sábado, 29 de junho de 2024

"Há regime de subcidadania da população LGBTI+ no Brasil", diz Renan Quinalha

Apesar de a mobilização do movimento LGBTI+ ter começado no Brasil nos anos 1970, foi apenas nos últimos 20 anos que direitos civis voltados a essa parcela da população passaram a ser oficialmente reconhecidos pelo Judiciário do país. Entre as conquistas estão o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo (2013), criminalização da homofobia (2019), doação de sangue, adoção homoafetiva e licença-maternidade para mãe não-gestante.

Esses avanços foram reunidos em artigos de especialistas da área, que constam do livro Direitos LGBTI+ no Brasil: Novos rumos da proteção jurídica. Um dos organizadores da obra é o professor de Direito e escritor Renan Quinalha. Ele afirma que a obra propõe uma visão crítica sobre essa conjuntura, pois parte desses direitos civis foi assegurada via decisões judiciais, e não por meio de leis, o que fragiliza essas garantias.

Em 2023, por exemplo, a Câmara dos Deputados debateu um projeto de lei visando proibir o casamento homoafetivo. O livro descreve outras dificuldades nos tribunais e cartórios para fazer valer direitos como o reconhecimento do nome social e da identidade de gênero em documentos oficiais de pessoas trans. "Tem a comemoração, mas ainda há muito a avançar", afirma Quinalha.

Outro problema é a violência. Diante da falta de dados oficiais, o Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil produziu um dossiê sobre o tema: em 2023, houve pelo menos 230 mortes violentas relacionadas à orientação sexual, o que corresponde a uma morte a cada 38 horas. Dessas, 184 foram assassinatos e 18 suicídios. Até abril de 2024, o grupo contabilizou mais 61 óbitos.

LEIA A ENTREVISTA:

•           Por que discutir direitos civis para os LGBTI+ no Brasil?

Renan Quinalha: Em relação a essa ideia de privilégios, eu acho que é muito limitada e não dá conta de entender o que são as reivindicações historicamente colocadas pelo movimento LGBTQIA+. O que se tem na sociedade é um regime de subcidadania dessa população tradicionalmente. Enquanto as pessoas heterossexuais podiam casar, e pessoas cisgênero tinham acesso pleno a sua identidade de gênero, pessoas LGBTQIA+ não tinham acesso a essas dimensões básicas asseguradas da sua orientação sexual e de liberdade de identidade.

Não podiam constituir famílias, não tinham possibilidade de estender o plano de saúde aos companheiros ou companheiras do mesmo sexo, não podiam ter proteção do estado em relação à violência que era feita. Esse regime de subcidadania impunha condições de vida a essa população de pré-igualdade formal das revoluções liberais, quando na luta pelos direitos civis o foco das revoluções liberais foi a tentativa de reduzir o poder do Estado e assegurar o direito à vida e à integridade.

Direitos civis são fundamentais, pois dizem respeito a elementos de cidadania que são basilares para a modernidade, como direito à vida e à integridade física, à privacidade, à intimidade, o direito a não ter uma intervenção do Estado sobre sua vida, é o direito a ter o acesso à justiça. Conceder direitos civis para a população LGBTQIA+ não retira os direitos civis da população heterossexual e cisgênera, não é reivindicação de privilégios de um regime de regulação de direitos especial, mas sim a extensão e a igualdade formal de todos os direitos entre todas as pessoas.

•           Como você avalia a conquista de direitos pela população LBGTI+ no Brasil? Há o que comemorar ou o cenário ainda é incipiente?

Tem algumas decisões já dos anos 1990, nas primeiras instâncias da justiça de reconhecimento, por exemplo, da extensão do plano de saúde e de direitos sucessórios, que foram precursoras das atuais, apesar de algumas terem sido reformadas por instâncias superiores. Mas, nos anos 2000 é que se conseguiu avançar, porque o movimento estava mais organizado e os espaços de poder estavam sendo mais ocupados, com a pulverização na sociedade de maior visibilidade da temática.

