denunciam frigoríficos como ‘fábricas de lesões e acidentes’

“O TRABALHADOR entra bem na empresa e sai atrofiado”, diz Antônio*, que atuou por dois anos como operador de máquinas no frigorífico da Marfrig em Ji-Paraná, em Rondônia, até cair de uma altura de seis metros. Cinco anos depois do acidente, em 2023, ele ainda não conseguia andar mais de 200 metros sem sentir dor.

“Eu não dava conta do trabalho, deixava as peças caírem pela dor nos braços”, conta Marlene*, que trabalhou refilando carne na JBS em São Miguel do Guaporé, em Rondônia.

Ana*, ex-empregada da Marfrig na unidade de Bataguassu (MS) foi diagnosticada com tendinite depois de dez anos de serviço. “Eu sentia muita dor durante o trabalho, mas fui levando até não aguentar mais segurar um garfo. Hoje não dou conta de lavar nem um sapato”, revela.

A produção de carne é um dos pilares da economia brasileira. O país sedia três dos maiores produtores de proteína animal do planeta: JBS, Marfrig e Minerva. A cadeia produtiva completa da carne responde por 10% do PIB nacional. Mas essa pujança não se reflete em segurança e saúde para o trabalhador, segundo investigação do Programa de Pesquisa da Repórter Brasil, cuja íntegra está publicada em um relatório ‘Fábrica de acidentes’, desenvolvido em parceria com a organização dos Países Baixos SOMO. O relatório também está disponível em inglês neste link.

Em 2019, os empregados da indústria da carne no Brasil sofreram quatro vezes mais acidentes de trabalho e tiveram dez vezes mais doenças profissionais do que o trabalhador brasileiro médio. Comparada às estatísticas internacionais disponíveis, a incidência de acidentes não fatais e fatais nos frigoríficos brasileiros é elevada.

“É uma fábrica de acidentes e lesões”, confirma Marcos Cardoso dos Santos, presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação do Estado de Rondônia (Sintra Intra).

Quase 140 mil pessoas trabalham em frigoríficos de bovinos no Brasil, segundo dados publicados pela Relação Anual de Informações Sociais, do Ministério do Trabalho e Emprego. Além do abate em si, há setores como a desossa, o corte e a embalagem dos pedaços de carne – é um serviço que exige manuseio de objetos perfurocortantes como serras e facas, e muitas horas em ambientes com temperaturas extremas. Os movimentos são repetidos inúmeras vezes à medida em que as carcaças são carregadas ao longo da linha de produção por esteiras, e é preciso seguir o ritmo imposto pelas máquinas.

“Eu sentia muita dor na caixa do peito, não aguentava respirar. E também dor no ombro e nas mãos”, diz um trabalhador. “A faca ‘escapou’ e cortei a mão”, revela o outro. “Quem tem mais de quatro anos de firma, e usa faca, sempre tem dor”, reclama mais um. “Eu não aguentava puxar as peças da esteira. A enfermeira dava paracetamol, cataflan, e mandava de volta para o trabalho”, completa uma quarta pessoa – todas entrevistadas sob condição de anonimato.

A Repórter Brasil foi a campo e realizou 63 entrevistas com empregados e ex-empregados de frigoríficos para ouvir suas avaliações sobre o trabalho. A grande maioria (84%) dos entrevistados diz ter doenças relacionadas ao trabalho, e muitos deles (40%) sofreram acidentes de trabalho. Quase todos (93%) relatam desconforto térmico, a grande maioria (87%) faz horas extras, e menos da metade faz as pausas obrigatórias, sendo que há consenso entre especialistas de que esses fatores podem levar a mais acidentes e doenças.

“O ritmo de trabalho intenso, em ambiente confinado que combina diversos fatores de risco, leva ao adoecimento, a acidentes e a mortes”, confirma Leomar Daroncho, procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT).

Em nota, a Marfrig afirmou que cumpre todas as normas de segurança e medicina do trabalho, e que conta, em seu quadro de funcionários, “profissionais especialistas em fisioterapia e em ergonomia, médico do trabalho, enfermeiro, engenheiro e técnico do trabalho”. “As atividades dos colaboradores são realizadas dentro dos parâmetros normativos de segurança, ergonomia e saúde, sem a existência de ritmo intenso, estipulação de metas ou imposição de jornadas extenuantes de trabalho”, completa.

