quarta-feira, 31 de julho de 2024

Por que bairros ‘chavistas’ lideram protestos que questionam vitória de Maduro

“Moro em um bairro popular de Caricuao [distrito de Caracas] e fiquei surpreso ao ver que as pessoas batiam em panelas e frigideiras. Isso simplesmente não acontecia antes." Esse é o relato de um jovem desempregado em Caracas, na Venezuela, que preferiu não revelar seu nome. "Meu bairro sempre foi um setor fortemente chavista", acrescenta ele.

Nas últimas horas, a capital venezuelana se tornou o epicentro de intensos protestos que abalam o país sul-americano após o anúncio de resultados eleitorais altamente contestados. O bater de panelas surgiu espontaneamente e quebrou o silêncio que reinava na cidade, provavelmente como consequência de um resultado eleitoral inesperado. Ao longo da segunda-feira (29/7), os panelaços dispararam em diferentes áreas de Caracas. Mas poucos previram que esses barulhos seriam ouvidos com maior intensidade nos bairros populares da capital, muitos dos quais costumavam ser bastiões do movimento chavista.

De Catia a Petare — uma das regiões mais populosas da América Latina — passando por La Vega e El Cementerio, o barulho em algumas áreas era ensurdecedor.O protesto não parou por aí. Também de forma espontânea, as pessoas começaram a sair às ruas, algumas com as panelas nas mãos.

Enquanto os líderes da oposição permaneciam em silêncio, as ruas de Caracas esquentavam aos poucos. "Esta marcha é do bairro Petare, não há partido político aqui, não temos nenhum partido que nos dê alguma coisa", diz María Vázquez, uma dona de casa de 60 anos, à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC. "Saímos porque essa fraude deve ser interrompida. Este governo tem que sair", continua ela.

A emblemática Plaza Altamira, na zona leste da cidade, voltou a ser o ponto de encontro da oposição. Centenas de moradores das redondezas e pessoas de outros setores populares de Caracas e arredores — alguns viajaram das cidades satélites de Guarenas e Guatire para protestar — reuniram-se ali enquanto agitavam bandeiras e gritavam: "O povo unido nunca será derrotado" e "Este governo vai cair".

·        'Não queremos auxílios'

Jonathan diz que saiu de Maca de Petare para Altamira para "defender o voto".

Este homem de 39 anos, natural de Caracas, afirma que a motivação da "população do bairro" para sair e protestar tem a ver com o cansaço de ser maltratado. "Não queremos auxílios [de comida], nem nada do governo. Deixe-os tirar todos os nossos benefícios se quiserem. Aqui as pessoas estão com raiva. Eles queriam os bairros nas ruas? Bem, estamos todos aqui fora", diz ele.

Os protestos não se limitaram a Altamira. Nos bairros Catia, na zona oeste da cidade, José Félix Ribas de Petare (na zona leste) e El Valle (na zona sul), manifestantes derrubaram faixas de propaganda eleitoral do presidente, enquanto outros grupos ocupavam as ruas do centro da capital em locais próximos da Assembleia Nacional e do Palácio Miraflores, sede do governo. Muitos diziam que pretendiam chegar lá para "tirar" Maduro.

Num vídeo que circulou nas redes sociais, verificado pela BBC News Mundo, um grupo de pessoas derrubou uma estátua do ex-presidente Hugo Chávez na cidade de Coro, capital do estado de Falcón, no noroeste da Venezuela.

·        'Eles estão descendo das colinas novamente'

Alejandro Velasco, historiador da Universidade de Nova York, nos EUA, e autor do livro Barrio Rising: Urban Popular Politics and the Making of Modern Venezuela ("A Ascensão do Bairro: Política Popular Urbana e a Construção da Venezuela Moderna", em tradução livre), afirma que o que está acontecendo agora na Venezuela não ocorria há décadas. No entanto, ele levanta a hipótese de que uma eventual mudança de governo do país sul-americano não acontecerá de forma instantânea, mas, sim, gradual. "O Caracaço [saída da população às ruas na Venezuela, em grandes proporções, em 1989], quando os bairros se manifestaram, foi o que deu o golpe final no Puntofijismo [sistema bipartidário que governava o país]. O golpe final formal só veio em 1998, quando Chávez foi eleito, mas [o sistema] já estava mortalmente ferido no Caracaço", afirmou Velasco em entrevista à BBC Mundo em 2017.

