segunda-feira, 29 de julho de 2024

Imbróglio fiscal – monetário no Brasil

Tal como o uso indiscriminado de antibióticos acaba por potencializar o surgimento de bactérias resistentes ao medicamento, um mal-estar semelhante parece ocorrer nas finanças públicas brasileiras em relação ao manejo da taxa básica de juros. A dosagem cada vez mais elevada e o uso excessivo do antídoto tendem, paradoxalmente, a revelar sua ineficácia diante não só do fortalecimento do patógeno, como também do agravamento da doença.

Há anos, o debate econômico se concentra na apreciação dos resultados fiscais do país, sobretudo em razão das recorrentes necessidades de financiamento do setor público. A maioria das análises parte do diagnóstico de que a Constituição de 1988 supostamente não caberia no orçamento e, por isso, constrangeria o potencial de crescimento do produto interno bruto (PIB). Para resolver a crise fiscal brasileira, ora se sugere que o foco principal recaia sobre a redução de despesas primárias, como feito no Teto dado pela Emenda 95; ora sobre o aprimoramento da arrecadação, como feito no Novo Arcabouço Fiscal.

Com esse viés, deixa-se de lado a discussão em torno do custo fiscal com o serviço de juros da Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG), gerado tanto pela rolagem da Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi), quanto pelo uso extensivo das operações compromissadas como instrumento de política monetária do Banco Central (BC). Tal visão ignora a simbiótica relação existente entre BC e Tesouro Nacional e estreita a capacidade de a sociedade compreender como a atuação de ambos repercute sobre a dívida pública do país. Seus pontos de contato têm sido negligenciados, apesar de serem muito evidentes devido à operacionalidade das políticas monetária e fiscal se dar no Mercado SELIC (que não se confunde com a taxa básica de juros), o mercado de dívida pública brasileiro.

A institucionalidade do SELIC, criado em 1979 e desenvolvido ao longo do período hiperinflacionário, carrega ainda hoje traços daqueles anos, mesmo com a estabilização promovida pelo Plano Real, o que causa problemas à política econômica, principalmente às políticas monetária e de gestão da dívida pública. Destaca-se a própria estrutura do Sistema Financeiro Nacional (SFN), convencionada e habituada com transações de curto prazo, com elevada liquidez e baixíssimo risco, algo rotineiramente utilizado no longo período da zeragem automática. Aqui se reputa estrutura do SFN o modo como famílias, empresas, instituições financeiras e agentes externos comportam-se e operam financeiramente no Brasil em relação às aplicações de renda fixa, esperando que o governo lhes assegure rentabilidade média alta, risco zero e liquidez imediata por meio dos títulos públicos. Tal demanda é atendida via BC e Tesouro Nacional, ao utilizarem extensivamente as operações compromissadas e a oferta de títulos públicos indexados para fins fiscais.

No âmbito específico da política monetária, a forma de liquidação dos títulos públicos instaurada com o Mercado SELIC implica que sempre que títulos públicos sejam negociados, há transação imediata de reservas bancárias, ou seja, os títulos públicos são substitutos quase perfeitos destas, sendo, então, moedas que pagam juros. Assim, pode-se aqui encontrar um dos motivos da alta taxa de juros cobrada no varejo brasileiro, uma vez que bancos e instituições financeiras têm suas reservas bancárias remuneradas, sem risco e com alta liquidez, partindo-se do (alto) nível da taxa básica de juros.

Dado o amplo uso de títulos pós-fixados na composição da DPMFi, inclusive lastreando as operações compromissadas, a política monetária sofre com a perda do efeito riqueza como canal de transmissão. Este canal implica que o aumento da taxa básica de juros, a rigor, deveria provocar a redução do valor de mercado do estoque de riqueza da sociedade (incluídos aqui diversos tipos de ativos, físicos e financeiros, a dívida pública inclusive), reduzindo, assim, a renda disponível para consumo e investimento. Mas no Brasil, dada a ampla oferta de títulos públicos indexados, tem-se, com o aumento do juro básico, um efeito riqueza às avessas: aumenta-se o estoque de riqueza e, em decorrência, da renda disponível. Logo, a taxa básica de juros necessita alcançar patamares elevados para angariar controle inflacionário na meta estabelecida pela Autoridade Monetária. Diante deste imbróglio, é oportuna a analogia com a resistência aos antibióticos, que bem evidencia o risco de ineficácia do medicamento em decorrência do seu manejo abusivo.

Numa simbiose, como se parte da taxa Selic para definição das demais taxas do sistema, inclusive do rendimento de títulos públicos para fins fiscais, há uma clara contaminação da política monetária sobre a gestão da dívida pública e financiamento do governo. Neste tocante, o uso das operações compromissadas pelo Banco Central para gerir a política monetária custou o equivalente a R$1,237 trilhão em maio de 2024, cerca de 11,1% do PIB. Soma-se ainda, o curioso círculo vicioso extraído desta institucionalidade: cobra-se, cada vez mais, altos prêmios a um governo que emite dívida custosa de curto prazo, mas, dada a continuidade do perfil desta dívida (que é demandada e certamente atendida), seu custo aumenta. Independentemente do indexador majoritário da dívida pública, seu custo médio, hoje em torno de 10,56% a.a., acompanha a evolução da taxa Selic, ou seja, por esta representar o piso da remuneração dos títulos públicos federais, é também o valor mínimo do custo médio da dívida pública federal.

