segunda-feira, 3 de junho de 2024

Com canais e diques, cidades no exterior enfrentam enchentes como a de Porto Alegre

Quando perguntados sobre como evitar novas enchentes como a que atingiu Porto Alegre, os especialistas são quase unânimes em dois pontos: prevenção é mais eficiente que a mais complexa e cara das obras de engenharia, mas, se a intervenção é inevitável, o Brasil dispõe de tecnologia e conhecimento suficiente para as obras necessárias.

Presidente da DTA Engenharia, João Acácio Gomes de Oliveira Neto diz que as soluções para enchentes são obras tradicionais de engenharia e o país, segundo ele, tem experiência para realizá-las. Daniel Alassia, coordenador do programa de pós-graduação em engenharia civil da UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), e Mário Mendiondo, coordenador científico do Centro de Estudos e Pesquisas em Desastres (CEPED) da USP, também afirmam que o país conhece e aplica a tecnologia necessária.

Os três apontam que grandes projetos exigem tempo para construção, envolvem custos elevados e exigem estudos aprofundados de viabilidade, de capacidade e de impactos socioambientais. Por isso, ações preventivas acabam muitas vezes sendo a melhor alternativa sempre que possível.

Especialista em hidráulica e engenharia ambiental, o engenheiro Rodrigo Freire de Macedo construiu carreira internacional com obras de usinas hidrelétricas e atualmente vive em Montreal, no Canadá. Em sua experiência profissional, atuou em obras de contenção de enchentes no Brasil e na América do Norte.

Ele alerta para as dificuldades para o planejamento de grandes obras de engenharia. O tempo para que sejam construídas, o alto custo das intervenções e a necessidade de fazer projeções de longo prazo para que não se tornem rapidamente obsoletas. Por isso mesmo, as medidas preventivas como respeitar as várzeas dos rios e evitar que fiquem assoreados são essenciais. "A solução mais econômica é sempre a prevenção", diz.

O engenheiro destaca as mudanças do clima como um ingrediente a mais de dificuldade. Os eventos climáticos extremos que atingem o planeta nos últimos anos, segundo ele, dificultam a elaboração de projeções, porque diminuem a importância de séries históricas para a análise.

Sobre a capacidade tecnológica, ele cita obras feitas em São Paulo, por exemplo, como tão importantes e eficientes quanto outras construídas em países como os Estados Unidos. As barragens e reservatórios --como a barragem e eclusa da Penha, na zona leste da capital paulista--, os reservatórios de retenção, como os chamados piscinões, e a canalização para aumentar a capacidade e a velocidade de escoamento de rios são alguns exemplos.

Construída em 2013, a barragem torna o rio Tietê navegável em sua área urbana por controlar o fluxo de água nele. A construção faz parte de um projeto que tornaria a região metropolitana da capital paulista interligada por hidrovias. Os piscinões e diferentes tipos de canalização de rios, inclusive com a cobertura completa deles, tornaram-se obras comuns e são alvo de críticas pelos seus altos impactos urbano e ambiental.

Macedo evita comparar as obras necessárias para a realidade gaúcha com o exemplo mais comum de controle das águas, a Holanda. Para ele, a diferença na origem do problema exige uma análise diferente.

No caso europeu, o risco de inundação é causado pelo fato de as cidades estarem abaixo do nível do mar e o risco é invasão pela maré. No caso gaúcho, o risco é provocado pelo excesso de chuvas, que provoca sobrecarga nos rios.

Em Nova Jersey, os estragos provocados pelo furacão Sandy, em 2012, levaram as autoridades a criarem um novo sistema de proteção ao longo do rio Hackensack. A alternativa inclui a instalação de bombas de alta potência para evitar as cheias, além do aprimoramento da rede de canais de escoamento.

O mesmo furacão provocou um plano de resiliência costeira em Nova Jersey e Nova York, que inclui barreiras contra inundações, diques, aterros e portões de contenção. Este projeto chama a atenção também pelo valor investido, US$ 52,6 bilhões. Também na costa leste, Norfolk, na Virgínia, está investindo US$ 2,6 bilhões em um plano contra grandes inundações que inclui portões de maré, diques, estações de bombeamento.