Agora, o pesquisador acredita que a cidade é abalada pela força popular que vem das colinas. "Os bairros chegaram hoje a Caracas, não há dúvidas disso", disse ele à BBC Mundo. Velasco afirma que o grande desafio dos líderes da oposição na Venezuela sempre foi unir os setores populares com a oposição mais tradicional. Segundo ele, sempre foi difícil para as pessoas dos bairros identificarem-se com estes políticos. "Acho que agora finalmente vemos aquele momento de unidade e reencontro", avalia ele.

·        'O bairro não vai se intimidar'

Para Velasco, um dos fatores que impulsionaram essa união foi a grande expectativa criada pela possibilidade de o país tomar um rumo diferente, liderado por um novo governo. Outro fator importante foi a crise. "Embora a economia tenha melhorado um pouco em relação aos anos anteriores, essa melhoria não atingiu os setores populares. Se você não tiver um familiar que mora no exterior e consiga enviar remessas ou se você não tiver acesso ao pouco que resta do Estado de bem-estar social, a única coisa que se pode fazer é viver de empréstimos e favores", explica o pesquisador. "Isso afeta muito os setores mais pobres. O chavismo contava com a recuperação econômica para salvá-los, mas a realidade é que isso não é percebido nem no interior do país, nem nos bairros pobres." Velasco acredita que as dificuldades aumentaram ainda mais para o governo agora que os bairros aderiram ao movimento de oposição: "As pessoas dos bairros não se intimidam tão facilmente."

·        'Eles tiraram nossa dignidade'

Outro jovem de Petare, em Altamira, garantiu que os moradores dos bairros não têm absolutamente nada a perder. "Eles tiraram nossa dignidade. Não tenho [dinheiro] para comprar comida para minha filha. Olhe meus sapatos, estão furados e não tenho como comprar novos."

O Conselho Nacional Eleitoral (CNE) declarou Maduro vencedor no domingo com 51,2% dos votos, ante 44,2% do candidato da oposição, Edmundo González Urrutia, após 80% das atas eleitorais computadas. No entanto, González rejeitou o resultado junto com a líder da oposição, María Corina Machado, que foi eleita pré-candidata nas primárias, mas foi desqualificada para concorrer no pleito realizado no domingo (28/7). "Há um novo presidente eleito e é Edmundo González. Todos sabem disso", disse Machado no domingo à noite, depois de argumentar que a sua contagem refletia 70% dos votos para González e 30% para Maduro.

·        Expressões espontâneas

Líderes da oposição dirigiram-se ao povo venezuelano depois das 18h de segunda-feira, no horário local. Eles disseram ter provas de mais de 73% das atas que dariam a vitória a González Urrutia. Machado também falou sobre os protestos que acontecem em todo o país."São expressões espontâneas de setores populares. Expressões legítimas. Quero convidar você a nos conhecer. Amanhã vamos nos reunir em assembleias populares por todo o país", apelou ela. Machado acrescentou que o governo "quer gerar violência" e apelou aos apoiadores para que permaneçam "de forma ordeira e civilizada, mas muito firmes".

O governo de Nicolás Maduro respondeu aos protestos com repressão. Ao cair da noite, várias partes da cidade cheiravam a gás lacrimogêneo. Tiros podiam ser ouvidos em diversas áreas. A maioria dos manifestantes se dispersou e voltou para casa. Mas outros permaneceram em resposta às autoridades. Alguns montaram barricadas em vários setores e se defenderam com o que puderam, geralmente com pedras e paus. "É uma situação difícil, porque não temos armas como eles", disse um manifestante.

Katiusca Justo, outra jovem de 31 anos de Petareña, foi afetada pelo gás, “Saímos em paz e o que eles fizeram foi nos reprimir, mas eu não esperava menos. Eu sabia que provavelmente haveria repressão e pelo menos gás lacrimogêneo." Embora tenha decidido descansar, planeja retornar "amanhã e quantos dias forem necessários até a queda deste governo". "Estou cansada desta ditadura. Passei seis anos fora do meu país para ajudar minha família. Mas voltei de Bogotá e agora quero uma vida melhor aqui na Venezuela", acrescenta ela.

