'Democracia vive um tempo de crise', diz
dom Jaime Spengler, presidente da CNBB
Na presidência
da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB) desde maio de 2023, representante
da igreja Católica no Brasil, Dom Jaime Spengler tem feito um mandato
discreto, no espírito de sua eleição considerada, à época, uma alternativa à
polarização entre direita e esquerda que ultrapassou o processo eleitoral de
2022 e chegou aos corredores da organização.
Em entrevista
ao Brasil de Fato, Spengler lamentou o momento político do país e afirmou que “a democracia vive um tempo de crise.
Aquilo que limita a participação de muitos no necessário debate político, salta
aos olhos. Junto com a crise da democracia, é latente uma desafiadora crise
ética”.
Por e-mail, o presidente da CNBB falou também sobre o movimento de padres que pedem a
liberação do casamento e o fim do celibato para os clérigos. “Este é um tema
que sempre retorna. O celibato é uma norma disciplinar da Igreja de tradição
latina, introduzida a mais ou menos mil anos. Neste horizonte poderia ser
revisada, revogada”, explicou Spengler.
Também arcebispo
de Porto Alegre (RS), o religioso falou ainda sobre as enchentes que tomaram conta
da capital gaúcha, em maio deste ano, após fortes chuvas na região.
Sgundo ele, a
Arquidiocese de Porto Alegre foi atingida pelas enchentes. O religioso afirma
que as inundações “foram sim fruto de fatores climáticos que necessitam
urgentemente de atenção. Foram também expressão da negligência da própria sociedade.”
Dom Jaime Spengler
nasceu em Gaspar (SC), no dia 6 de setembro de 1960. Em 1982 entrou para a
Ordem dos Frades Menores em Rodeio (SC). O presidente eleito da CNBB estudou
Filosofia no Instituto Filosófico São Boaventura, no Paraná, e Teologia no
Instituto Teológico Franciscano, no Rio de Janeiro.
Em novembro de 2010,
foi nomeado pelo papa Bento XVI como bispo titular de Patara. No ano seguinte,
em fevereiro de 2011, o bispo foi ordenado na paróquia São Pedro Apóstolo, em
Gaspar. Em 18 de setembro de 2013, o papa Francisco nomeou dom Jaime Spengler
como novo arcebispo de Porto Alegre.
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Confira a entrevista na íntegra:
·
Gostaria de saber como
o senhor tem visto a polarização política em nosso país. A eleição do senhor,
em abril de 2023, também foi margeada por aspectos que refletiam a atmosfera
política do país, com discussões sobre posicionamentos de bispos que estão mais
à esquerda ou mais à direita.
Dom Jaime
Sprengler: A polarização política tem marcado, sobretudo, a história recente do país,
presente tanto no âmbito digital como físico. Isto não é privilégio do Brasil.
Pode-se dizer que é o processo no qual a opinião se baseia em pontos de vista
que não reconhecem aquilo que creem que seja o ponto de visto do outro. Ela se
sustenta em dois grupos de pessoas que discordam, e cada um acreditando que o
outro é totalmente culpado pelo que está em debate ou em questão; as posições
defendidas por um e outro grupo são consideradas irremediáveis filosófica,
política e moralmente. Alimentar a polarização produz obtusidades, fecha
espaços de construção social, impede a promoção do necessário diálogo,
especialmente quando em questão está o bem comum.
Os bispos são pessoas
que fazem parte da sociedade humana, são cidadãos e, consequentemente, se
sentem corresponsáveis pelo bem comum. De forma ainda mais característica por
acreditarem, testemunharem e anunciarem o Evangelho da Vida. Neste sentido, é
inspiradora a expressão de Jesus: “Eu vim para que todos tenham vida e vida em
abundância” (Jo 10,10). Por isso, onde a vida é ferida, desrespeitada ou até
mesmo ignorada não podemos nos calar. Os bispos são eleitos, em cada tempo da
história, para serem colaboradores da Igreja na obra da evangelização marcada
por âmbitos característicos. Na história recente do Brasil, a Igreja tem
demonstrado empenho decisivo em favor dos direitos humanos, da vida, da
democracia, dos povos originários, dos urgentes e necessários cuidados e
respeito pela Casa Comum.
