quarta-feira, 31 de julho de 2024

A contra-hegemonia e o papel dos “arcaicos”

Volto ao tema da última postagem, mas agora procurando mostrar o que já está sendo criado e recriado por alguns grandes conjuntos de classes sociais exploradas, particularmente em áreas  das matas, campos e águas: povos indígenas e quilombolas, ribeirinhos, camponeses baseados na agricultura familiar. São importantes pela sua identidade, potente cultura e história de resistências diante de ameaças a seu modo de vida, afirmando seus direitos de cidadania. Eles não são o passado, mas pelo contrário, são resistências que podem apontar outro futuro. Pelo impacto político de suas iniciativas, podem ser consideradas como experimentos contra-hegemônicos e com capacidade de inspirar outras iniciativas, em diferentes situações territoriais de viver em nosso país. Pela sua composição e ativismo são uma potente denúncia e força social no enfrentamento do capitalismo dominante e suas mazelas.

As múltiplas alternativas territoriais existentes em áreas rurais são manchas e nódulos de vida e resistência muito diversos. São cercados e ameaçados pelo agronegócio expansionista, colonizador, usurpador de terras, com desmatamento e queimadas, sementes transgênicas, agrotóxicos, poluidor de rios e aquíferos, e muitas vezes com trabalho escravo. Mas também são comunidades inteiras ameaçadas por grandes empreendimentos extrativistas (minas, garimpo ilegal, grandes hidroelétricas, fazendas de energia solar…).

Em sua ousadia de resistir e construir, afirmando e lutando por direitos, esses núcleos alternativos enfrentam um duplo desafio.  De um lado, existe uma questão estrutural de fundo, que, com seu enorme poder econômico e político, está levando a um desastre anunciado: o paradigma de desenvolvimento capitalista globalizado e financeirizado, com a destruição da natureza e exclusão social, e novas formas de extração e acumulação de valor em nome do “livre mercado”, com políticas e normas que nos estão levando a depender de uma reprimarização econômica ameaçadora, com um frontal ataque destrutivo dos territórios em que levam a sua vida. A integridade do imenso território do Brasil, o bem comum da vida, já está comprometida (tendo ultrapassado vários dos limites planetários para a reprodução da sua integridade). A mudança climática já se tornou um novo normal entre nós, que se soma a uma herança maldita de colonização, escravidão e patriarcalismo.

De outro lado, temos uma questão política não menor para nos insurgirmos contra isto tudo. A democracia que vibrantemente conquistamos, contra a ditadura militar, nasceu encurralada, sem capacidade de avanços transformadores. Pior, nos últimos dez anos, como ameaça politicamente devastadora, surgiu e ganhou espaço na sociedade e no comando do Estado uma direita de perfil extremamente autoritário e excludente, para poucos, que propõe um desenvolvimento capitalista ainda mais destruidor. Já experimentamos praticamente como opera tal direita a partir do poder estatal e como ela disputa a hegemonia no chão da sociedade. Além disto, ela está se articulando com direitas autoritárias crescendo  na região à nossa volta e mundo a fora.

O contexto político é, indiscutivelmente, adverso para alternativas mais ousadas. No entanto, como esperança, sempre é bom ter presente que as lutas políticas nunca são ganhas ou perdidas antes de serem disputadas. O que precisamos, sim, é nos fortalecer para disputar hegemonia no aqui e agora, com perspectiva de longo prazo. Por isto,  a tarefa que devemos priorizar é trocar e nos inspirar uns e umas aos outros e outras, aprendendo com as “trincheiras e resistências” cidadãs já existentes e demonstrando potência.  Precisamos ter claro que tais lutas não são, necessariamente, replicáveis para outros territórios e situações, mas sim faróis a iluminar caminhos e possibilidades de ação transformadora.

Num país “baleia” como o Brasil, na construção e disputa de hegemonia é incontornável a construção de coalizões cidadãs para ganhar força e intensidade diante da direita com suas coalizões e formas de expressão política, visíveis e até invisíveis, espalhadas pelo país. O fato inegável é que a direita vem conquistando espaço nas ruas, que se soma ao que ela já controla no campo da comunicação e na própria institucionalidade estatal. E temos uma eleição estratégica ainda este ano para definir a base do poder político nos 5.570 municípios brasileiros. Isto, politicamente, não é amanhã, pois é urgência política que exige ação imediata.

