quarta-feira, 24 de julho de 2024

Luís Felipe Miguel: A desistência de Joe Biden

Demorou, mas Joe Biden curvou-se aos fatos e retirou sua candidatura. Está em campanha para que sua vice, Kamala Harris, assuma seu lugar na chapa presidencial.

O apoio de Joe Biden – mas ainda não de pesos-pesados do Partido Democrata, como Barack Obama e Nancy Pelosi – e de muitos doadores milionários torna Kamala Harris franca favorita para a indicação, mas não são favas contadas.

O que causa espanto é ver uma parte da esquerda brasileira embarcando precocemente num triunfalismo pró-Harris.

Talíria Petrone, por exemplo, publicou no Twitter: “Um passo a frente! Derrotar Donald Trump é uma missão mundial e a escolha de Kamala Harris é acertada. Não devemos titubear em eleger a primeira mulher presidente dos EUA”.

A imagem de Kamala Harris, uma mulher com ascendência indiana e africana, agrada aos progressistas. Sua atuação como vice-presidente, no entanto, foi apagada. E, quando apareceu, frustrou quem imaginava que ela teria posições mais avançadas em temas como imigração, encarceramento, racismo das polícias ou política de drogas.

Sem falar, é claro, na política externa.

Donald Trump é um fanfarrão golpista sem qualquer das qualidades intelectuais ou morais que permitiriam exercer uma função de poder. Desde que demonstrou ambições políticas, não fez nada além de degradar o debate público e debilitar as instituições da democracia liberal. Um tipo, em suma, bem conhecido de nós, brasileiros.

A despeito das diferenças, porém, Donald Trump tem muito em comum com Kamala Harris, assim como tinha com Joe Biden. Como o apoio incondicional a Israel e ao genocídio que ocorre hoje na Faixa de Gaza.

Joe Biden patrocinou as ações de Benjamin Netanyahu desde o começo, armou e financiou Israel, vetou ações de organizações internacionais, colaborou na campanha de difamação e corte de financiamento da agência da ONU que dá assistência aos refugiados palestinos. Kamala Harris secundou todas essas ações. Não chega ao ponto de classificar a si mesma como “sionista”, como faz Joe Biden, mas não fica longe.

Diante disso, Donald Trump não tinha resposta melhor do que “xingar” seu então adversário de “palestino” e prometer ainda mais apoio ao genocídio.

Joe Biden e Donald Trump, candidatos, mostraram ser racistas, despreocupados com os direitos humanos mais elementares, desprovidos de sentimento de humanidade.

O problema não está só, nem sobretudo neles. É o sistema político estadunidense, movido, como se sabe, pela força do dinheiro.

Só o AIPAC, o lobby sionista oficial, está despejando 100 milhões de dólares em campanhas de democratas e republicanos, com o objetivo de sufocar o debate sobre a Palestina. Muitos grandes doadores privados, vinculados ao sionismo, agem na mesma linha.

O AIPAC, aliás, que financiou a carreira política de Kamala Harris com mais de cinco milhões de dólares. E recebeu, em troca, apoio veemente à máquina de guerra israelense.

Por isso, no establishment político estadunidense, bem como na mídia, a tragédia do povo palestino ecoa tão pouco. Mesmo que apenas uma minoria da opinião pública seja favorável ao apoio militar a Israel, a prioridade é não desagradar os grandes financiadores de campanha.

O Partido Democrata tem a chance de escolher um candidato que se oponha ao genocídio. Mas é improvável que o faça.

A se confirmar este cenário, para o eleitor, a escolha em 5 de novembro promete ser dramática. Optando por Kamala Harris ou optando por Donald Trump, estará validando o massacre de um povo.

Nos anos 1930, seria razoável, em nome do “mal menor”, escolher um entre dois candidatos que apoiassem ativamente a Alemanha nazista e o holocausto judeu? Como nós encararíamos, hoje, uma escolha assim, feita naquela época?

Ao contrário da deputada do PSOL, sei que não voto nos EUA e que meu pitaco sobre a “missão mundial” de derrotar Donald Trump não tem nenhuma importância. Mas lembro que nas eleições estadunidenses existem opções, embora sem chances de vitória. Jill Stein, do Partido Verde, e Cornel West, independente, são os dois candidatos “nanicos” que se opõem ao massacre em curso em Gaza e expressam corajosamente essa posição.

