segunda-feira, 1 de julho de 2024

Impactos e  situação do RS dois meses após as enchentes

Os temporais e cheias que, a partir do final de abril, provocaram 179 mortes no Rio Grande do Sul, completam dois meses neste final de semana. Alguns impactos da tragédia ainda são visíveis no dia a dia da população gaúcha.

O desastre afetou 2,3 milhões de pessoas, deixando mais de 800 feridos e 34 desaparecidos. Quase 7 mil pessoas seguem desabrigadas.

São 80 trechos de estradas ainda bloqueados, parcial ou totalmente, o que impede a circulação de pessoas e mercadorias em algumas regiões. Cerca de 37,8 mil alunos ainda estão sem aulas presenciais na rede estadual de ensino.

O lixo que se acumulou nas cidades é recolhido. Apenas em Porto Alegre, 87 mil toneladas de resíduos já foram retiradas das ruas.

•           Desaparecidos e desabrigados

O Rio Grande do Sul registra 34 pessoas que seguem desaparecidas desde o início do desastre. Municípios da Serra e do Vale do Taquari concentram a maior parte das buscas, que são lideradas por dois comandos do Corpo de Bombeiros Militar.

As unidades ficam em Bento Gonçalves e em Lajeado. As equipes fazem buscas nas margens dos rios e em locais atingidos por deslizamentos em 17 cidades que ainda procuram por moradores que sumiram depois da tragédia.

Parte das buscas é realizada nas margens dos rios, onde os militares fazem uma espécie de marcha. Nos rios, embarcações equipadas com sonares mapeiam o que está sob as águas.

O Rio Grande do Sul ainda registra pessoas desabrigadas, ou seja, que precisaram sair de casa e só encontraram acolhimento em espaços públicos ou mantidos por voluntários.

Atualmente, 6.959 pessoas estão em abrigos. No pior momento das enchentes, ainda em maio, o estado tinha 78 mil pessoas atendidas em ginásios, salões e galpões improvisados.

Porto Alegre é a cidade com mais abrigos em funcionamento, 36 locais, e maior público atendido, 1,5 mil pessoas. Também há desabrigados em Canoas e São Leopoldo, na Região Metropolitana, e em cidades dos vales, como Cruzeiro do Sul, Encantado, Estrela, Lajeado e São Sebastião do Caí.

Além dos abrigos, há as chamadas "cidades provisórias", erguidas pelo governo do estado em parceria com entidades e a iniciativa privada, para acolher desabrigados na Região Metropolitana. Em Canoas, a Organização das Nações Unidas (ONU) doou estruturas para receber a população que está fora de casa.

"Ela proporciona privacidade, dignidade e o que a gente fala de proteção. O que seria essa proteção? É a garantia de segurança das pessoas, a garantia dela se sentir acolhida", diz a oficial de planejamento de abrigos do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), Patrícia Monteiro.

•           Estradas bloqueadas e comunidades isoladas

O estado tem 80 trechos de estradas bloqueados desde o início dos temporais. Nas rodovias federais, são 21 pontos, sendo seis com bloqueio total e 15 com interrupção parcial. Já nas rodovias estaduais, são 59 trechos, 25 bloqueados totalmente e 34 parcialmente desde a publicação desta reportagem no dia 29 de junho.

No Vale do Rio Pardo, uma das primeiras regiões afetadas pelos temporais, estradas em situação precária dificultam o escoamento da produção agrícola. Algumas comunidades estão isoladas.

Para chegar na comunidade de Rebentona, em Candelária, é necessário passar por uma ponte pênsil. Mais adiante, só caminhonetes ou tratores conseguem passar pela estrada. O município não registrou mortes por causa da chuva, mas a força dos rios da região carregou pontes, passarelas e até pessoas.

O agricultor Guilherme Norberto Gewehr tem dificuldades para transportar o arroz que sobreviveu à enchente em sua propriedade

"Tudo muito precário, não tem acesso, só pela ponte. Mas aí precisa passar tudo braçal por cima e de trator. É um baita de um transtorno", diz.

Moradores do Vale do Rio Pardo ainda estão isolados ou com estradas precárias

Na mesma região, duas comunidades estão isoladas em Sinimbu. As pontes que faziam as conexões entre as comunidades já não existem mais e a estrutura provisória erguida pelo Exército também foi levada pelo rio.

Uma espécie de tirolesa foi montada por moradores, que tentam improvisar no transporte de objetos entre um lado e outro do rio.

"Alguém às vezes chama: 'olha, tenho uma coisa para passar lá para o outro lado'. A gente está aí para ajudar", comenta o agricultur Reinvaldo Henks.

