terça-feira, 30 de julho de 2024

Ricardo Nêggo Tom: ‘A santa ceia de Dionísio, e um Jesus perdido entre os deuses do Olimpo da hipocrisia’

Já era de se esperar que os “cristãos” enxergassem algo diabólico ou um apocalipse para chamar de seu, na cerimônia de abertura dos jogos olímpicos de Paris. Afinal, muitos deles se escandalizam com qualquer coisa que não tenha, de fato, relevância ou que seja nocivo ao bem-estar social coletivo. É uma espécie de identitarismo reverso, onde eles não se identificam com qualquer coisa ou pessoa que não seja igual a eles. É uma fé meio narcísica, onde todos que não aparecem refletidos no espelho de sua devoção são do mal. Ninguém satiriza, demoniza ou ridiculariza mais a fé alheia do que os cristãos. Sobretudo, os evangélicos. As religiões de matriz africana que o digam. Ou quando o pastor faz uma marmota e começa a bater o pezinho no chão e gritar feito um desesperado mandando orixás e entidades africanas se renderem às suas ordens e comandos, ele está sendo respeitoso?

Os cristãos são haters profissionais do culto religioso alheio. Aliás, eles são haters do próprio culto, porque ninguém profana mais a fé cristã do que a própria Igreja e seus líderes. Sobretudo, a igreja evangélica, um berço de barbaridades proféticas, picaretagens ungidas em nome da prosperidade e outros absurdos que envergonham os ensinamentos de Cristo. É essa gente que se sentiu ofendida com uma encenação artística que reproduz uma obra chamada a “Festa dos Deuses”, do holandês Jan Van Bijlert, que mostra os deuses do Olimpo grego em confraternização, a qual eles associaram a Santa Ceia, último momento de Jesus Cristo com os seus discípulos. E se fosse a Santa Ceia, onde estaria a blasfêmia? Para esses ditos cristãos, o problema não é a referência ao momento considerado sagrado para o cristianismo, mas sim quem estaria interpretando esse momento. No caso da abertura dos jogos olímpicos, as “drag-queens” que, para os fundamentalistas, são seres diabólicos.

Fico imaginando o Deus que tudo fez, tudo criou e tudo formou, assistindo a parte de sua criação invalidando e demonizando a existência de outra, apenas por ser diferente dela. Um Deus que é onipotente, onipresente e onisciente, mas que teria “perdido o controle” da própria criação, ao permitir que pessoas diferentes viessem à existência. Diferentes de quem? De quem se julga o padrão de aceitação por parte de Deus a ser seguido. Um narcisismo espiritual que explica o porquê de a Igreja Católica ter inventado que Jesus é branco, loiro, tem os olhos azuis e é rei. Alguma dúvida de que poucos entregariam a alma para um Jesus preto, de cabelo “duro” e sem título de nobreza? Reflitamos aqui: e se Jesus voltasse como um homem preto, ou com o cabelo meio crespo, ou mais gordinho, ou meio baixinho, com algum traço que alguém pudesse considerar meio afeminado, com alguma característica física que os capacitistas entendessem como defeito, com um semblante que alguém pudesse julgar não muito acolhedor, ou com uma aparência que não convencesse aos padrões esperados? Como seriam as reações de seus “fiéis” seguidores?

Os questionamentos propostos no parágrafo anterior deveriam nos fazer entender porque a volta de Jesus pode ser considerada apenas uma retórica espiritual que nunca acontecerá fisicamente. Até porque, muitos que se dizem salvos em seu nome, poderiam ir para o tão temido inferno e perderem a salvação, por duvidarem da veracidade da figura que se apresentasse como o salvador da humanidade diante deles. Se muitos religiosos já o crucificaram anteriormente por não acreditarem que ele era Deus que se fez homem, porque todos os religiosos acreditariam agora se ele retornasse? Um dos questionamentos feitos à divindade de Jesus, era o de que ele era apenas um filho de uma camponesa e de um carpinteiro. Aliás, outro fator que pesava sobre Jesus ser aceito como Deus, é o fato de sua paternidade ser adotiva. Ou vocês acham que naquela época todos acreditaram que Maria concebeu através do espírito santo? Os conservadores de outrora tinham Jesus como um filho do pecado de uma mulher que havia conhecido um homem antes de se casar com ele. Como alguém nascido nessas condições poderia ser um rei, um deus para o povo daquela época? Num mundo onde cada um cria um Deus à sua imagem e semelhança, Jesus não seria tolo de voltar aqui para ser morto novamente. Me esperem sentados e de braços abertos, como eu morri, diz ele.