A prioridade dada à luta contra a extrema direita tem, como primeira consequência, a redução do campo que se opõe a ela ao seu mínimo denominador comum – isto é, aos seus integrantes mais atrasados. Há uma redução da qualidade do debate sobre a sociedade e o mundo em que queremos viver. Esse é o primeiro grande serviço que a extrema direita presta ao conservadorismo.

Mas onde fica a linha divisória? Podemos fechar os olhos para um genocídio, em nome das conveniências? Vamos proclamar que as vidas dos palestinos valem tão pouco que nem vamos lutar por elas? Que não valem nem o repúdio a quem patrocina o massacre, com dinheiro, com armas, com desinformação?

Há limites que não podem ser cruzados. Há valores que se impõem diante do pragmatismo. A vitória de Donald Trump acelera, sim, a decadência da democracia estadunidense. Mas sinalizar que o genocídio do povo palestino não é admissível, que nossa humanidade comum nos obriga a erguer nossa voz em solidariedade, é o imperativo maior na atual quadra histórica.

 

¨      A nova estratégia democrata. Por Bruno Fabricio Alcebino da Silva e Julia Protes Lamberti 

A desistência de Joe Biden da corrida pela reeleição marca um momento crucial na história política recente dos Estados Unidos. Esta decisão, embora surpreendente para alguns, é coerente com uma tradição de presidentes que, em diferentes circunstâncias, optaram por não buscar um segundo mandato.

Historicamente, a decisão de um presidente em exercício de não buscar a reeleição tem sido influenciada por uma variedade de fatores – problemas de saúde, baixa popularidade, crises econômicas ou simplesmente um desejo pessoal de não continuar no cargo. Exemplos notáveis incluem Lyndon B. Johnson, que, em 1968, decidiu não buscar a reeleição em meio à turbulência da Guerra do Vietnã (1955-1975) e à crescente insatisfação pública.

A decisão de Lyndon B. Johnson refletiu uma combinação de exaustão pessoal e pressão política. De maneira similar, Joe Biden, enfrentando desafios de saúde e uma crescente pressão política, decidiu não continuar no pleito, optando por se concentrar em cumprir seu mandato atual.

O democrata anunciou sua desistência através de uma carta pública e uma mensagem nas redes sociais, destacando que acredita ser do melhor interesse do partido e do país que ele se retire da corrida eleitoral. Em sua carta, o mandatário agradeceu à vice-presidente Kamala Harris por seu apoio e parceria, e expressou gratidão ao povo americano pela confiança depositada nele. A decisão foi influenciada por vários fatores, incluindo questões de saúde que se tornaram mais aparentes nos últimos meses.

Joe Biden, com 81 anos, enfrentou dificuldades físicas e cognitivas visíveis em eventos públicos, levantando preocupações sobre sua capacidade de cumprir um segundo mandato. Além disso, a suspensão das doações à campanha do democrata refletiram uma crescente falta de apoio financeiro, o que agravou ainda mais o cenário desafiador para sua reeleição.

Além dessas questões, as pesquisas mostravam que Joe Biden não era competitivo em uma possível disputa contra o ex-presidente Donald Trump, que lidera as intenções de voto entre os republicanos. A possibilidade de uma derrota para Trump também pode ter influenciado a decisão de Biden, considerando o impacto que isso teria tanto para seu legado quanto para o Partido Democrata.

Com a saída de Joe Biden, Kamala Harris emerge como a principal candidata do partido. Primeira mulher negra e de ascendência indiana e jamaicana a ocupar a vice-presidência, Kamala Harris tem uma carreira marcada por posições de destaque no judiciário e no Senado dos Estados Unidos. Apesar de ter enfrentado críticas por algumas de suas posturas como procuradora, Kamala Harris se estabeleceu como uma defensora de direitos reprodutivos e de políticas progressistas, o que pode atrair eleitores jovens e de minorias.

Além de Kamala Harris, a disputa interna do Partido Democrata levanta alguns outros nomes, dentre eles a ex-primeira dama Michelle Obama, que registra grande popularidade por sua figura na mídia; Gretchen Whitmer, que se destaca por sua popularidade nos chamados “swing states” – os estados que, tradicionalmente, apresentam um eleitorado bem dividido entre democratas e republicanos, e acabam apresentando eleições bem acirradas que costumam oscilar de partido vencedor; e o atual governador da Califórnia Gavin Newsom, figura presente na corrida eleitoral de Biden.