Tudo isso ajudou a fazer com que os direitos avançassem nesse período, até por uma judicialização que aconteceu com vários outros movimentos, e o movimento LGBTI+ aproveitou isso e foi ocupando espaços no Judiciário com advogados formados pelo movimento. As entidades do movimento, entendendo a importância de fazer isso, já que havia um bloqueio no Legislativo pela bancada fundamentalista religiosa, foi tendo esse avanço importante no Judiciário, assim como outros movimentos assim fizeram.

•           Boa parte das conquistas de direitos civis ocorreu ao longo dos últimos 20 anos. Quais foram as condições materiais e sociais que favoreceram esses avanços?

Há um processo de conquista e reconhecimento, muito recente ainda, dos direitos para a população LGBTI+ no Brasil. A gente tem a comemoração porque foi uma luta para reconhecer e fazer justiça a essas reivindicações, mas ainda há muito a avançar. Uma pessoa LGBTI+ não vive só do seu direito civil, ela não quer só sobreviver, não ser atacada em sua vida e integridade física, ela quer políticas públicas, direitos sociais e econômicos, culturais, cidadania, moradia, saúde educação, trabalho, renda, precisa de direitos em todas essas dimensões. Isso só uma lei pode fazer, com uma regulamentação mais detalhada. Uma decisão do Supremo é incapaz de fazer isso.

•           Parte dos direitos assegurados à comunidade LGBTI+ ocorreu no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Há mais precariedade na garantia desses direitos?

Há de fato um modo de reconhecimento que passa centralmente pelo sistema de justiça: STF, CNJ, ministérios públicos, defensorias públicas, e isso é muito frágil, e outros países já indicam isso. Os Estados Unidos têm um exemplo recente do direito ao aborto, que estava assegurado há meio século por uma decisão da Suprema Corte. E por conta das nomeações do [ex-presidente] Donald Trump, que mudaram a composição da Corte, o entendimento sobre essa matéria foi alterado e acabou levando a uma revisão e uma revogação desse direito.

Então isso fragiliza as reivindicações, e é preciso que se tenha uma proteção legislativa mais adequada como outros grupos têm no Brasil, a população negra tem uma lei antirracismo, as mulheres têm uma lei antiviolência de gênero, que é a Lei Maria da Penha, a população idosa tem um estatuto de proteção também, a gente tem o Estatuto da Criança e do Adolescente. Há esses diplomas para todos esses segmentos, mas não tem uma lei protetiva, um estatuto antidiscriminatório para a população LGBTI+, inclusive para pensar políticas públicas e marcos normativos que vão além do direito à vida e do direito da integridade física.

É fundamental que se assegure esses direitos por proteção legal, por isso que as eleições legislativas são tão fundamentais para a população LGBTI+, e têm sido um tema importante das paradas e outros espaços, com iniciativas como o Vote LGBT, que sistematizam candidaturas de mais pessoas LGBT pelo país. Isso é fundamental para que a gente consiga dar conta de uma regulação complexa, como tem que ser, para lidar com a vulnerabilização e com a marginalização da população de LGBTI+ nesse cenário.

•           Como o Brasil se insere no debate dos direitos civis para pessoas LGBTI+, na comparação com outros países?

De maneira geral, temos avançado. Em relação ao que está previsto e assegurado em outros países do mundo, estamos numa lista seleta de países, algo em torno de uma dezena, que reconhecem os direitos de cidadania da população LGBTI+, sobretudo os direitos civis de maneira ampla. Agora, isso não se converte na vida das pessoas LGBTI+, de fato, em reconhecimento de direitos e melhora. A violência é muito grande contra nossa população. É fundamental que se consiga avançar nesse aspecto de assegurar os direitos e traduzi-los, efetivá-los, tirar do papel.

Em mais 60 países no mundo há uma criminalização das pessoas do LGBTI+, ou seja, o sarrafo é muito baixo, o nível das discussões no mundo todo ainda está muito baixo. Estamos discutindo garantia do direito à vida à população e não criminalizar a existência das pessoas, deixar que existam no modo como elas são, como elas se percebem e se entendem. Tem uma trajetória muito longa para ser percorrida no mundo todo e no Brasil também, porque o que nós temos de garantia não é seguro, e não é certo que vai se manter e nem que vai ser efetivado: vai depender de mais mobilização e luta política da comunidade para que isso possa acontecer.

 

Fonte: Deutsche Welle

 

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