A JBS frisou que segue as normas previstas em legislações civis e trabalhistas que são “revisadas anualmente com base em indicadores de saúde e segurança, como rotatividade, absenteísmo e horas extras, assim como apontamentos feitos pelos funcionários”. 

A Minerva também afirmou seguir medidas de saúde e segurança no trabalho. Em nota, disse que “busca ainda garantir um ambiente de trabalho de segurança e bem-estar,  promovendo capacitação, iniciativas para a melhoria da qualidade de vida e seguindo um conjunto de diretrizes que englobam desde seu próprio Código de Ética – Guia de Conduta até  as legislações trabalhistas de cada país em que atua”.

·        Norma que reduziu riscos esteve ameaçada por Bolsonaro

As precárias condições de trabalho em frigoríficos não são novidade. Tanto que em abril de 2013, após mais de uma década de debates, o governo publicou a Norma Regulamentadora nº 36 do Ministério do Trabalho e Emprego, um texto técnico que regulamenta o trabalho nas plantas de abate. A NR-36, como é mais conhecida no meio, estabeleceu parâmetros de saúde e segurança para os trabalhadores do setor, na época muito criticado pelo ritmo intenso de produção imposto pelos empregadores.

“Foi uma luta de anos, demonstrando o quadro de severas consequências sobre a saúde e a vida de trabalhadores, mas resultou no consenso entre empregadores, trabalhadores e governo para a construção de balizas que protegessem, minimamente, os trabalhadores de frigoríficos”, recorda Daroncho, do MPT.

Teresa* e Leandro* trabalharam em um grande frigorífico no centro-oeste há mais de dez anos, antes da implementação da NR-36. Naquela época, contam, não existiam pausas ao longo da jornada e se fazia hora extra todos os dias. “O ritmo de trabalho era pauleira. Eu fazia o serviço de três pessoas”, relata o funcionário. A intensidade cobrou um preço: Teresa ainda sente dores nas costas e braços, e seu dedo da mão não dobra mais: “a vida da gente ficava muito presa lá dentro”, desabafa.

Os dados indicam um cenário melhor após a entrada em vigor da NR-36. Historicamente, a principal causa de afastamentos do trabalho no setor são doenças osteomusculares e de tecido conjuntivo – problemas como lesões nos músculos, tendões e  articulações. Mas essas ocorrências caíram de 1,7 mil em 2012, para 923, em 2022. Já as fraturas, segundo motivo no ranking de afastamentos do INSS em frigoríficos, passaram  de 1,3 mil para pouco mais de mil casos em dez anos.

“Não temos dúvida que a NR-36 evitou milhares de acidentes, mutilações e óbitos dentro dos frigoríficos”, disse o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Alimentação, Artur Bueno, em um evento que marcou os dez anos da normativa, realizado em 2023.

A celebração também refletia uma vitória mais recente: em janeiro de 2022, uma liminar freou um plano do governo do então presidente Jair Bolsonaro (PL) de fazer mudanças na NR-36. O projeto de revisão da norma, que foi apoiado por entidades que representam os frigoríficos, previa, entre outros pontos, uma mudança no regime de pausas estabelecido pela norma regulamentadora – as empresas são obrigadas a conceder um descanso total de 60 minutos ao dia, distribuídos em seis pausas de dez minutos ou em três pausas de 20 minutos para a recuperação física dos trabalhadores.

·        Mais da metade dos frigoríficos foi autuada recentemente

No período de 2017 a 2020, de 1.437 plantas de abate auditadas no setor frigorífico, 64% foram autuadas por falta de atendimento aos requisitos da NR-36. “Ainda há necessidade de avançar, especialmente com relação às lesões por esforço repetitivo, o respeito às pausas e inibição da contaminação dos trabalhadores por vazamento de gases tóxicos como, amônia”, destaca Rogério Araújo, auditor fiscal do trabalho do Ministério Público do Trabalho (MTE).

Exemplo: um laudo pericial do Ministério Público do Trabalho (MPT) feito em novembro de 2022 após uma ação de fiscalização na unidade de Bataguassu (MS) da Marfrig – a mesma em que Ana* trabalhou – revela irregularidades em relação à ergonomia, disponibilização de Equipamentos de Proteção Individual e medidas de proteção para a manipulação dos maquinários no frigorífico. “A Marfrig de Bataguassu não vem adotando medidas suficientes de redução e/ou eliminação dos riscos”, conclui o texto.