·
O que é democracia
para o senhor? Como ela se manifesta e qual seu atual estágio em nosso país?
Recentemente, o Papa
Francisco usou uma expressão simples que expressa com clareza e objetividade o
que é a democracia: “Democracia é resolver ‘juntos’ os problemas de todos”. Ou,
se quisermos, podemos usar outra forma para dizer o que seja democracia: é o
ordenamento civil por meio do qual as forças sociais, jurídicas e econômicas
cooperam proporcionalmente para a promoção do bem comum, em favor de toda a
sociedade, com especial atenção aos mais fragilizados, ou numa outra expressão,
aos que estão nas periferias existenciais – e que, na nossa realidade nacional,
são uma multidão.
A realidade atual da
nação exige coragem e determinação para avançar em maior rapidez e eficiência
na construção, aplicação, acompanhamento e avaliação de políticas públicas
capazes de integrar o maior número de pessoas no seio da sociedade, a fim de
que justiça e paz possam se abraçar.
·
Recentemente, tivemos
a votação no Congresso Nacional de pautas que estão nas Casas Legislativas de
grande parte do mundo, o aborto e a liberação da maconha. Parte da resistência
ao avanço nessas pautas é feita por religiosos. O senhor acredita que a fé e a
crença individual deva pautar a legislação de uma nação?
Nossa sociedade está
marcada pelos valores da tradição cristã; são, hoje, muitas as expressões desta
tradição. Ora, a fé cristã é expressão de uma experiência de encontro com uma
pessoa – Jesus Cristo. Neste sentido, vale recordar a celebre expressão de Bento
XVI: “no início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia,
mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo
horizonte e, desta forma, o rumo decisivo”.
As pautas citadas
implicam diretamente na vida de pessoas que se orientam pela fé e crenças. A
Igreja como uma instituição reconhecida, com direitos e deveres, tem a
responsabilidade de participar dos debates públicos que envolvam temas
relacionados à vida em todas as suas dimensões. O parlamento, espaço de debate
e de construção de legislação, não pode não estar atento àquilo que a sociedade
espera de seus representantes. Infelizmente, há um sentimento difuso de
descrédito em relação aos poderes públicos; as razões de tal situação são
variadas. A própria democracia vive um tempo de crise. Aquilo que limita a
participação de muitos no necessário debate político, salta aos olhos. Junto
com a crise da democracia, é latente uma desafiadora crise ética.
Tais pautas não podem
ser conduzidas por ideologias ou interesses espúrios. Urge coragem e
determinação para promover o necessário debate, levando em consideração valores
éticos, avanços científicos e elementos antropológicos da tradição
judaico-cristã, quais sustentáculos da nossa cultura.
A ideia do sofrimento,
por exemplo, das inúmeras mulheres que sofrem formas distintas de abuso é
altamente importante considerar. O argumento sobre o desrespeito pelo corpo da
mulher toca um aspecto do convívio social merecedor de especial atenção. Mas é
também importante o respeito pelo corpo da criança, que segundo dados da
própria ciência é outro em relação ao da mãe. Estes poderiam ser alguns
aspectos que tornam o debate em torno do aborto delicado.
No que tange ao
projeto, dito, de liberação da maconha há também aspectos delicados. Não faltam
estudos que apontam para graves danos cerebrais, neurológico, sobretudo em
usuários adolescentes e jovens da referida planta. No passado tive oportunidade
de cooperar num centro de recuperação de dependentes químicos. Afirmar o uso
recreativo da maconha aponta para um limite delicado. É preciso maior
honestidade no debate em torno desta temática. Uma família que possui no seu
núcleo um viciado sabe – e sofre – as consequências de tal hábito.