Gavin Newsom se destacou na mídia internacional no mês de julho após um embate online com o bilionário Elon Musk, que anunciou a decisão de mover a matriz de sua empresa ‘X’ para fora da Califórnia, devido a discordâncias com o governador a respeito de leis que protegem a privacidade de adolescentes LGBTQIA+ nas escolas da Califórnia.

Nas redes sociais, Joe Biden já anunciou publicamente seu apoio à candidatura de Kamala Harris. No entanto, a escolha do vice na chapa de Harris será crucial para consolidar seu apoio dentro do partido e entre o eleitorado. Um vice-presidente escolhido estrategicamente pode fortalecer a chapa, atrair diferentes segmentos de eleitores e ajudar a construir uma coalizão sólida para enfrentar os desafios da eleição.

Alguns nomes possíveis para compor a chapa com Kamala Harris incluem figuras proeminentes do Partido Democrata. Pete Buttigieg, ex-prefeito de South Bend e atual secretário de Transportes, é conhecido por sua habilidade de comunicação e por atrair eleitores moderados. Josh Shapiro, governador da Pensilvânia, que, apesar de ter assumido o cargo recentemente, é visto como uma estrela em ascensão. Formado em direito e ex-procurador-geral do estado, Shapiro tem um histórico de vitórias contra republicanos em um estado crucial para os democratas.

Outras opções incluem Andy Beshear, governador de Kentucky, que se destacou em um estado fortemente republicano por seu trabalho na criação de empregos, apoio à educação pública e expansão do acesso à saúde, além de seu posicionamento firme contra leis que restringem direitos reprodutivos e cuidados de afirmação de gênero para jovens transgêneros. Roy Cooper, governador da Carolina do Norte, também é uma possibilidade. Cooper é elogiado por seu foco no desenvolvimento econômico e por manter índices de aprovação relativamente altos em um estado politicamente competitivo que pende para o lado republicano.

A decisão de Joe Biden de não buscar a reeleição não apenas altera a dinâmica dentro do Partido Democrata, mas também provoca reações intensas entre os republicanos. Donald Trump, aproveitando a oportunidade, não tardou em criticar o mandatário, chamando-o de “o pior presidente da história” e afirmando que enfrentar Kamala Harris será mais fácil.

A renúncia de Joe Biden é vista pelos republicanos como uma confirmação de suas críticas à capacidade do presidente de liderar o país, líderes republicanos, como Mike Johnson, pediram a renúncia imediata de Joe Biden do cargo presidencial, argumentando que ele não está apto para servir.

Essa discussão sobre a renúncia de Joe Biden reflete um cenário político polarizado, onde cada movimento é escrutinado e utilizado como munição para a próxima batalha eleitoral. Para o Partido Democrata, a tarefa agora é unir-se em torno de Kamala Harris ou outro candidato forte, garantir que as divisões internas não prejudiquem a campanha e apresentar uma plataforma que possa enfrentar a retórica agressiva dos republicanos e as dificuldades econômicas e sociais que o país enfrenta.

A decisão de Joe Biden de não buscar a reeleição é um momento de redefinição para a política americana. Essa virada destaca a importância de uma liderança adaptável e responsiva às necessidades do momento, e coloca em foco a próxima geração de líderes que moldarão o futuro do país. A habilidade do Partido Democrata de navegar este período de transição e anunciar a nova chapa eleitoral do partido será crucial para determinar seu sucesso nas eleições de 2024.

Ao mesmo tempo, o debate sobre a renúncia de Joe Biden e suas implicações continuará a ressoar no discurso político, influenciando a percepção pública e o curso da política americana nos próximos meses. Com todos os olhos ao redor do mundo agora totalmente voltados à corrida eleitoral dos Estados Unidos, surge a grande pergunta: os democratas conseguirão realizar uma campanha bem sucedida contra Donald Trump em tão poucos meses?

 

¨      Por que Obama ainda não endossou Kamala Harris

Entre os vários nomes importantes do Partido Democrata que desde domingo (21/7) têm manifestado publicamente apoio à vice-presidente americana, Kamala Harris, para ser a candidata do partido na eleição de 5 de novembro, uma ausência é notada: a do ex-presidente Barack Obama (2009-2017).

Logo após anunciar que havia decidido abandonar sua campanha pela reeleição, o presidente Joe Biden declarou "total apoio e endosso" à vice para substituí-lo na disputa contra o ex-presidente Donald Trump.