O arranjo institucional da dívida pública no Mercado SELIC absorve concomitante e indiscriminadamente os impactos das políticas monetária e fiscal como uma espécie de mal-estar residual do período de alta inflação. A permanência de tal institucionalidade com zeragem automática das reservas bancárias por meio das operações compromissadas, mesmo após transcorridas três décadas do Plano Real, explica parte considerável da trajetória da DBGG.

Para que se tenha noção das proporções envolvidas, enquanto as dotações atualizadas do presente exercício para as funções saúde, assistência social e educação alcançaram R$662,1 bilhões (5,96% do PIB) no Orçamento Geral da União, conforme dados do Relatório Resumido de Execução Orçamentária publicado em maio deste ano; os juros nominais, no acumulado em doze meses (maio/2023 a maio/2024), alcançaram R$781,6 bilhões (7,04% do PIB), segundo o informe de Estatísticas Fiscais do BC.

Diante de tal cenário, ainda que as despesas primárias fossem reduzidas a um patamar controversamente mínimo para obter um social e economicamente oneroso superávit nominal, não haveria garantia de redução da dívida pública brasileira ao longo do tempo, por causa do regime em que opera a política monetária e toda a estrutura que dele decorre.

A esterilização completa da política fiscal, com a revisão de todos os instrumentos constitucionais de proteção ao custeio dos direitos fundamentais e de equilíbrio federativo, não necessariamente entregaria trajetória sustentável da DBGG, porque o BC pode, a qualquer tempo, majorar a taxa básica de juros, ampliando o círculo vicioso. É preciso, portanto, trazer à tona que a desindexação necessária para perfazer o inconcluso, a despeito de trintenário Plano Real, passa por uma necessária reforma no SFN, revendo o manejo das operações compromissadas no Mercado SELIC e o uso indiscriminado da pós-fixação monetária.

Sem isso, os juros tendem a ser utilizados em doses cada vez maiores e mais ineficazes, tal como o abuso de antibióticos, agravando o mal-estar das finanças públicas brasileiras, ao custo do comprometimento cada vez maior do pacto constitucional civilizatório de 1988.

 

¨      Brasil não ajusta contas públicas, e isso assombrará Lula até fim do mandato. Por William Waack

A principal certeza sobre a questão fiscal e o governo Lula é a de que ela o assombrará até o final do mandato. E deve se projetar também sobre seu sucessor, não importa quem seja. A “predominância do fiscal” é uma maldição da qual seu governo não se livra mais até 2026 pelo menos. Significa dizer, do ponto de vista prático e imediato, que boa parte da política brasileira vai girar sobretudo em torno desse tema.

Ela já é uma disputa por migalhas do orçamento público, cada vez mais apertado por decisões políticas de Lula 3 – que estão encolhendo rapidamente seu espaço discricionário. Com ciclos previsíveis em função das datas que o Executivo é obrigado a cumprir, como acaba de acontecer com a apresentação do relatório bimestral de avaliação de receitas e despesas.

IRRESPONSABILIDADE FISCAL 

O básico para o noticiário político é um fato bastante preocupante: despesas têm crescido mais do que as receitas. Essa é a constatação fundamental para entender a razão do governo não conseguir convencer o público quanto aos fundamentos de sua responsabilidade fiscal.

Investidores e agentes econômicos em geral já se “acostumaram” (e puseram um belo preço) à realidade fiscal brasileira. Ela não produz mais sobressaltos, pânico ou a procura da porta de saída.

Mas também nenhum grande entusiasmo. O cenário internacional em seus “fundamentos” mais genéricos é favorável ao Brasil, especialmente em relação à transição energética e oferta de alimentos.

CLIMA DE INSEGURANÇA 

As circunstâncias mais imediatas pesam contra. O ambiente de negócios é agravado não só pelos juros altos, que tornam tão alto o custo de capital (portanto, de investimentos). As grandes indagações sobre os rumos da reforma tributária são apenas o mais recente exemplo do que se convencionou chamar de insegurança, que é jurídica e regulatória também.

Ocorre que a predominância do fiscal associada à paralisia do sistema político produz a situação atual de marcar passo em torno de questões que, mesmo tão relevantes (como o rumo das contas públicas), consomem as energias necessárias para resolver os problemas de fundo – dos quais se pode dizer que o fiscal é muito mais consequência do que causa.

Em outras palavras, perde-se tempo mesmo diante de profundas mudanças demográficas que, por si só, deveriam disparar todos os alarmes. O que tudo isso produz é chamado pelos economistas de diminuição do PIB potencial – a capacidade de crescimento do Brasil vem sendo rebaixada constantemente nos últimos 10 anos. E esta é a maior das assombrações.

 

Fonte: Por Larissa Naves de Deus Dornelas e Élida Graziane Pinto no Le Monde/Agencia Estado

 

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