•           Escolas fechadas e aulas online

Dos 741,8 mil alunos da rede estadual de ensino, 37,8 mil estão sem aulas presenciais (entre eles, 4,6 mil não retomaram nem mesmo as aulas virtuais).

Na Escola Estadual Cândido Godói, em Porto Alegre, foi tudo revirado pela água, que chegou a 1,7 metro de altura. Agora que a lama secou, a equipe separa o entulho para começar a limpeza. Entre os itens separados para o lixo, estão livros. O que não molhou, ficou mofado.

As aulas estão sendo realizadas online, e o calendário letivo deverá ser repensado, segundo a vice-diretora, Maria Luiza de Castro.

"Nós estamos fazendo aulas com os alunos, aulas online. Estávamos, por exemplo, terminando o primeiro trimestre", conta.

•           Escolas atingidas por enchentes no RS

Os pais dos 320 alunos estão preocupados com a defasagem no aprendizado. O filho de Clarice Dal Médico está no 2º ano do ensino médio e se prepara para cursar ciência da computação.

"Por mais que a gente tenha os alunos sendo atendidos pela escola com aula online, aula postada nas salas, aula pelo Meet [aplicativo de videochamadas], mas ele precisa da sala de aula, a questão da convivência ajuda também na aprendizagem", comenta.

Ainda com a possibilidade de ensino remoto, alguns alunos não conseguem acessar as aulas pela internet.

"Muitos alunos dependem dos dados móveis do seu celular, uma vez que várias famílias estão ainda desalojadas, que perderam as suas casas, não têm serviço de internet disponibilizado nas suas residências. Então a escola até disponibiliza [conteúdo], mas não sabe se está chegando aos alunos", explica o vice-diretor, Mário Antônio da Silva.

A Secretaria Estadual da Educação (Seduc) afirma ter liberado "a parcela extra de autonomia financeira para que as escolas contratassem serviços de limpeza" da escola Cândido Godói. Também afirmou que "o governo liberou 6 milhões de reais para a compra de mobiliária e as entregas começaram na semana passada".

•           Lixo nas ruas

Quem circula por Porto Alegre ainda encontra lixo em algumas ruas. São móveis e objetos que ficaram danificados ou que foram perdidos na enchente, além do lodo acumulado e do lixo normalmente varrido pela cidade.

Segundo a prefeitura da capital, já foram recolhidas 87.385 toneladas de resíduos deixados pelas calçadas. O volume, de acordo com o município, é suficiente para encher 29,2 mil caminhões.

"É rua por rua", conta o supervisor de uma das equipes de limpeza, Vilmar Custódio da Rosa.

Alguns dos bairros mais atingidos pela enchente contam com áreas chamadas de "bota-espera", onde o lixo é acumulado antes de ser novamente recolhido e enviado para um aterro na cidade vizinha de Gravataí.

 

•           Transfobia ambiental: o que é e qual a relação com a enchente do RS

Transfobia ambiental, uma expressão nova, que ainda não está presente no vocabulário de boa parte da população. Um termo que expõe uma questão urgente e muitas vezes negligenciada, que vem do sofrimento do grupo de pessoas transgêneras, ou, simplesmente, "pessoas trans".

"A população trans enfrenta diversas dificuldades de acesso. Muitas pessoas sofrem violência desde muito cedo e acabam não concluindo a escola, não conseguem ingressar na universidade, e por causa disso muitas não conseguem nem um emprego no mercado formal de trabalho. Isso vai colocando as pessoas em uma posição extremamente vulnerável", explica Gustavo Deon, artista, produtor cultural e homem trans.

Mas como essa vulnerabilidade de pessoas trans está relacionada ao ambiente? Diego Candido, advogado especialista em Direito LGBT+ e coordenador jurídico da ONG Igualdade RS - Associação de Travestis e Transexuais do RS, esclarece:

“A transfobia ambiental é baseada em estudos sobre o racismo ambiental que envolve a população negra, sugerindo que grupos sociais excluídos, como as pessoas trans e travestis, são afetados de maneira mais gravosa por eventos como a crise climática", exemplifica.

A enchente que assolou o Rio Grande do Sul no mês de maio e fez 179 vítimas ilustra essa dinâmica de maneira clara. Hellen Faleiro, uma mulher trans que perdeu sua casa com a cheia na Ilha da Pintada, na Região Metropolitana de Porto Alegre, precisou passar por quatro abrigos, sendo três em Guaíba e um em Porto Alegre, até encontrar um lugar adequado para ficar.

“Sofri transfobia. As pessoas me chamando de "ele", de "doutor", de "mano" e eu com a minha figura ali de mulher, montada de mulher, com roupa de mulher. Mesmo assim eles me chamavam de "ele", revela.