Fés à parte, o que devemos analisar toda vez que os representantes do cristianismo se manifestam em defesa da honra de Deus, como se ele precisasse de “advogados” tão mequetrefes, é o que (ou quem) estaria sendo colocado em oposição ao sagrado religioso. Se a Santa Ceia tivesse sido retratada através dos Super Amigos ou de personagens da Disney, a gritaria talvez não fosse a mesma. Mas em se tratando de população LGBT, a coisa muda de figura. Também gostaria de ver a reação se a cena fosse retratada por um Jesus e seus discípulos vestidos com a indumentária das religiões de matriz africana, ou pelos orixás do panteão africano, que são mais antigos do que os símbolos do cristianismo. Desrespeito? Eu chamaria de diversidade artística e inclusão cultural. Desrespeito é tentar anular a existência de pessoas e matá-las em “nome de Deus”, tendo o discurso de ódio e preconceito como arma letal. É curioso como pessoas que não respeitam a liberdade individual das outras, gostam de exigir respeito para com elas. Hipocrisia, não é? São esses que estão denunciando um suposto deboche com a fé cristã.

Deboche com a fé cristã é nos fazer crer que Jesus apoiava a escravização de seres humanos. Deboche com a fé cristã é usar o nome de Jesus para fingir milagres e curas, e enriquecer às custas de fiéis incautos e alienados. Deboche é vermos picaretas da fé se apresentando como escolhidos por Deus para guiar ovelhas cegas e carentes de conhecimento. Deboche é ver a Igreja e seus líderes, depois de tudo que já fizeram e apoiaram ao longo da história, se sentirem ofendidos em nome do Jesus cujo evangelho eles corromperam por interesses políticos e pessoais. Deboche com a fé cristã é ter pastor oferecendo ladrão de joias como messias salvador da nação. Deboche com a fé cristã é ter pastor na política legislando contra os direitos dos pobres para os quais Jesus prometeu o seu reino. Deboche com a fé cristã é ouvir cristãos falarem em defesa da vida, ao mesmo tempo em que apoiam Netanyahu e o genocídio que ele comanda contra o povo palestino. Deboche com a fé cristã é viver um cristianismo sem Cristo.

 

•        Paris ainda é uma festa? Por Miguel Paiva

Podemos não saber, porém, o que surpreende na festa de abertura dos jogos olímpicos de 2024 é, justamente, a festa. Será possível que um país, ou uma cidade pode votar e tentar eleger uma política de extrema direita tendo essa tendência tão forte à invenção, à variedade, à aceitação de gêneros, à criatividade moderna, à mistura de cores e pessoas como vimos na festa de abertura?

Parece, e é, contraditório. Só posso entender como um costume difundido e estimulado de não comparecimento às urnas. Um país com a riqueza cultural da França não deveria aceitar políticas tão anticulturais como as da direita. Uma tradição francesa de humanismo, existencialismo, filosofia e psicanálise não deveria conseguir conviver com projetos tão reacionários e próximos à barbárie como os projetos da extrema direita.

Não deveria ser um problema a questão migratória. O francês é hoje um povo totalmente miscigenado. Franceses são negros, brancos, muçulmanos e orientais naturalmente. Nasceram ou vivem na Franca e se sentem franceses apesar de preservar suas origens e dar valor a isso.

Foi o que vimos nos atores, dançarinos, cantores e atletas franceses.

A França é grande por conta disso também. A mistura de culturas, de hábitos, de comidas, de roupas e modismos deu à França uma característica moderna como se vê em poucos lugares. Como pode eleger uma gente tão contrária a isso tudo?

O povo francês e quem se ocupa dele deve se interessar novamente por política. Deve voltar às ruas, às reuniões comunitárias, aos livros e ao conhecimento. Essa tradição não pode se perder nas mãos de gente tão rude e primitiva. A cultura francesa corre em nossas veias e nas de todo mundo assim como corre o sangue variado de todas as pessoas que habitam o planeta. O povo não se mistura só onde o totalitarismo prevalece, onde os dogmas religiosos, sobretudo, acabam ditando o comportamento das pessoas.

A França é um dos países mais laicos que conheço. É importante que permaneça assim em defesa de um humanismo que distribui muito mais amor que as religiões. É assim que tem que permanecer para que se possa manter acesa a esperança no futuro, do mesmo jeito que a pira olímpica vai ficar lá acesa e iluminando as mentes que ainda desejam essa luz. É preciso manter esse espírito humanista vivo.