Um caso exemplar e com grande protagonismo cidadão transformador é a proposta elaborada pela ASA – Articulação do Semiárido. A ASA tem uma concepção, uma proposta prática e uma experiência acumulada sobre o que fazer. Além disto, praticou um ativismo exemplar na questão de garantir o acesso à água no sertão nordestino, algo transformador pela participação direta das famílias camponesas pobres, as mais afetadas pelas secas periódicas. Vale a pena lembrar que o bioma brasileiro do Semiárido é o maior do mundo. Nele acontecem sazonalmente secas, todo ano. Mas com uma periodicidade variável, algo como de década em década, a seca pode se estender por um ou mais anos, de forma ininterrupta.  

Como coalizão de múltiplas expressões, a ASA é composta por mais de 3.000 organizações de cidadania ativa da região, espalhados pelos dez estados nordestinos. Como prática, tem foco nas famílias camponesas nordestinas que sofrem periodicamente com a seca. Mas ASA não trata a questão da seca como fatalidade, pelo contrário, busca formas que potencializem a vida e o bem viver em tal território e seu sistema climático, fortalecendo a agricultura familiar camponesa. Já são disponíveis muitos estudos publicados e um banco de dados de grande qualidade sobre esta experiência exemplar de protagonismo cidadão no enfrentamento dos desafios que a seca representa para o contingente de famílias camponesas, em extremamente pobres, o maior contingente rural brasileiro. [1]

A questão central a destacar é a proposta ecossocial transformadora que a ASA criou, desenvolveu praticamente, ampliou e aperfeiçoou ao longo do tempo. O que a ASA acumulou vale para o Semiárido. Mas os princípios e as concepções que a ASA formulou são de ordem de mudança de paradigma no modo de ser, produzir, se organizar e viver dentro dos limites e possibilidades ecológicas dos territórios e sua dinâmica natural. Além disto, é eficaz na luta contra a expansão do excludente e destruidor agronegócio, voltado para fora.  Considero que o processo cidadão concebido e desenvolvido pela ASA, tendo como pilar a questão central da água como um bem comum de todas e todos, é um patrimônio coletivo com potencial para inspirar e realizar transformações, para além do Nordeste rural. É emancipador e democrático, além de ecologicamente adequado, pois, ao mesmo tempo que potencializa o modo camponês de produzir e viver diante de “severas adversidades climáticas”, busca garantir direitos ecossociais iguais na diversidade de situações naturais e políticas, especialmente aos grupos populacionais condenados a viver nas periferias de nosso país.

Como concepção, a definição central da ASA é a convivência com a seca, simples assim. Mas carrega uma mensagem potente de luta e construção de alternativa transformadora do desenvolvimento capitalista dominante que, há mais de um século, combate a seca com grandes obras de engenharia. A política de promoção de uma engenharia para o enfrentamento da seca levou à criação do DNOCS, à CODEVASF e à própria Sudene, como estratégias do Governo Federal do Brasil e apoio das classes dominantes nordestinas. Foram feitos muitos açudes, nas grandes propriedades e especialmente para elas, assim como as hidrelétricas, com perímetros irrigados no entorno, para gerar eletricidade e junto promover o agronegócio especializado, com irrigação  e todo o pacote químico na produção agrícola para o mercado, nacional e mundial. Para a maioria da população, especialmente as famílias camponesas e seus povoados, sobrou a tarefa diária – especialmente para mulheres e meninas – de buscar água nos açudes, quase sempre distantes. Nas grandes secas, estas famílias foram condenadas a esperar o incerto carro pipa da prefeitura para ter acesso à vital água. Ou, então, migrar para outras regiões, especialmente o Sudeste como polo do capitalismo brasileiro. Muitos se engajavam em trabalhos temporários sem carteira, em outras regiões, especialmente jovens e pais de famílias (os “boias-frias”).

Vale a pena lembrar aqui a gigante obra de engenharia no Nordeste da “Transposição do São Francisco”, pelo Governo Lula I, depois de uma secular discussão nos meios dominantes do capitalismo brasileiro. O fato é que a transposição é a continuidade de uma política desenvolvimentista de combate à seca e não de convivência com ela. Não vale a pena a gente discutir isto como emblema de algo que nasceu sem perspectiva transformadora, mas antes de continuidade exacerbada do mesmo.  É lamentável ter que lembrar algo assim diante dos enormes desafios democráticos transformadores que temos, criando maior resiliência, diante da mudança climática que vem se intensificando e destruindo vastos territórios e ameaçando modos de viver em diferentes biomas brasileiros, de formas também diferentes, como este ano, em particular, testemunha.