Após o furacão Katrina, em 2005, Nova Orleans também foi obrigada a aprimorar o seu sistema de proteção, com bombas, comportas e uma muralha. Assim como aconteceu com Porto Alegre, a cidade tinha um sistema de proteção contra as enchentes do rio Mississippi com quase um século de criação, que se mostrou falho para a realidade atual.

Na costa oeste, Sacramento, da Califórnia, também conta com um conjunto histórico de contenção das cheias. Com as primeiras obras ainda no século 19, o projeto passou por diversas atualizações ao longo do século 20. A última grande obra é de 2020. O sistema é formado por canais de desvio, que criam afluentes e açudes para controlar o volume de água do rio.

 

•        Além do RS, outros lugares do mundo enfrentam estragos causados por chuvas

Além dos estragos causados pelas chuvas no Rio Grande do Sul, outros lugares do mundo, como Quênia, Arábia Saudita e Emirados Árabes, enfrentam condições meteorológicas severas.

<><> O que aconteceu

No Quênia, ao menos 188 pessoas morreram pelas chuvas torrenciais desde março. Os números foram divulgados pelo governo nesta quinta-feira (2), e 165 mil foram obrigados a abandonar suas casas. O Quênia e outros países do leste da África passam por chuvas mais intensas que o habitual devido aos efeitos do fenômeno El Niño.

Na Tanzânia, ao menos 155 pessoas morreram nos últimos dias. Inundações e deslizamentos de terra atingiram a região.

Os Emirados Árabes Unidos têm sofrido com temporais desde abril, que afetaram sua receita petrolífera. As chuvas também chegaram esta semana a partes da Arábia Saudita, país vizinho, e causaram devastação: carros submersos, população ilhada, estradas bloqueadas e aulas suspensas.

Evacuações obrigatórias foram ordenadas nem locais do Texas, nos Estados Unidos.

Pelo menos quatro pessoas morreram e mais de 110.000 foram evacuadas em Guangdong, no sul da China. Três pessoas morreram na cidade de Zhaoqing e um socorrista morreu na cidade de Shaoguan. Em Guangzhou, capital da província, foi registrado um acumulado de 600 mm do dia 1º a 23 de abril, a precipitação mensal mais elevada desde que os registos começaram, em 1959. As informações são do jornal The Guardian.

 

•        De Porto Alegre a Barcelona: transformar as cidades para conviver com as mudanças climáticas: Por Vanessa Marx

 

Este artigo aborda a necessidade de transformar a forma de planejar as cidades, tanto do Norte como do Sul global, devido às alterações das temperaturas do planeta e as mudanças climáticas que impactam diretamente a vida nas cidades. A reflexão propõe contribuir a partir do experienciar a cidade de Barcelona, na Espanha, durante um período de pesquisa no bairro Poblenou.

Em abril deste ano, Barcelona estava com suas reservas de água para abastecimento em situação limite, devido à falta de chuvas. Os espaços públicos deram lugar a uma campanha com cartazes sobre a necessidade de economizar água. Os espaços privados também, com alertas sobre a necessidade de racionar água.

Em Barcelona, depois do contexto pandêmico, a preocupação com o tema ambiental e o investimento em espaços verdes e abertos na cidade tornou-se um ponto importante da agenda do poder local. A necessidade de preservação de espaços verdes, parques, praças e jardins e até pequenos espaços, como terrenos, ruelas e hortas urbanas, mantidos por comunidades e moradores do bairro, tem sido uma pauta importante na cidade.

Em termos mais estruturais, houve uma aposta pela alteração do desenho urbano em alguns pontos da cidade, onde o poder local vinha investindo no desenvolvimento das “Superillas” (Superquadras - Eixos Verdes), incentivando o uso do espaço público por pedestres colocando nestes locais mais verde e equipamentos públicos, evitando a circulação de automóveis nestas zonas da cidade. Ainda falta mais verde na paisagem urbana, pois existem muitas praças secas na cidade, mas a vida comunitária e o grande uso pela população de espaços abertos possivelmente impulsionará ainda mais novas transformações nos bairros.

Por outro lado, no mês de maio, Porto Alegre, região metropolitana e o Rio Grande do Sul como um todo enfrentam o maior desastre socioambiental de sua história devido ao enorme volume de chuvas no Sul do Brasil. A maioria dos municípios do estado e da capital, Porto Alegre, colapsaram. O volume de águas ultrapassou a inundação de 1941. Os mortos e desaparecidos aumentam a cada dia, com pessoas perdendo suas casas, lares e histórias de vida.