Outra vistoria do MPT em 2019 já havia “constatado a presença de situações de risco grave e iminente, colocando em risco a integridade física, a saúde e a vida das pessoas”. O órgão levantou que entre 2018 e 2019 foram fornecidos mais de 1,5 mil atestados por doenças osteomusculares na unidade de Bataguassu, número considerado elevado frente aos 1,3 mil trabalhadores da unidade. 

Em agosto de de 2023, o MPT também concluiu que a JBS apresenta “resistência em implementar medidas que afetem diretamente os custos e a produção das unidades frigoríficas” em Rondônia. Além disso, o órgão afirma que a empresa foi “incapaz de comprovar que mantém a temperatura dos ambientes de trabalho dentro dos limites de tolerância, realiza o controle adequado das pausas e possui parâmetros de produtividade compatíveis com a capacidade laboral de cada trabalhador”. A ação trabalhista, iniciada em 2010, determinou o pagamento de multa de R$ 552,2 mil pela empresa.

Parte dos prejuízos com o descumprimento de normas trabalhistas, como a NR-36, recaem sobre os cofres públicos. Em 2021, o governo federal desembolsou R$ 1,8 bilhão com auxílio doença por acidente de trabalho ocorridos no país, em todos os setores econômicos – as despesas acumuladas desde 2012 já bateram R$ 23,4 bilhões. “Acidente de trabalho é algo que precisa ser combatido, é algo interligado com o subdesenvolvimento da nação”, diz Alberto Balazeiro, do Tribunal Superior do Trabalho. “É preciso compreender que além do drama de uma família, que é irreparável, existe um drama geracional, social, de gravidade imensa”, completa.

Em relação às irregularidades encontradas em suas plantas em Vilhena e Porto Velho, a JBS disse que “o tema é anterior à publicação da NR dos Frigoríficos (NR36). Não há laudo que indique descumprimento das normas em vigência”. Já a Marfrig afirmou que “a maioria absoluta dos itens de segurança e de ergonomia foram considerados adequados pela fiscalização e que as melhorias sugeridas estão sendo colocadas em prática”. 

*Nomes fictícios para preservar as identidades dos trabalhadores

 

¨      Trabalhadores de Congonhas seguem sob risco de atropelamento, diz fiscalização

RESPONSÁVEL desde outubro do ano passado pela administração do aeroporto de Congonhas, na capital paulista, a concessionária espanhola Aena não vem cumprindo medidas para garantir mais segurança aos funcionários que atuam nas pistas do terminal de voos, afirmam auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). 

A Aena também é acusada pelo sindicato dos aeroportuários de pressionar e até demitir empregados contrários às mudanças implementadas pela empresa no regime de trabalho dos funcionários. 

Desde março, o aeroporto passa por uma inspeção. Em abril, todas as faixas de pedestres usadas por trabalhadores no pátio de aeronaves foram interditadas pelos fiscais do MTE, por risco de atropelamento. 

Nessas faixas, também atravessadas por veículos transportando bagagens e outras cargas, uma funcionária terceirizada que atuava na limpeza de aeronaves morreu depois de ser atingida por um caminhão de combustíveis, em julho de 2023. Na época, o aeroporto ainda era administrado pela Infraero, estatal brasileira. Porém, os fiscais avaliam que, mesmo após a Aena assumir a concessão, o perigo persiste.

“Em Congonhas, se ‘normalizou’ que os trabalhadores circulem a pé ao longo do pátio de aeronaves, mas isso gera um enorme risco de atropelamento”, explica Filipe Nascimento, auditor fiscal do MTE que integra a equipe que inspeciona o aeroporto. Um vídeo obtido pela reportagem mostra um fiscal de pista orientando um avião, em meio ao trânsito dos veículos.

Questionada, a Aena respondeu em nota que “cumpre rigorosamente todas as normas e regulamentos da aviação civil e passa por inspeções periódicas da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), atestando o cumprimento de todas as exigências regulatórias de segurança para passageiros e trabalhadores que atuam no aeródromo”.

<><> Parte inferior do formulário

Fiscalização já dura mais de três meses

Em abril passado, depois de interditarem as faixas de pedestres, os auditores fiscais do MTE determinaram que os funcionários que atuam nas pistas fossem transportados por veículos ou circulassem por meio das pontes de embarque, também chamadas de ‘fingers’. 