Poder-se-ia, neste
contexto, invocar a liberdade. Mas, o que é a liberdade? Não certamente poder
realizar o que cada um decide. Tal compreensão leva a caminhos, no mínimo,
perigosos. Liberdade é, antes de tudo, libertação contínua da nossa inalienável
dignidade: sede de vida e de amor que vence ódio e morte. A liberdade pressupõe
discernimento e responsabilidade; são elementos adquiridos quando se busca a
honestidade e se reconhece a própria limitação.
·
Como o senhor vive a
experiência das enchentes que tomaram conta do Rio Grande do Sul? Ela chegou
até o senhor? Dois meses após as enchentes, há uma análise sobre o que
aconteceu?
As fortes chuvas que
se abateram o Rio Grande do Sul em fins de abril e durante o mês de maio,
produziram muita destruição e morte. O número de municípios, e consequentemente
de comunidades, famílias, pessoas atingidas foi enorme. A região metropolitana de
Porto Alegre, território da Arquidiocese, foi duramente atingida.
As enchentes foram sim
fruto de fatores climáticos que necessitam urgentemente de atenção. Foram
também expressão da negligência da própria sociedade. Tais fenômenos sempre
aconteceram ao longo do tempo. Entretanto a frequência maior de tais fenômenos
chama a atenção de muitos – também em várias cidades do Brasil; e a comunidade
científica não se cansa de lançar alertas. Há cidades no Rio Grande do Sul que
nos últimos 12 meses, sofreram três enchentes seguidas e devastadoras.
A região metropolitana
conta com um complexo sistema de proteção contra cheias, cuja construção teve
seu início na década de 70. Todavia o projeto não foi totalmente concluído,
além de carecer de manutenção ao longo dos anos. O número de flagelados foi
enorme. Empresas, fábricas, comércios grandes e pequenos situados nas regiões
mais baixas foram fortemente atingidas.
A tragédia fez com que
viesse o melhor de uma multidão – no Brasil e no exterior. Não recordo de haver
testemunhado um mutirão de solidariedade tão expressivo na história recente do
Brasil; sinal de que entre nós existem pessoas boas, que testemunham compaixão
e solidariedade. Digno de destaque o número de voluntários provenientes de
distintas regiões de nosso Brasil, dispostos a colaborar no que fosse
necessário: atendimento primário aos flagelados, atendimento à saúde, preparo
de alimentação, seleção e distribuição dos donativos que chegaram, colaboração
no árduo e delicado trabalho de limpeza. O empenho das Forças Armadas, da
Defesa Civil, Bombeiros, a dedicação de tantos jovens ficará certamente como
uma característica marcante na história da região. Vimos a fraternidade
personalizar-se, pois como disse o Papa Francisco “perante o sofrimento, onde
se mede o verdadeiro desenvolvimento dos nossos povos, descobrimos e
experimentamos a oração sacerdotal de Jesus: ‘Que todos sejam um só (Jó 17,
21)’”.
Precisamos também
reconhecer que no meio da tragédia, infelizmente, veio também o pior de alguns:
roubos, desvios, saques, o tráfico buscando marcar territórios, oportunistas no
meio da tragédia buscando tirar vantagens para si, em vistas de ‘projetos
pessoais’ futuros.
Merece, contudo,
destaque, reconhecimento, gratidão a solidariedade de muitos. Rezo para que
todos que de uma forma ou de outra se engajaram no socorro e atendimento das
necessidades dos flagelados sejam recompensados não com o dobro, mas com a
medida do Evangelho: cem vezes mais. É em situações semelhantes que se pode
perceber em que consiste a humanidade do ser humano. Todo auxílio é, sim,
sempre auxílio em favor de alguém. Mas é também expressão do que cada ser
humano é, traz no seu interior, ou ‘construiu’ ao longo da própria existência.
·
Como o senhor dialoga
com o movimento dos padres que pedem a liberação do casamento e o fim do
celibato? O Papa chegou a dizer que colocaria essa discussão na agenda da
Igreja.
Este é um tema que
sempre retorna. O celibato é uma norma disciplinar da Igreja de tradição
latina, introduzida a mais ou menos mil anos. Neste horizonte poderia ser
revisada, revogada. Trata-se de uma forma de vida que certamente exige
disciplina, determinação, coragem, fé. É também, de algum modo, uma opção de
vida.
