sábado, 29 de junho de 2024

Por que o suicídio causa debate 'acalorado' sobre ritual do candomblé

Plantar, cuidar, colher. Nascer, crescer, morrer. Aprender, ensinar e passar o bastão aos mais novos. Em religiões tão baseadas nos ciclos da natureza como a umbanda e o candomblé, como mostram seus mitos e rituais, a decisão de se romper a trajetória de vida com um suicídio é difícil de ser assimilada.

"Como tudo que nós fazemos é voltado para nossa ancestralidade, seja elas os orixás ou os nossos antepassados que se tornaram ancestrais, esse é um ato que eu não diria vergonhoso, mas é uma missão não cumprida dentro desse processo ancestral”, explica o pesquisador André Aluize, sacerdote de candomblé (função conhecida também como pai de santo ou babalorixá) em Monte Azul Paulista e em cujo terreiro há também práticas da umbanda.

Talvez o “maior problema” do suicídio para essas religiões seja justamente a interrupção da possibilidade de se tornar mais velho, aponta Aluize, criador e coordenador do Educaxé, um grupo de estudos na Universidade Estadual Paulista (Unesp) sobre cultura negra e religiões de matriz africana no Brasil.

Como vem mostrando a BBC News Brasil na série "Suicídio & Fé", diversas religiões rejeitam historicamente o ato de se matar, prevendo punições — em ritos funerários ou em planos espirituais — aos suicidas, o que traz dor a famílias enlutadas.

No candomblé, há um debate “acalorado”, nas palavras de André Aluize, neste sentido — sobre se o axexê, um ritual de transição entre o mundo terreno e o espiritual, deve ser realizado para pessoas que se mataram.

Na internet, inclusive, há várias postagens em redes sociais e textos em blogs discutindo essa questão.

•           O que é o axexê e por que alguns argumentam que suicidas não devem ter ritual

O axexê é um rito funerário destinado a pessoas iniciadas no candomblé, ou seja, que passaram por um processo de inserção na religião que leva anos e tem várias etapas.

“O axexê é um ato de desfazer os atos religiosos que foram feitos durante a vida. Se você não desfizer esses atos, fica preso à Terra e não consegue ir para o orum [o mundo espiritual]; e não indo para o orum, você não consegue renascer", explica o sociólogo Reginaldo Prandi, professor emérito da Universidade de São Paulo (USP), pesquisador e autor de diversos livros sobre o candomblé, como Mitologia dos Orixás.

Na prática, inclusive por ser considerado caro, o ritual costuma ser feito para as pessoas mais importantes das comunidades, como pais e mães de santo e ogãs (um cargo de prestígio que tem rituais e funções específicas, como tocar atabaques, e que não incorpora entidades).

Mas é importante destacar que, no candomblé — assim como na umbanda —, não há uma instituição que centralize decisões e normas como em outras religiões.

As regras também não costumam ser escritas: há uma forte tradição oral, em que as crenças e o conhecimento são repassados de geração em geração por meio de mitos e cantos, por exemplo.

Assim, as práticas variam muito a depender do terreiro, da região do país e da nação de candomblé (que corresponde à origem, na África, de certas práticas e orixás cultuados no Brasil).

Segundo os entrevistados pela BBC News Brasil, a nação ketu, de origem iorubá, é a maior e a mais influente no candomblé. É dela que vem o nome “axexê”.

Outras nações têm outros nomes para esse tipo de ritual, como sirrum para a nação jeje e ntambi para nação angola — mas é comum que também esses segmentos usem o termo “axexê”.

Resguardadas as diferenças, o axexê pode levar dias e inclui cantos, danças, sacrifícios, oferendas, comida e a destruição de objetos rituais do morto, como colares e roupas.

Várias decisões sobre esse ritual são tomadas a partir do jogo de búzios, um oráculo através do qual são feitas consultas aos orixás e ancestrais.

Pergunta-se, por exemplo, se objetos ritualísticos do morto devem ser destruídos ou repassados para outra pessoa da família ou comunidade.

"Quanto mais iniciado você for, quanto mais um sábio da religião você se tornar, quanto mais responsabilidades você adquiriu ritualmente falando, mais complexo é o seu axexê”, explica Prandi.

“Uma mãe de santo que tem muitas responsabilidades e laços com todos os filhos de santo do terreiro é a pessoa que tem mais laços religiosos a desfazer", exemplifica.

Mesmo que não seja uma situação frequente, o suicídio de alguém que teria direito a um axexê rompe com essa programação e traz controvérsias sobre a realização ou não do ritual.

