terça-feira, 4 de junho de 2024

Fora dos holofotes, crise no Sudão gerada pelos EUA tem maior número de refugiados internos do mundo

O Sudão, o terceiro maior país da África, enfrenta a maior crise de deslocamento interno do mundo, com um em cada oito refugiados internamente, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU).

A jornalista e pesquisadora em ciências militares da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), major Gabriela Bernardes, em entrevista aos jornalistas Melina Saad e Marcelo Castilho, do podcast Mundioka, afirma que a crise no Sudão recebe menos atenção do Ocidente comparada a outros conflitos como na Ucrânia ou em Gaza.

Ela sugere que as questões econômicas e geopolíticas influenciam a atenção dada aos conflitos, com a África frequentemente relegada a segundo plano. "A África como um todo acaba tendo as suas dificuldades, as suas crises um pouco relegadas a segundo plano desse cenário internacional.”

"O poder nuclear transformou as relações humanas, as relações entre todos os países. Então, a gente sabe que se não houver cooperação, apesar de todas essas disputas, não tem mundo", refletiu, sublinhando a importância da cooperação internacional para a paz e segurança global.

Bernardes relatou à Sputnik Brasil sua experiência no Comitê Permanente de Cessar-Fogo da Missão Integrada das Nações Unidas de Assistência à Transição no Sudão (UNITAMS, na sigla em inglês).

Ela afirma que a situação no Sudão se deteriorou, com confrontos intensos entre as forças armadas do governo e grupos paramilitares. "O confronto foi de uma forma acima do esperado."

A escalada da violência obrigou a ONU a evacuar seus membros. Seu setor foi o último a sair, obedecendo a protocolos de segurança e gerenciamento de crise.

Durante o conflito, Bernardes e seus colegas enfrentaram falta de luz, água e comida. Eles foram transferidos por aviões de tropas francesas sediadas no Chade, após negociação que permitiu o resgate seguro. "Saímos depois de 13 dias de conflito. Saí de noite, no escuro, passando por postos de bloqueio, de controle, com tropas armadas."

Durante o trabalho, Bernardes atuou como oficial de relatórios, acompanhando reuniões e tratativas relacionadas ao monitoramento do cessar-fogo entre as Forças Armadas Sudanesas (SAF, na sigla em inglês) e grupos armados legalizados pelo Acordo de Paz.

Sua função envolvia a produção de relatórios sobre o andamento da implementação dos acordos de segurança. A pesquisadora destacou a gentileza do povo sudanês, apesar da instabilidade no país. "Eles são um povo muito gentil. Eles são tímidos, mas ao mesmo tempo extremamente gentis."

·        Qual é a situação atual do Sudão?

Desde sua independência em 1956, o território do Sudão tem sido assolado por golpes e guerras civis. O conflito mais recente, iniciado em 2023, é uma luta pelo poder entre as SAF e as Forças de Suporte Rápido (RSF), um grupo paramilitar.

As facções, atualmente, batalham pelo controle do país após período instável de compartilhamento de poder. Tanto as SAF quanto as RSF são acusadas de saques, estupros e assassinatos de civis.

Além disso, a ajuda humanitária é severamente restringida, deixando regiões inteiras sem acesso a suprimentos básicos.

O doutor em estudos estratégicos internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Mamadou al Diallo, define a situação no Sudão como um "genocídio permanente". Segundo ele, o país enfrenta problemas de segurança e violações dos direitos humanos há muito tempo, tanto internamente quanto por forças externas.

Diallo questiona a razão pela qual a ONU só agora reconheceu essa situação, mesmo sendo evidente há muito tempo.

Diallo evita focar em termos étnicos ou religiosos, criticando a narrativa que tenta caracterizar os problemas do Sudão de tal maneira. Para ele, "a questão é uma questão política" que envolve a política doméstica e internacional.

Ele destaca que o país, juntamente com o Congo, estão entre os mais ricos da África, mas também os mais instáveis desde suas independências.

Diallo menciona uma "elite suicida", termo cunhado por Amílcar Cabral, referindo-se à pequena elite africana que, adotando políticas coloniais, contribui para a própria destruição. Ele observa que "essa elite, que supostamente tem uma instrução ocidental, contribui para seu próprio suicídio", exemplificando com o número de golpes de Estado em África desde os anos 1960.

·        Qual é a diferença entre o Sudão e Sudão do Sul?

Definidas sob ótica do Ocidente, as fronteiras do Sudão com Sudão do Sul foram validadas em 2011, a partir de referendo motivado por um conflito que se estendia há 12 anos. Desde a independência em relação ao Reino Unido em 1956, o país vive em crises políticas, que resultaram em guerras civis.

Diallo explica à Sputnik Brasil que a divisão fortaleceu os conflitos ao fragmentar a população e os recursos, aumentando tensões e enfraquecendo os locais economicamente, socialmente e politicamente.