Creio que se faz
necessário promover espaços amplos de diálogo sobre este tema. É uma realidade
que merece particular atenção. Há certamente na norma disciplinar aspectos
positivos. Há também aspectos antropológicos que não podem ser desconsiderados
num possível espaço de diálogo e estudo sobre o tema.
Na celebração do
Sínodo da Amazônia se chegou a falar sobre este tema. Contudo, o debate não
avançou. Imagino ser necessário coragem e parresia para avançar. Não se trata
simplesmente de ser a favor ou contra. A ordenação sacerdotal é para sempre,
mesmo quando o padre, por acaso, deixar a Igreja, pedindo dispensa das
obrigações do ministério. Dentro da Igreja Católica, sacerdotes das igrejas que
seguem ritos orientais podem contrair matrimônio. Por isso, não há contradição
no caso de sacerdotes contraírem matrimônio.
·
Por fim, como o senhor
tem visto a resistência à agenda implementada pelo Papa Francisco, que prevê um
maior engajamento da Igreja na luta pelo Meio Ambiente, aliança com movimentos
sociais e uma agenda econômica crítica ao capitalismo.
A questão do cuidado
pela “Casa Comum” envolve a todos, sem distinções. Uma pergunta que poderia
nortear o engajamento nesta causa é a seguinte: que mundo desejamos deixar para
as novas gerações. Não faltam sinais de que o Meio Ambiente está necessitado de
atenção particular. E sou testemunha do quanto recentemente padecemos por isso
[recordando as tragédias no RS].
A Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil possui um histórico de engajamento nessa causa. Bastaria
aqui recordar o histórico recente das Campanhas da Fraternidade que tiveram
como tema aspectos que compõem o Meio Ambiente e a necessidade de cuidado particular
para com a Casa Comum. A Comissão Episcopal para a Ação Sociotransformadora tem
uma excelente trajetória neste âmbito. Existe uma Comissão especial para a
Ecologia Integral e Mineração que se dedica ainda mais especificamente sofre o
tema em questão. No contexto latino-americano estão sendo constituídas redes de
atuação em distintas âmbitos, como por exemplo, a Rede Eclesial Gran Chaco e
Aquífero Guarani.
Para o próximo ano de
2025, a Campanha da Fraternidade promovida anualmente pela CNBB, com particular
ênfase durante o período da Quaresma, terá como tema “Fraternidade e Ecologia
Integral”, cujo lema será “Deus viu que tudo era muito bom” (Gn 1,31). Desejamos
recordar com isso, que tudo está interligado e com isso o ser humano não pode
se isentar dos cuidados com esta “casa comum”.
A cooperação entre as
melhores forças da sociedade que acreditam na urgência de promover uma agenda
consistente em torno do tema “Meio Ambiente”, “Casa Comum” é um imperativo. No
próximo ano teremos, em Belém, a COP30 espaço privilegiado para estudos, debates
possíveis e necessárias decisões sobre os desafios do clima. Esta será uma
oportunidade privilegiada para que também as Igrejas expressem o engajamento
nesta causa. Sendo o Brasil o anfitrião de tal evento, podemos afirmar que
temos responsabilidade ainda maior; o Brasil também tem responsabilidades
diante dos desafios que tocam a vida do planeta. Imagino que o legado de
Francisco de Assis há de inspirar e auxiliar a todos para que não só
redescubramos, mas verdadeiramente reconheçamos, respeitemos e promovamos a
dignidade e o valor de toda criatura.
·
O senhor acha que a
Igreja no Brasil dialoga com essa agenda?
Com certeza. Se trata
aqui de reconhecer que tal agenda faz parte da obra da evangelização. Nenhum
batizado que se reconhece seguidor, discípulo de Jesus - “o homem que passou
por entre nós fazendo o bem” e “que fazia bem todas as coisas” - pode, em sã consciência,
afirmar que tal agenda não lhe diz respeito.
Fonte: Brasil de Fato
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