O babalorixá Alcemir de Odé, da casa de candomblé Ile Ase Alaketu Ode Labure (nação ketu), em São José dos Pinhais, no Paraná, afirma categoricamente que “quem faz o suicídio não tem direito a axexê”.

"Porque orixá deu a vida, orixá leva a vida", argumenta. "Eu concordo porque são meus ancestrais que assim fizeram, assim tem seguido de gerações em gerações."

“Quando a pessoa tira a própria vida, ela já decidiu seu destino”, diz o babalorixá.

Ele afirma ter conhecimento de dois casos em sua região de pessoas que se suicidaram e que, de outra forma, teriam tido um axexê: um ogã, há cerca de um mês, e de um pai de santo, há cerca de oito anos.

Ele esclarece que, nesses e em outros casos de suicídio, rituais mínimos são feitos.

“A gente também não pode deixar a pessoa de qualquer jeito... A gente vai preparar o corpo, preparar o túmulo e acabou. A gente dá o que ela mereceu naquele momento que terminou a sua própria vida”, diz Odé.

O babalorixá Égbé Leandro, da Casa de Oxumarê, em Salvador, na Bahia, também afirma que não se faz axexê para pessoas que se suicidam. Segundo ele, a casa tem influência principalmente das nações ketu e jeje.

“O axexê é uma celebração da passagem da pessoa ao orum. É uma festa. Então, eu não tenho como fazer axexê para a pessoa [que se matou] porque não se tem como comemorar uma pessoa que tirou a própria vida. Mas o rito fúnebre, as liturgias são iguais para todos”, diz Égbé Leandro.

“É feito o enterro dentro dos moldes da nossa religião. A liturgia acontece. Ela tem que acontecer, porque ela é imprescindível. Na nossa filosofia, é necessário desligar o espírito do indivíduo” de instrumentos ritualísticos pertencentes a ele, explica.

O sacerdote André Aluize prefere não firmar uma orientação e diz que, caso uma notícia de suicídio em sua comunidade chegasse até ele, seguiria o que fosse determinado pelo jogo de búzios.

“Cada um acaba por fazer à sua maneira. É bem complexo, por conta disso existe um tabu muito grande", aponta o pesquisador e sacerdote, cujo terreiro também integra a nação ketu.

Ele conta ter ficado sabendo de um caso, por volta de 2019, em que foi preciso fazer uma espécie de concílio entre sacerdotes de candomblé para se decidir sobre o axexê de uma pessoa que se matou — e cuja identidade e detalhes ele prefere não compartilhar.

“Foi preciso envolver líderes de outras casas, de outras comunidades, para se discutir o oráculo", relata, afirmando que os sacerdotes jogaram búzios individualmente para depois se chegar a uma decisão coletiva.

"Como em um concílio religioso, chegou-se a uma jogada definitiva. Foi autorizado o procedimento da ritualística do axexê com ressalvas”, diz.

Por exemplo, pessoas importantes para a comunidade podem ser reverenciadas nos chamados assentamentos, locais no terreiro que reúnem inúmeros objetos sacralizados que pertenciam à pessoa e ficam na comunidade em sua memória. No caso relatado por André, a pessoa não pôde ser honrada com um assentamento.

Entretanto, o sociólogo Reginaldo Prandi diz que, nos itãs (mitos iorubás), não há “uma linha” que fale do suicídio.

Por isso, para ele, a rejeição ao suicídio nas religiões afrobrasileiras são resultado da influência do espiritismo e do catolicismo.

“A proibição não vem da origem africana”, afirma.

Na primeira reportagem da série “Suicídio & Fé”, a BBC News Brasil mostrou que, por séculos, o catolicismo proibiu a realização de ritos fúnebres para suicidas, como a missa de sétimo dia. A proibição foi derrubada na década de 1980.

Assim como nas igrejas evangélicas, também de origem cristã, o suicídio foi historicamente encarado no catolicismo como um pecado, por conta da interpretação do mandamento “Não matarás”.

Já no espiritismo, que também cresceu no Brasil sobre uma base cristã, o suicídio é visto como algo que trará consequências — frequentemente penalidades, segundo alguns livros espíritas famosos — no mundo espiritual e em futuras reencarnações.

As religiões afrobrasileiras não têm tantos adeptos no Brasil como as religiões citadas, mas a BBC News Brasil decidiu incluí-las na série de reportagens por sua importância cultural.

De acordo com o Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o candomblé tem 167.363 adeptos no país (0,08% da população) e a umbanda, 407.331 (0,2%).