 

•        Olimpíada, desigualdade e hipocrisia. Por Wellington Mesquita

A cada quatro anos a abertura dos Jogos Olímpicos nos surpreende pelas apresentações arrojadas, shows de cores e muita emoção, mas sempre que assisto à cerimônia fico abismado com o grau de desigualdade presente também no mundo dos esportes. Outra característica que me chama a atenção é a dose cavalar de hipocrisia que cerca o evento. Durante um mês, um punhado de países, denominados potências olímpicas, abocanhará quase a totalidade das medalhas. Atletas fortes e bem preparados quebrarão recordes e exibirão suas habilidades a bilhões de telespectadores em todo o mundo. Ao sul global, por sua vez, é relegado o papel de coadjuvante da festa, com destaques quase sempre isolados. Basta ligar a TV nos próximos 30 dias para se cansar de ouvir os hinos dos países do G7, China e Austrália. 

Se não fossem os africanos e caribenhos, com performances extraordinárias no atletismo, a disparidade seria ainda maior. Considerada exceção, Cuba se esforça para manter sua força olímpica, mas perde o fôlego a cada edição. O mesmo podemos dizer de alguns países do leste europeu, que carregam ainda uma cultura esportiva herdada do período socialista, quando se investia pesado em todas as modalidades. Infelizmente, o Brasil ainda está longe de ser uma potência olímpica e se destaca graças, principalmente, à superação e ao talento de alguns atletas. O desempenho dos países nos Jogos Olímpicos é um reflexo claro da desigualdade global. Ganha quem investe, e investe quem tem dinheiro, com exceções, evidentemente.

A criativa abertura em Paris mostrou muita diversidade e bom gosto musical, como a arrebatadora apresentação de Celine Dion. Apesar disso, o Rio Sena, que corta a capital francesa, transbordou de hipocrisia. A começar pelo barco do time de atletas refugiados, um dos primeiros a cruzar o curso de água. Obviamente poucos espectadores se lembraram de outras embarcações, que todas as semanas tentam atravessar o Mediterrâneo e a rota Atlântica, com homens, mulheres e crianças, espremidos, lutando por sobrevivência. Muitos naufragam, como aconteceu nesta semana na costa da Mauritânia, deixando mais de cem pessoas desaparecidas. Todos buscavam refúgio na rica Europa, que provavelmente lhes negaria.  

A presença de artistas franceses originários de ex-colônias e departamentos, como Mali e Guadalupe, reforçou o caráter multicultural da capital francesa, numa disputa ideológica travada com as forças reacionárias que avançam na Europa. As magníficas apresentações não escondem, entretanto, a tensão e insatisfação dessas localidades para com a metrópole. Os moradores do pobre arquipélago de Mayotte, no Oceano Índico, que o digam. Desde o início do ano, a França tenta limitar o direito à cidadania a filhos de imigrantes nascidos no local. É apenas um exemplo da hipocrisia que rege o chamado ocidente. Para não falar de ex-colônias francesas na África que até hoje lutam para se libertar do jugo colonial, como o Mali, terra natal da cantora Aya Nakamura, uma das estrelas do espetáculo de abertura.

O barco israelense atravessou o rio parisiense com atletas alegres e radiantes, enquanto seus concidadãos despejavam bombas e bombas sobre Gaza. A presença da delegação de Israel - e a ausência da Rússia - é sem dúvida uma das maiores hipocrisias da história dos Jogos Olímpicos. Maior até que a dos EUA e seus aliados, que boicotaram os jogos de Moscou por conta da invasão soviética ao Afeganistão, anos depois de deixarem o Vietnã e de terem apoiado golpes militares em toda a América Latina. Os atletas israelenses não são culpados pelo genocídio promovido por Netanyahu, mas se a Rússia foi punida pelo comitê olímpico pela  guerra na Ucrânia, Israel também deveria ser.    

A organização caprichou na cerimônia, ressaltando a diversidade numa França cada vez mais refém da extrema-direita. Encolhido, não só pela chuva que caiu sobre a capital francesa, mas pelo isolamento político, o primeiro-ministro Emmanuel Macron parecia uma rainha da Inglaterra, cercado de pompa, mas sem prestígio político. Mais assustado, porém, ficou o rei da Espanha, Felipe VI, quando numa das janelas de um palácio apareceu a figura antiga monarca Maria Antonieta, decapitada. A representação da rainha austríaca, símbolo da opulência e do luxo, que gerou tanta indignação nos tempos da revolução, hoje não provoca mais a repulsa de outrora. Ao contrário, também ajuda a vender a imagem da capital francesa para o mundo, o que certamente renderá bilhões de euros em turismo à Cidade Luz.

 

Fonte: Brasil 247

 

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