Em 2023, 145 pessoas trans foram assassinadas, de acordo com o "Dossiê: assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023", elaborado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). O número representa um aumento de 10,7% em relação a 2022.

Os relatos do artista Gustavo durante este período de calamidade no RS não são diferentes. De acordo com ele, um homem trans sofreu tentativa de assédio em um abrigo, após ter sido abusado sexualmente antes da enchente, e "preferiu sair e dormir na rua do que continuar dentro do abrigo [...]. Era mais seguro estar fora do que dentro".

Por situações assim, a resposta da sociedade civil em prol das pessoas trans tem sido crucial para quem enfrentou casos parecidos.

Dani Morethson, presidente da Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas, mobilizou-se já no primeiro dia de voluntariado para ajudar os desabrigados:

“Sinalizei um caso de transfobia. Aquilo que é o normal de sempre, o uso do banheiro", explica.

Hoje, Dani é coordenador de um abrigo para pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ atingidas pela enchente, o "Renascer". "Decidimos arrumar um prédio parado e trazer a população LGBT pra cá. Em três dias, arrumamos a iluminação, a rede elétrica e começamos a trazer um número grande de mulheres trans e homens trans", conta o coordenador.

Atualmente, o abrigo está com 27 pessoas, entre elas quatro homens trans e sete mulheres trans, incluindo a Hellen.

De acordo com Dani, todas as pessoas trans que estão no local sofreram algum tipo de violação de direitos em outros abrigos, como restrições de uso de banheiros e eram chamadas pelo "nome morto", aquele que usavam antes de passarem pela transição.

“São pessoas que não estão preparadas para qualquer tipo de calamidade. São desestruturadas e não têm família que as acolham. As pessoas cisgêneras voltam para suas casas ou são acolhidas pela família. As pessoas trans, não", lamenta o coordenador.

Conforme o advogado Diego Candido, "o agravamento da situação de vulnerabilidade de uma pessoa que já é vulnerável e luta pela sobrevivência todos os dias" deixa ainda mais perceptível os efeitos da transfobia ambiental em épocas de desastres naturais e calamidade pública.

Para Gustavo, que além de trabalhar com arte é um dos idealizadores do projeto #AjudaTransRS, a maior dificuldade de uma pessoa trans enquanto está na posição de desabrigada na enchente é "não receber ajuda enquanto todas as pessoas estavam recebendo".

"Mais uma vez, a população trans é uma das que mais sofre com os impactos do preconceito, da falta de informação e da formação da sociedade de muitos profissionais que estavam nos abrigos", diz Gustavo.

A situação de Hellen, que busca reconstruir sua vida após perder a casa, é um exemplo de resiliência da comunidade trans diante de tantas adversidades. “Eu já larguei muitos currículos e não entrei no mercado de trabalho por preconceito. Quero voltar a estudar e fazer um técnico de enfermagem, mas enquanto isso quero fazer cursos para ser cuidadora de idosos", conta Hellen.

De acordo com Candido, essa situação é agravada pela falta de políticas públicas eficazes e pela ausência de legislações específicas para proteger os direitos da população LGBTQIAPN+. Ele destaca que a “a legislação brasileira não prevê os direitos das pessoas LGBTQIA+ e, diante da omissão do legislador, tais direitos são garantidos pelo Poder Judiciário por meio de decisões emanadas pelos Tribunais Superiores (STF e STJ) e Conselho Nacional de Justiça (CNJ)".

"Portanto, a salvaguarda desses direitos perpassa pelo ajuizamento de ações a partir da análise do caso concreto, daí a necessidade da constante vigília dos operadores do direito que trabalham com a pauta dos Direitos Humanos", conclui.

•           #AjudaTransRS

O projeto #AjudaTransRS, idealizado pelo Gustavo junto com a sua companheira, Luka Machado, tem o objetivo de minimizar a transfobia e garantir que tanto as pessoas trans afetadas pelas enchentes quanto as voluntárias se sintam seguras. Desde então, o #AjudaTransRS tem se dedicado a fornecer recursos de forma organizada e eficiente para atender às necessidades da comunidade trans.

Até o momento, o projeto atendeu mais de 135 famílias e distribuiu cerca de R$ 60 mil em recursos para compra de alimentos, água, medicamentos, kits de higiene, colchões, camas, produtos de limpeza e reforma das casas.

Os organizadores fazem um apelo para que as pessoas continuem doando e fortalecendo essa rede de apoio, ajudando a garantir que todos tenham a oportunidade de reconstruir seus lares e viver com dignidade.

 

Fonte: g1

 

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