Ele diz que propostas de divisão de Estados africanos muitas vezes têm origem em análises financiadas pelo governo dos Estados Unidos, cujo objetivo é orientar a política externa americana para o continente africano. "A divisão do Sudão não seria possível sem o apoio dos Estados Unidos e dos países ocidentais."

De acordo com ele, o Mali também seria um exemplo de tentativa de divisão influenciada por potências externas, particularmente a França e a ONU.

Para o pesquisador, tais estratégias neocoloniais são ilógicas no contexto de um mundo globalizado, onde a tendência é a integração. Ele explica que o Sudão e o Sudão do Sul são ricos em petróleo e outros recursos minerais, mas esses recursos frequentemente atraem conflitos e intervenções estrangeiras, como o gás de Moçambique.

Por fim, Diallo critica a falta de reconhecimento das complexidades e interconexões dos estados africanos, apontando que se referir ao "Sudão do Norte" e ao "Sudão do Sul" como entidades separadas simplifica uma realidade muito mais complexa.

¨      No Sudão mais de 7,7 milhões de pessoas foram forçadas a migrar

De acordo com os dados mais atuais, mais de 7,7 milhões de pessoas foram forçadas a deixar as suas casas no Sudão, onde a guerra se alastra desde abril de 2023.

Numa declaração escrita, Amy Pope, Diretora-Geral da Organização Internacional para as Migrações (OIM) das Nações Unidas (ONU), apelou à comunidade internacional para acelerar os esforços de financiamento e não ignorar os milhões de civis que são vítimas do conflito que dura há nove meses no Sudão.

Pope afirmou que mais de 7,7 milhões de pessoas foram forçadas a deixar as suas casas no Sudão, desde o dia 15 de abril, devido ao conflito em curso entre o exército e as Forças de Apoio Rápido (RSF).

Amy Pope referiu que 6 milhões de pessoas migraram internamente, enquanto mais de 1,7 milhões de sudaneses fugiram para os países vizinhos: Sudão do Sul, Chade, Etiópia, República Centro-Africana e Líbia.

"É necessário um cessar-fogo no Sudão para que as pessoas possam reconstruir as suas vidas com dignidade. Não podemos virar as costas ao sofrimento de milhões de pessoas afetadas por um conflito tão devastador". O Papa sublinhou que é necessário mais apoio do que nunca para continuar a prestar assistência vital ao Sudão e para garantir uma solução a longo prazo.

A OIM solicitou uma ajuda de 307 milhões de dólares para apoiar 1,2 milhões de pessoas afetadas pelo conflito no Sudão em 2024.

Durante 9 meses, o Sudão foi palco de violentos confrontos entre o exército e as Forças de Apoio Rápido (RSF), lideradas pelo Presidente do Conselho de Soberania, o General Abdel Fattah al-Burhan.

A guerra civil eclodiu em meados de abril, depois de o exército e as RSF terem entrado em desacordo sobre a integração das RSF no exército, no âmbito da reforma militar e de segurança.

Segundo a ONU, mais de 12 mil pessoas perderam a vida e 7,7 milhões de pessoas foram deslocadas.

¨      ONU alerta para situação grave das crianças no Sudão

A Organização das Nações Unidas (ONU) alertou para o facto de a vida das crianças sudanesas estar “em risco” e apelou a “medidas urgentes” para proteger uma geração inteira da subnutrição, da doença e da morte.
O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), a Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Programa Alimentar Mundial (PAM) emitiram uma declaração escrita conjunta sobre a situação no Sudão.

A declaração alerta para o facto de todos os indicadores apontarem para uma “deterioração significativa” do estado nutricional das crianças e das mães no país devastado pela guerra.

Salientando que a vida das crianças está em risco, a declaração chamou a atenção para a necessidade de uma ação urgente para proteger toda uma geração da subnutrição, da doença e da morte.

Na declaração, afirma-se que o país enfrenta também o “risco crescente de fome” decorrente dos conflitos, afirmando-se o seguinte:

“Isto levará a consequências desastrosas, incluindo a perda de vidas, especialmente entre as crianças de tenra idade. A situação das crianças e das mães agravar-se-á se a estação das chuvas começar nos próximos meses, o que isolará as comunidades locais e aumentará as taxas de doença”.

No Sudão, onde a guerra civil dura há mais de um ano, mais de 16.000 pessoas foram mortas, cerca de 8,7 milhões de pessoas estão deslocadas e mais de 25 milhões de pessoas necessitam de assistência humanitária, de acordo com a ONU.

¨      O que está acontecendo no Sudão

Por mais de um ano, a “guerra dos generais” tem assolado o Sudão, um país já enfraquecido. A população está em agonia e a pequena comunidade cristã está diminuindo.