Voltando à proposta de convivência com a dinâmica ecológica territorial, central na concepção e metodologia prática da ASA para o bioma do Semiárido brasileiro, importa ressaltar o que tal proposta implica em termos práticos e de metodologia emancipadora, inspirada nas propostas de educação popular de Paulo Freire, um nordestino de expressão mundial. Limito-me a destacar alguns elementos centrais. Em termos práticos, trata-se de uma proposta que envolve a construção de cisternas que coletam água da chuva para consumo humano de cada família camponesa, moradora de determinado povoado/comunidade rural, começando por aquelas mais vulneráveis – algo decidido coletivamente – até garantir cisternas para todas as famílias. Aí se passa a outro povoado, até atingir todos os povoados típicos de um município rural nordestino. A construção da cisterna, barata e durável, é na base de mutirão da comunidade, com apoio de pedreiro que orienta praticamente. Os recursos para compra de materiais são buscados pela própria ASA, junto às fundações e às agências de cooperação internacional. Mas passou a receber apoio público em forma de parceria, desde o final do governo FHC, que se intensificou de forma expressiva com o Governo Lula I e II. Há dois tipos de cisternas: uma primeira se destina ao consumo humano, com coleta de água dos telhados da própria casa. A outro, é para animais e produção de alimentos, geralmente cisterna em baixios do terreno em que vive a família camponesa. A produção de alimentos assenta nos princípios da agroecologia e produtos locais, com foco na comida boa, levando à criação de “bancos comunitários de sementes” de produtos alimentares do bioma, com troca de saberes do como produzir. Tudo em busca de soberania e segurança alimentar, com troca de excedentes, no interior da própria comunidade camponesa. No final, todas as famílias atendidas com cisterna, celebra-se uma verdadeira emancipação cidadã naquelas condições de domínio secular dos donos de gado e gente.

De forma sintética, defino a concepção e a metodologia assentada no princípio da convivência, como base, que leve a dois outros princípios fundamentais numa perspectiva democrática ecossocial transformadora: princípios do cuidado e do compartilhamento, com a natureza e entre todos os moradores, como é praticado pela aplicação da metodologia da ASA como condição para conviver com a seca de forma emancipadora.

Mas por que convivência com o clima e a natureza é apontada aqui como um dos pilares na  construção de contra-hegemonia? Antes de tudo para como contraponto à proposta de “abrir a porteira e largar a boiada” do ministro de meio ambiente do governo autoritário de 2019-22. A extrema direita autoritária não esconde o que quer: liberar a colonização de terras protegidas em favor do desenvolvimento predador, sem reservas permanentes, sem demarcação de novos territórios Indígenas e quilombolas, sem limitação ao extrativismo de madeiro e do garimpo ou minas. O fato é que, mesmo o nosso país dispor de uma legislação de regulação ecossocial democrática, a devastação dos diferentes territórios continua. Em consequência, os eventos climáticos extremos se multiplicam e intensificam na mesma rapidez no país como um todo.

O enfrentamento da mudança climática é um desafio planetário. No Brasil, praticamente em todas as regiões temos sinais de mudanças. Limito-me a três situações de eventos climáticos atuais, extremos e emblemáticos, em diferentes biomas, no Brasil que nos desafiam coletivamente, portanto são uma tarefa coletiva para cidadanias e para os governos que elegemos.  Por exemplo, o Rio Grande do Sul foi devastado com chuvas extraordinárias, que podem se repetir mais de uma vez por ano e cada vez de forma mais intensa, pois além da mudança climática existe o território agredido e depredado, a forma de ocupação e a forma de construção de cidades sem mata protetora, nas margens de rios e lagos, com ocupação irregular, expansão do negócio imobiliário sem limites, desmatamentos em encostas e de matas ciliares nas margens dos rios, construção de barragens no leito dos rios para água de irrigação, etc.

A questão que precisamos enfrentar é: trata-se somente de restaurar o destruído (estradas, pontes, cidades, escolas, hospitais, casas de moradores…), priorizando obras de engenharia, boas para as grandes empresas empreiteiras de engenharia? Não estou afirmando que todas as obras de engenharia são ruins em si, pelo contrário. Precisamos, porém, de um diagnóstico preliminar e fundado sobre a integridade ecossocial territorial específica da cada lugar que foi comprometido em sua dinâmica, bem antes das atuais chuvas intensas. É hora de reconhecer que precisamos mudar. É o caso de pensar a partir de um paradigma de convivência, que dada a especificidade,  é de convivência com muita água, com as chuvas e os temporais intensos, com ventos fortes e o sistema natural de drenagem pelos rios existentes, suas margens e suas áreas úmidas, que canalizam as águas de grande parte do Norte e Centro do RS para o Guaíba e a Lagoa dos Patos. De todo modo, trata-se de um desafio para cidadanias ativas pautadas por agenda ecossocial democrática. Mas algo essencial é priorizar concepções, princípios e valores, com imaginários que mobilizam, para se confrontar e superar as propostas desenvolvimentistas de sempre. Não dá para esperar soluções virtuosas do Estado, sem pressão de cidadanias. O financiamento é necessário, mas não qualquer financiamento em grande escala, para as empresas loucas por recursos públicos abundantes.