Após o lançamento de diversas bombas de gás lacrimogêneo em Altamira, o protesto se dispersou, mas logo as panelas e frigideiras voltaram a soar nas varandas dos prédios da região. Enquanto a calma voltava a reinar em Altamira, em outras áreas de Caracas o conflito persistia, com objetos queimados em alguns setores e forças policiais preparadas para extinguir os protestos restantes.

 

¨      3 cenários possíveis na Venezuela após vitória de Maduro contestada pela oposição

A espera de milhões de venezuelanos por um resultado declarado pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE) terminou pouco depois da meia-noite de segunda-feira (29), no horário local, na Venezuela. O presidente da autoridade eleitoral venezuelana, Elvis Amoroso, declarou o presidente Nicolás Maduro o vencedor da disputa com 5.150.092 de votos, ou 51,20% do total, à frente do adversário Edmundo González Urrutia, com 4.445.978 de votos, ou 44,2%, com 80% das mesas de votação apuradas. Amoroso afirmou que o resultado era irreversível. Contra todas as probabilidades e a maioria das pesquisas de opinião, Maduro garantiu um terceiro mandato, que pode torná-lo a pessoa há mais tempo no cargo de presidente da Venezuela na história moderna do país.

Na cerimônia em que foi oficialmente proclamado como presidente eleito, Maduro acusou os opositores e a "extrema direita" no exterior de tentarem desestabilizar o país. "Não é a primeira vez que enfrentamos o que enfrentamos hoje. Está sendo feita uma tentativa de impor um golpe de Estado na Venezuela, novamente. De natureza fascista e contrarrevolucionária", disse Maduro, apontando que estariam em curso os "primeiros passos" para desestabilizar o país. "Os mesmos países que hoje questionam o processo eleitoral venezuelano, a mesma extrema direita fascista... foram os que quiseram tentar impor ao povo da Venezuela, acima da Constituição, um presidente espúrio, usando as instituições do país", disse ele, em alusão à autoproclamação como presidente interino do deputado Juan Guaidó, em 2019. "Uma espécie de Guaidó 2.0", continuou Maduro.

O chavismo, corrente política liderada hoje por parte Maduro, sempre pareceu convencido da vitória. Jorge Rodriguez, diretor de campanha de Maduro, sugeriu algumas horas antes do anúncio dos resultados que a soma dos votos seria favorável ao chavismo. "A violência falhou, o ódio falhou. O amor ganhou, a independência ganhou, a soberania da Venezuela ganhou e a paz ganhou", afirmou Rodriguez.

O filho de Maduro, Nicolás Maduro Guerra, também sugeriu uma vitória do pai antes dos resultados oficiais. "As pesquisas expressam o que a rua já disse durante todos esses meses de campanha. Vitória do povo venezuelano, feliz aniversário, comandante Chávez!", disse ele na rede social X, referindo-se à data de nascimento do fundador do chavismo (28/7). Maduro também já havia dito em fevereiro que iria vencer "por bem ou por mal".

No entanto, com uma oposição convencida de que ganhou as eleições e apoiada pelas pesquisas de opinião, a situação política no país está se distanciando ainda mais da estabilidade. "É um anúncio que gera grande frustração na oposição, já que chegaram às eleições com grande entusiasmo", diz o cientista político Eduardo Valero, professor de estudos políticos da Universidade Central da Venezuela, à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.

Política de oposição impedida pelo CNE de concorrer à presidência, María Corina Machado afirmou na noite de segunda-feira, ao lado do candidato Edmundo González Urrutia, ter em mãos dados suficientes para comprovar a vitória dele sobre Maduro. Segundo Machado, González Urrutia teria recebido 6,27 milhões de votos, enquanto Maduro teria tido 2,75 milhões. De acordo com ela, a oposição teria em seu poder 73,2% das atas de votação (algo como o boletim de urna no Brasil). “Com as atas que nos faltam, mesmo que o CNE tenha dado 100% dos votos a Maduro, não alcançaria o que já temos. A diferença foi tão grande, tão grande, avassaladora, em todos os Estados da Venezuela, em todos os estratos, em todos os setores… Ganhamos", disse Machado. Ela convocou apoiadores da oposição a manifestarem pacificamente na manhã desta terça (30).

A BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) analisa três cenários possíveis na Venezuela após o anúncio da vitória de Nicolás Maduro.

  • 1. Protestos

Poucos minutos depois do anúncio dos resultados, começaram fortes batidas de panelas e frigideiras em vários setores do leste da capital, Caracas, em protesto. "Fraude!" foi uma das coisas que alguns moradores do bairro de Altamira gritaram.