Desde então, Harris foi rapidamente endossada por figuras como o ex-presidente Bill Clinton (1993-2001) e a ex-secretária de Estado e candidata do partido em 2016, Hillary Clinton, além de diversos congressistas no Senado e na Câmara.

Vários governadores democratas também já manifestaram seu apoio a Harris, entre eles Gavin Newsom (Califórnia), Gretchen Whitmer (Michigan), J.B. Pritzker (Illinois), Andy Beshear (Kentucky), Wes Moore (Maryland), Josh Shapiro (Pennsylvania), Roy Cooper (Carolina do Norte) e Tim Walz (Minnesota).

Na segunda-feira (22/7), a ex-presidente da Câmara, Nancy Pelosi, que mantém forte influência no partido, declarou seu apoio "oficial, pessoal e político" a Harris.

"É com imenso orgulho e otimismo ilimitado no futuro de nosso país que eu endosso a vice-presidente Kamala Harris para presidente dos Estados Unidos", disse Pelosi em um comunicado.

O ex-presidente Obama, porém, não citou o nome de Harris em um tributo a Biden — que foi seu vice — postado no domingo.

"Navegaremos em águas desconhecidas nos próximos dias", ressaltou Obama. "Mas eu tenho confiança extraordinária de que os líderes do nosso partido serão capazes de criar um processo do qual emergirá um candidato excepcional."

Obama descreveu Biden como "um dos presidentes mais importantes da América, bem como um querido amigo e parceiro" e "um patriota do mais alto nível" e disse que o presidente tinha "todo o direito de concorrer à reeleição e acabar o trabalho que começou".

"Joe nunca desistiu de uma luta", escreveu Obama. "Olhar para o cenário político e decidir que deveria passar a tocha para um novo candidato é certamente uma das coisas mais difíceis de sua vida."

"Acredito que a visão de Joe Biden de uma América generosa, próspera e unida, que ofereça oportunidades para todos, estará plenamente visível na Convenção Democrata, em agosto. E espero que cada um de nós esteja preparado para levar essa mensagem de esperança e progresso até novembro e além", disse o ex-presidente.

·        Cautela em relação a apoio a candidatos

O silêncio do ex-presidente em torno de Harris chamou a atenção, mas analistas políticos lembram que Obama adotou posição semelhante nas eleições de 2020.

Na época, Obama resistiu a pressões para que declarasse apoio oficial a Biden antes que o então pré-candidato Bernie Sanders abandonasse a disputa pela indicação do partido.

"Barack Obama tem sido bastante cauteloso ao longo de sua carreira em relação a apoio (a candidatos), especialmente na disputa presidencial", diz à BBC News Brasil o cientista político Michael Traugott, professor da Universidade de Michigan.

"Portanto, não acho surpreendente que ele ainda não tenha apoiado Kamala Harris. Mas não tenho dúvidas de que ele a apoiará totalmente quando sua nomeação for formalizada", afirma.

Traugott lembra que Harris ainda não é tecnicamente a candidata democrata e ressalta que isso só poderá ocorrer quando os 4.672 delegados do partido votarem.

"Quer isso seja feito em algumas semanas ou dentro de um mês, na convenção em Chicago, tenho certeza de que a essa altura Obama apoiará totalmente a candidatura dela", reforça.

O apoio recebido por Harris até agora é importante, mas não garante sua candidatura, e é apenas um primeiro passo no processo que irá definir quem enfrentará Trump nas urnas em novembro.

Líderes democratas planejam se reunir nesta semana para discutir detalhes sobre como esse processo será feito.

Enquanto Harris já conseguiu o endosso de diversas figuras influentes no partido, muitos democratas preferem um processo competitivo na convenção nacional, que ocorre de 19 a 22 de agosto, em Chicago.

Um dos argumentos seria o de que um endosso muito rápido poderia atrair críticas de que a possível escolha de Harris foi feita às pressas e alimentar dúvidas sobre suas habilidades como candidata.

Em um post na rede social X após o anúncio de Biden, Harris disse estar "honrada por ter o endosso do presidente" e que sua intenção "é merecer e conquistar essa indicação (para ser a candidata democrata)".

Também no domingo, a campanha democrata atualizou formalmente seus registros junto à Comissão Eleitoral Federal e renomeou seu principal comitê como "Harris para Presidente".

 

Fonte: A Terra é Redonda/BBC News Brasil

 

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