“Eu peço mais uma vez às partes em conflito que cessem esta guerra, que é tão prejudicial para o povo e para o futuro do país. Vamos rezar para que caminhos de paz possam ser encontrados em breve, a fim de construir o futuro do querido Sudão”, implorou o Papa Francisco no Angelus em 18 de fevereiro.

<><> Mas o que está acontecendo no Sudão?

Desde 15 de abril de 2023, houve intensos combates entre o exército sudanês comandado pelo atual presidente de transição, General Abdel Fattah al-Burhan, e as Forças de Apoio Rápido (RSF), um grupo paramilitar liderado pelo vice-presidente, General Mohammed Hamdan Dagalo – pseudônimo Hemedti.

Esses dois protagonistas derrubaram o governo de transição instalado após a remoção do ditador Omar al-Bashir em 2019. Logo em seguida, no entanto, os dois se desentenderam sobre a integração das RSF ao exército regular e a divisão da riqueza do país. O Sudão é o terceiro maior produtor de ouro da África. Hemedti possui várias minas de ouro no norte do país. Al-Burhan, por outro lado, está ligado ao exército. Ele possui muitos prédios e diversos negócios dos quais tem relutado em abrir mão para um governo civil que não controla.

Como nenhum dos beligerantes quer ceder, o futuro parece sombrio. A “guerra dos generais” está causando a morte lenta da população sudanesa. As últimas cifras oficiais mostram mais de 13.900 mortes e 8,1 milhões de pessoas deslocadas, das quais aproximadamente 1,8 milhão estão fora do país. “Dada a intensidade desta guerra, muitas pessoas estão se perguntando como as duas partes têm tantas armas disponíveis após um ano de combates e, portanto, quem as está financiando”, diz Kinga Schierstaedt, coordenadora de projeto da ACN no Sudão. A população está morrendo de fome e sede, enquanto o conflito parece ter sido esquecido por grande parte da comunidade internacional.

<><> Qual o impacto disso para as igrejas

Enquanto isso, a Igreja local está encolhendo. “Antes da guerra, ela representava 5% da população, mas era tolerada e podia administrar alguns hospitais e escolas – mesmo que não fosse permitido proclamar abertamente a Fé”, explica Kinga Schierstadt. A queda de Omar al-Bashir trouxe certas melhorias em termos de liberdade religiosa. As punições de acordo com o código penal da Sharia foram abolidas. Foi nesse estágio que a ACN conseguiu financiar uma máquina de hóstias para a Diocese de El Obeid, o que teria sido impossível nos anos anteriores. Mas essa liberdade recém-descoberta foi breve.

Embora uma minoria, a Igreja sempre foi um “porto seguro” para a população e muitas pessoas naturalmente fugiram para as igrejas no início da guerra. Agora, esse refúgio se tornou frágil. Muitos missionários e comunidades religiosas tiveram que deixar o país, e paróquias, hospitais e escolas encerraram suas atividades. O seminário propedêutico de Cartum, onde os estudantes passam um ano se preparando para sua formação sacerdotal, teve que fechar suas portas. Felizmente alguns seminaristas que conseguiram fugir puderam continuar sua formação na Diocese de Malakal, no país vizinho do Sudão do Sul.

<><> Há esperança em meio a escuridão

O Arcebispo Michael Didi de Cartum estava em Porto Sudão, na costa do Mar Vermelho, quando a guerra começou. Ele não conseguiu retornar à sua cidade, e o Bispo Tombe Trile, da Diocese de El Obeid, teve que se mudar para a catedral, pois sua casa foi parcialmente destruída. Muitos cristãos fugiram a pé ou pelo Nilo e se instalaram em campos de refugiados onde a sobrevivência é uma batalha diária. Hoje, a própria existência da Igreja no Sudão está sendo questionada.

De acordo com projetos da ACN na região, ainda há esperança em meio à escuridão. “Embora seja verdade que a guerra continue, ela não pode extinguir a vida. Dezesseis novos cristãos foram batizados em Porto Sudão durante a Vigília Pascal e 34 adultos foram confirmados em Kosti!”

A Igreja ainda é muito ativa no Sudão do Sul, ajudando os refugiados do norte e auxiliando seminaristas sudaneses a continuar sua formação, graças ao apoio da ACN, entre outros. “Voltando do Sudão do Sul, um país vizinho do Sudão e que compartilha a mesma conferência episcopal, fiquei impressionado. Vi até que ponto certos padres, que também são refugiados, estão usando sua energia para catequizar em sua nova paróquia e apoiar outros refugiados. A Igreja no Sudão do Sul está se preparando para o futuro ajudando os cristãos sudaneses a se prepararem para a paz de amanhã”, conclui Kinga Schierstadt.

 

Fonte: Sputnik Brasil/trt.net/ACN Brasil

 

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