A nota da empresa diz que, “desde o primeiro momento, a concessionária acatou integralmente todas as determinações. A Aena proibiu o trânsito de pessoas entre as posições de parada das aeronaves, colocou ônibus para circulação interna e mudou a faixa de pedestres de lugar”. O texto sustenta ainda que, “sob gestão da Aena, não houve nenhum incidente com vítimas no aeroporto de Congonhas”. 

Porém, segundo a fiscalização, os funcionários continuam circulando a pé entre as aeronaves, mesmo nas faixas interditadas, como mostra outro vídeo obtido pela reportagem.

O transporte providenciado pela concessionária também é alvo de críticas: além de não passarem com frequência, os ônibus não param em todos os locais necessários para acessar as aeronaves, o que obriga os trabalhadores a caminhar pelo pátio, em desacordo com as determinações dos auditores do MTE.

“Nossa equipe tinha a expectativa de concluir a operação em pouco tempo, contando com a iniciativa da concessionária em resolver um problema tão grave”, afirma o auditor Felipe Nascimento. 

A Aena, no entanto, entrou com uma ação na Justiça do Trabalho para suspender a fiscalização em Congonhas. Questionada sobre esse assunto específico, a empresa não se manifestou.

<><> ‘Funcionários estão sofrendo pressão’

Depois de meses de negociação, um acordo coletivo com os aeroportuários, envolvendo Congonhas e os outros dez terminais que a Aena administra desde o final de 2023, foi assinado em abril. Porém, ainda há pendências a serem definidas, principalmente sobre temas como escalas e compensações das jornadas de trabalho da categoria.

A Aena apresentou uma proposta de dois regimes, escolhidos de acordo com a necessidade da própria concessionária. O primeiro tem o formato 4×2: quatro dias trabalhados e dois dias de folga, com expedientes de 9 horas diárias. Já o segundo é o de 2×2: dois dias trabalhados e dois dias de folga, com turnos de 12 horas diárias. 

Aprovada pelos trabalhadores dos dez outros aeroportos administrados pela concessionária, a oferta foi rejeitada pelos funcionários de Congonhas. Como se tratava de uma negociação única, os aeroportuários do terminal da capital paulista foram voto vencido.

“Eles fizeram uma reunião em abril para ‘apresentar’ a proposta deles de acordo coletivo e de escala. A gente votou contra. Mas eles ameaçaram mesmo para que a gente aceitasse, se não iam tirar benefícios”, relata um ex-funcionário de Congonhas, que pediu para não ser identificado. 

Segundo Antonio Macedo, diretor do Sindicato Nacional dos Aeroportuários (Sina), atualmente os fiscais de pista em Congonhas estão sujeitos a uma escala não amparada pelo acordo coletivo, no sistema 2×1: dois dias em serviço e um de folga, com 9 horas de jornada. 

“Para os trabalhadores de pista, é algo que não só é ilegal, como é imoral e humanamente impossível de cumprir”, critica Macedo. Segundo informações da própria Aena, a média de voos diários em Congonhas foi de 590, ao longo de 2023. “A pressão no pátio de aeronaves é muito grande. O fiscal de pista, que antes acompanhava um ou dois ‘fingers’, agora precisa monitorar três ou quatro”, complementa o sindicalista. 

“As pessoas que usam o aeroporto não sabem a que custo estão acontecendo as mudanças em Congonhas. Elas não sabem que os funcionários estão sofrendo pressão, ficando doentes, inclusive com transtornos psiquiátricos”, conta outro ex-funcionário do aeroporto ouvido pela reportagem que também pediu para não ser identificado. 

Em maio, alguns profissionais que questionavam as propostas da Aena foram demitidos, sem justa causa. “Basicamente, a Aena despediu as pessoas que pediam mudanças na proposta de acordo coletivo, melhores condições de trabalho, esse tipo de coisa”, conta um dos desligados.

O diretor do sindicato diz que há um clima de medo entre os funcionários em Congonhas. “Eles têm receio de se manifestar e de serem despedidos”, diz. Macedo afirma ainda que o sindicato vem orientando funcionários demitidos a entrarem na Justiça contra a Aena. As denúncias sobre assédio e perseguição também estão sendo investigadas pelos auditores do MTE. Questionada especificamente sobre esse assunto, a Aena não respondeu. 

 

Fonte: Repórter Brasil

 

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