Para muitos opositores, as eleições não terminaram com o anúncio da CNE.

Na noite de segunda, milhares de pessoas se dirigiram ao centro de Caracas para protestar — algumas caminhando por quilômetros ao sair de favelas nas montanhas que cercam a cidade. Em repressão aos protestos, forças de segurança dispararam gás lacrimogêneo e balas de borracha. Muitos analistas políticos antecipam um período de protestos no país por conta do resultado anunciado pelo CNE.

O cientista político Eduardo Valero prevê que isso desencadeará um descontentamento popular e repressão por parte das autoridades. "A questão é saber se o governo está disposto a assumir os custos de mais repressão. Irá assumir o custo de prender aqueles que decidirem não respeitar os resultados?", questiona Valero. No entanto, ele acredita que os protestos dependerão da força da reação da oposição a este anúncio e se ela pedirá às pessoas que saiam em massa às ruas.

  • 2. Não reconhecimento internacional e mais sanções

Vários líderes mundiais têm pedido que Maduro respeite os resultados eleitorais, algo que muitos interpretaram como medo de uma possível manipulação.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), embora não tenha se pronunciado após os resultados anunciados, disse em entrevista coletiva na semana passada que Maduro precisava “aprender que, quando você vence, você fica, quando você perde, você sai". “Fiquei assustado com os comentários de Maduro de que a Venezuela poderia enfrentar um banho de sangue se perder”, acrescentou Lula, referindo-se a declarações anteriores feitas pelo presidente venezuelano.

Por sua vez, o governo de Gabriel Boric, presidente do Chile, instou as instituições venezuelanas, em um comunicado publicado pouco antes do anúncio da CNE, a respeitarem a "vontade soberana do povo de decidir o seu destino". Quando a CNE divulgou os resultados que declararam Maduro como vencedor, Boric disse que não acreditava neles. “O regime de Maduro deve compreender que os resultados que publica são difíceis de acreditar. A comunidade internacional e especialmente o povo venezuelano, incluindo os milhões de venezuelanos no exílio, exigem total transparência das atas e do processo, e que observadores internacionais não comprometidos com o governo prestem contas pela veracidade dos resultados. O Chile não reconhecerá nenhum resultado que não seja verificável", escreveu na rede social X.

Valero afirma que o chavismo se beneficiou do fato de a economia do país ter mantido um crescimento próximo a 5% do Produto Interno Bruto nos últimos dois anos, mas o futuro do crescimento sustentado dependerá do reconhecimento ou não de Maduro no cenário internacional. "Num contexto latino-americano, é muito provável que a maioria dos líderes latino-americanos se unam contra Maduro, tendo como interlocutores Lula e (o presidente da Colômbia, Gustavo) Petro, que parecem ter capacidade de comunicação com Maduro", afirma Valero.

Funcionários do governo do EUA indicaram que sua política de sanções à Venezuela dependeria do desenvolvimento das eleições, salientando que Washington poderia aliviá-las se a eleição fosse limpa. Depois de a CNE ter anunciado a vitória de Maduro, o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, expressou "sérias preocupações" de que "os resultados anunciados não reflitam a vontade ou os votos do povo venezuelano." "A comunidade internacional está observando isso de perto e responderá de acordo", disse Blinken.

  • 3. Aumento da migração

Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), 7,7 milhões de venezuelanos deixaram o país em busca de uma vida melhor. A grande maioria saiu nos últimos anos devido a uma grande crise econômica que deixou milhões de pessoas na pobreza. O número de emigrantes diminuiu nos últimos meses, e alguns dos que partiram chegaram a voltar ao país. Agora há receios de que o anúncio da CNE possa intensificar mais uma vez esta onda migratória.

Uma pesquisa realizada pela Meganalisis e publicada em abril indica que pelo menos 44,6% da população venezuelana consideraria emigrar se Maduro ganhasse um terceiro mandato presidencial. Outra pesquisa recente da ORC Consultores revelou que mais de 18% dos entrevistados planejariam migrar do país antes do final do ano após uma vitória de Maduro. O cientista político Valero diz acreditar que o êxodo não será muito maior porque hoje o mundo está mais instável do que há uma década e, com várias nações em guerra, há "uma maior consciência de que a vida no exterior não é tão fácil".

 

Fonte: BBC News Mundo

 

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