O candomblé e a umbanda têm várias semelhanças, mas também diferenças — o pesquisador André Aluize explica uma delas.

"O candomblé lida com deidades africanas e a umbanda lida com espíritos desencarnados. A principal divergência entre as duas seria essa: uma [candomblé] é voltada a todo um conhecimento ancestral ligado a pessoas que já existiram, a reis e rainhas, aos nossos ancestrais e antepassados, e a umbanda lidaria com os espíritos de uma forma geral", esclarece Aluize.

Assim, o candomblé tende a se manter mais próximo das práticas africanas, enquanto a umbanda, que inclusive se estruturou mais recentemente, tem mais presente a influência de crenças indígenas, do catolicismo e do espiritismo.

Entretanto, algumas linhas de umbanda se mantiveram mais próximas do candomblé e da matriz africana ou estão se esforçando para resgatar essa origem.

•           E como o suicídio é visto na umbanda?

Com mais adeptos que o candomblé e com uma variedade maior de vertentes, não há notícias de que a umbanda deixe de fazer rituais para pessoas que se matam, segundo entrevistados pela BBC News Brasil.

Mas ainda assim, esse ato é considerado “grave”, diz a mãe Flávia Pinto, matriarca da Casa do Perdão, um terreiro de umbanda em Seropédica, no Rio de Janeiro.

“Houve uma força divina que consagrou a vida. Portanto, não é você que tem o direito de ceifá-la”, diz a ialorixá, também socióloga e autora de vários livros, como Umbanda Religião Brasileira: Guia para leigos e iniciantes.

“Se algo não está indo bem a ponto de você se suicidar, é porque você não está conduzindo bem a sua vida. Então, você deve buscar ajuda.”

Ela conta que, frequentemente, recomenda ajuda psicológica e psiquiátrica às pessoas, embora acredite que nem sempre essa assistência “dá conta” sem um “reforço energético”.

Pinto conta que “inúmeras vezes” já sentiu a presença de espíritos de suicidas em consultas com entidades ou no jogo de búzios.

“Quando você tira o sopro divino por conta própria, você é um espírito condenado a vagar. Porque nós somos reencarnacionistas — tanto pela visão umbandista, quanto indígena e iorubá”, diz, destacando as raízes da umbanda.

"A gente consegue quase sempre detectar se tem um espírito ali perto, tamanho o peso que ele traz. Ele começa a ser um obsessor, um espírito vampirizador, um kiumba [termo da umbanda para um espírito sem luz, ruim] a perturbar aquela pessoa ou a família.”

Ela diz que há também relatos de que o espírito de um suicida acompanha a decomposição do próprio corpo.

Essa crença vai ao encontro de livros espíritas que colocam o suicídio como uma transgressão à lei divina e mencionam vários tipos de punição para os espíritos de pessoas que se mataram, como mostrou a BBC News Brasil em outra reportagem da série “Suicídio & Fé”.

Em O Céu e o Inferno, um dos livros organizados pelo fundador da religião, o francês Allan Kardec (1804-1869), um trecho diz ser comum que espíritos de suicidas sintam vermes corroendo o corpo, embora as consequências do ato variem de "duração e intensidade conforme as circunstâncias atenuantes ou agravantes da falta".

Em Memórias de um suicida, popular livro da médium Yvonne do Amaral Pereira (1900-1984), é detalhada a existência de um “Vale dos Suicidas”, um lugar de extremo sofrimento para os espíritos de quem se matou.

O livro traz também histórias de espíritos de suicidas que tiveram que observar, a partir do plano espiritual, o próprio corpo em decomposição, ou testemunhar parentes em sofrimento por conta da morte.

Segundo o sociólogo Reginaldo Prandi, a ideia de reencarnação na umbanda tem influência do espiritismo, enquanto no candomblé manteve-se mais próximo às origens africanas.

"A ideia do renascimento no candomblé é uma ideia não de que o indivíduo está nascendo [de novo], mas que a sociedade está se refazendo, se reproduzindo. A ideia do renascimento é mais coletivizada", explica o professor emérito da USP.

André Aluize, do grupo de estudos Educaxé, também destaca a influência do espiritismo na visão da umbanda sobre a reencarnação, como a ideia de que alguém reencarna em várias etapas ou vidas.

Há também a influência do catolicismo na ideia de castigo a um espírito que tenha se comportado mal em uma vida passada, diz o pesquisador e candomblecista.

No caso do suicídio, ele diz que a influência do espiritismo pode se manifestar com a crença umbandista em dois cenários diferentes.