Temos outro exemplo no Pantanal, que vem sofrendo incêndios destruidores da fauna e da flora, cada vez mais intensos nos últimos anos. Trata-se de um bioma muito especial e frágil, cheio de vida, água e beleza natural. Mas está sendo atingido por descontrolados incêndios. A causa maior é a expansão do agronegócio, com desmatamento das nascentes e margens de rios que formam a bacia do Rio Paraguai. Assim, falta o elemento fundamental para o funcionamento da integridade ecológica do Pantanal: a inundação periódica pelas águas do território, compartido com países vizinhos, mas que no período seco conserva naturalmente ainda muita água em pequenas lagoas e pequenos córregos. Com recuperar a convivência com tal dinâmica ecológica vital, tanto para humanos como para a maravilhosamente linda e rica biodiversidade, hoje violentamente agredida pelo fogo. Neste ano, foram queimados em torno de 700 mil hectares do Pantanal, na parte brasileira. Ações de emergência de combate ao fogo sempre serão necessárias. O curioso do caso é que na pecuária tradicional da região se praticava o fogo controlado das pastagens na estação mais seca, para regenerá-las. Mas vem ocorrendo um processo de formação de ainda maiores fazendas para a pecuária. Junto, cresceram em tamanho os incêndios, tornando-se de difícil manejo ou, até, custoso demais para quem busca lucro na criação de gato de forma extensiva.

Trago ainda um exemplo mais de agressão descontrolada or desmatamentos nas últimas décadas, que estão afetando particularmente a Amazônia das maiores florestas e rios do Brasil. São dois tipos de eventos extremos sazonais: secas mais intensas numa época e enchentes maiores na estação chuvosa. Aqui se trata de um complexo bioma que combina rios, lagos e extensas matas nativas. Os Povos Originários são seus guardiões, dada a forma de vida baseada na convivência com a fantástica biodiversidade e preservação de sua integridade, somada ao cuidado e ao compartilhamento com todas e todos da comunidade, que praticam. Além disto, eles detêm um saber único de como no lidar com os rios e lagos, reservatórios de peixes – alimento indispensável – e “estradas aquíferas” fundamentais para se deslocar e comunicar, entre outras utilidades. Um elemento fundamental da Amazônia é que ela produz os “rios voadores”, pela evaporação, especialmente das florestas (maior até do que a evasão de água do Rio Amazonas no mar, segundo cientistas), que regulam diretamente a maior parte das chuvas no Cerrado, Pantanal e Centro-Sul do Brasil, além de o regime de chuvas  em outros países, como a Bolívia, o Paraguai e o Norte da Argentina. Os desmatamentos descontrolados – garimpo ilegal destruidor, enormes obras de engenharia para construção de hidrelétricas, agronegócio em expansão, extração de minérios em grande escala, exploração petrolífera, obras de infraestrutura,  tudo junto – contribuem para desregular o modo de operar do  grande sistema ecológico fundamental para o Brasil e América do Sul. Não vê quem não quer. Volto à necessidade trazer a convivência como base, como modo de vida e prioridade estratégica. Muitos produtos podem ser gerados pela região sem agredi-la. Não ao desenvolvimento capitalista e seus projetos de costas para a Amazônia e os seus habitantes. No caso da Amazônia, os Povos Tradicionais, especialmente os Indígenas, tem muito a nos ensinar como conviver, antes que seja tarde.

Enfim, são indicações de possibilidades concretas e transformadoras para começar a implantar mudanças para os referidos territórios e populações locais. São, ao mesmo tempo, bases fundamentais na construção de contra-hegemonia – uma disputa que supõe adesão majoritária na sociedade – para construir um Brasil democrático de direitos ecossociais iguais para todos. Nesta empreitada, precisamos contar com a adesão política cidadã, o coração e os imaginários coletivos na sociedade civil, urbana e rural, para aspirar a um país com base a um modo “saboroso de viver”. A disputa de hegemonia com o “mercado” e seus “donos” e a direita autoritária exige uma perspectiva democrática ecossocial poderosa e transformadora.   

 

Fonte: Por Cândido Grzybowsk, em Outras Palavras

 

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