"Uma delas seria que esse espírito vai para umbral, que é uma crença kardecista, e vai passar por um tempo lá até a remissão. Outra, é de que esse espírito vai se tornar um egum", aponta Aluize.

"É um espírito zombeteiro, sem orientação, um espírito que estaria entre nós sem a possibilidade de uma evolução — que é proposta dentro de uma visão kardecista."

Já a mãe Flávia Pinto defende que as origens da visão da umbanda sobre o suicídio são muito anteriores ao espiritismo, que ela destaca ter nascido no século 19 na França.

"A umbanda tem muito do kardecismo, mas ela tem uma origem africana e indígena”, argumenta, apontando que essas tradições são milenares.

•           Aumento de suicídios impõe debate para as religiões

O babalorixá Égbé Leandro afirma, no dia a dia, ser “perceptível” uma maior demanda por questões relativas à saúde mental.

"A doença do momento é a doença emocional. Quando eu vou jogar búzios, orientar as pessoas, muitas das vezes o problema está no emocional. E infelizmente as pessoas não têm a consciência da importância da saúde emocional”, diz, apontando que as pessoas têm “vergonha” de procurar ajuda de especialistas.

O babalorixá Alcemir de Odé também destaca a importância da orientação profissional.

“Nossa cabeça, nós chamamos de ori. A nossa ori nos faz muito forte, mas nossa ori faz de nós um fracassado também. Existem algumas cabeças que precisam de ajuda, com psicólogo, psiquiatra...”, afirma.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a ligação entre suicídio e distúrbios mentais — com destaque para a depressão e o alcoolismo — já foi comprovada, embora crises pontuais, como términos de relacionamentos e problemas financeiros, também possam levar a esse ato.

Taxas de suicídio tendem a ser maiores também em cenários de abuso, violência, desastres e vulnerabilidade social — como entre refugiados e migrantes, priosioneiros e pessoas LGBTQIA+.

No Brasil, um estudo publicado na revista científica The Lancet Regional Health Americas mostrou que a taxa anual de suicídios cresceu em média 3,7% ao ano de 2011 a 2022.

O número total de suicídios também cresceu continuamente de 2016 a 2022, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

A psicóloga Karen Scavacini, fundadora do Instituto Vita Alere de Prevenção e Posvenção do Suicídio, diz que, além dos dados, percebe claramente no dia a dia um aumento nas tentativas e mortes por suicídio, “especialmente no período pós-pandêmico”.

E as religiões podem ter um papel importante nesse contexto, para bem ou para mal, ela diz.

“Tem muita pesquisa mostrando como ela [a espiritualidade] é um fator de proteção, um fator forte de proteção. Acho que, quando a gente põe na balança, a espiritualidade tem um fator mais de proteção do que de risco”, afirma Scavacini, apontando que as religiões trazem benefícios como a vida comunitária e o reforço da esperança.

“Porém, e esse é o grande porém, quando ela se torna um fator de risco, também se torna um fator de risco forte", coloca a psicóloga.

Por exemplo, para pessoas que estão pensando em suicídio.

“Vai entrar as questões de pecado, de culpabilização, de falta de reza, de estar possuído... Isso vai ser um fator de risco: pode ser um gatilho, pode ocasionar uma expulsão, um isolamento dessa pessoa da comunidade religiosa", exemplifica.

“E para quem está há pouco tempo de luto [por ter perdido alguém que se matou], que está buscando respostas, uma fala de culpabilização ligada à religião tem um peso muito grande. É uma família que está tentando entender o que aconteceu, que está se culpando. E se ela pensa também que aquele que faleceu ainda está no lugar pior, isso é cruel”, conclui a psicóloga.

O sacerdote e pesquisador André Aluize diz que, justamente pela maior preocupação social com questões de saúde mental, as religiões precisam rediscutir suas tradições — como a orientação de não se fazer axexê para quem se mata, algo sobre o qual ele se mostra aberto a discutir mudanças.

“Por isso a dificuldade de os sacerdotes falarem sobre essas questões de morte, falarem sobre as questões de gênero, porque é como se de uma certa forma você virasse aos mais velhos e dissesse: eu vou fazer desta forma [diferente]. Como se você estivesse descumprindo algo”, diz o pesquisador.

“Não é de forma alguma apologia ao ato em si [suicídio], mas nós não podemos condenar, e nem cabe a nós condenar as pessoas e desconsiderar tudo que elas representaram enquanto estiveram conosco enquanto comunidade. Seria para nós algo muito triste que essa memória se perdesse, que essa contribuição se perdesse.”

 

Fonte: BBC News Brasil

 

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