As cidades tomadas pelas águas dos rios no Rio Grande do Sul são o retrato de uma tragédia anunciada. Em 2023, os moradores da cidade de Porto Alegre já haviam sofrido com inundações e chuvas que deixaram várias partes da cidade sem comunicação, com falta de luz, água e internet. As árvores caídas nas ruas e avenidas eram um retrato e, ao mesmo tempo, um aviso de que ninguém controlaria a natureza, mas que poderíamos evitar a sua destruição.

A partir do ocorrido nos perguntamos: o que foi feito desde 2023 para evitar a tragédia ocorrida em 2024? A impressão de que isso não era prioridade ficou evidente frente ao desejo de edificar e construir na cidade. Houve um descaso e uma falta de atenção do governo municipal e estadual, pois o momento era grave e necessitava medidas emergenciais: modernização do sistema de segurança dos rios e monitoramento da altura da água, com uma postura mais propositiva para minimizar os danos, desenvolvendo políticas públicas para as mudanças climáticas.

Podemos somar a isso a precariedade de prestação dos serviços públicos. A cada tempestade a população sofria com a falta de luz e água e, por isso, alguns movimentos sociais e coletivos reivindicam a necessidade de reestatização dos serviços que foram privatizados.

O Observatório das Metrópoles (OM) – Núcleo Porto Alegre vem produzindo artigos alertando sobre a situação das mudanças climáticas em Porto Alegre. Em dezembro de 2023, o artigo Calor extremo e planejamento urbano, como enfrentar a crise climática trouxe reflexões e alertas importantes sobre o futuro. Este artigo me fez refletir muito de que não teríamos caminho de volta, que em curto prazo necessitaríamos pautar com mais seriedade o tema e elaborar políticas públicas para conviver com os desastres ambientais, inclusive incidir na revisão do plano diretor que está acontecendo neste momento, no qual este tema sequer é considerado.

Necessitamos de uma alteração dos regimes urbanos para proteção do meio ambiente, dos bens comuns e das Áreas de Preservação Ambiental (APPs), que estão ameaçadas em muitas cidades pela vontade desenfreada de construir e edificar em áreas de risco, cortando árvores, destruindo espaços verdade e gerando impacto ambiental.

Do ponto de vista internacional Porto Alegre, nos anos 2000, era retratada pela imprensa internacional como sede do altermundialismo, com o Fórum Social Mundial. Passados 20 anos, o mundo volta a olhar Porto Alegre como a cidade que sofreu um dos maiores desastres ambientais do Brasil e que dispara um alerta para o mundo. Um ciclo se fecha e esperamos que um novo ciclo se abra com mais esperança e sustentabilidade para as futuras gerações.

Ressaltamos aqui a importância e a contribuição fundamental da universidade pública no processo de ajuda e difusão do conhecimento.  Pudemos ver durante este processo que a ciência tem estado a serviço da população transmitindo informações em tempo real das zonas afetadas e da necessidade de evacuação das pessoas e famílias dos bairros e cidades.

Este cenário nos impulsionará a pensar o urbano e o ambiental de forma conjunta, esta dissociação não será mais possível. Em Porto Alegre, podemos começar verificando como os Grandes Projetos Urbanos vem impactando no meio ambiente e observar o cumprimento das contrapartidas dos projetos especiais, principalmente em locais onde era exigido drenagem do território.

Porto Alegre e o Rio Grande do Sul deverão preparar-se para um tempo de reconstrução, pois o desastre não é somente ambiental, mas também social e político. Esperamos que esta reconstrução seja inspirada na solidariedade e na força do voluntariado, que tem sido incansável em salvar vidas e amenizar a dor dos que perderam tudo. Necessitamos de outra forma de fazer política, tanto em nível local como estadual, onde a vida humana e a preservação da natureza sejam prioridade nos próximos anos.

Em relação ao planejamento urbano pós-catástrofe, será fundamental que as cidades sejam pensadas de outra maneira, com a participação dos afetados pela enchente. A escuta será fundamental para incorporar a diversidade da população, priorizando os mais vulneráveis, levando em consideração classe, gênero e raça.

Estamos sendo desafiados a pensar coletivamente em como enfrentar as catástrofes ambientais geradas pela ação humana em diversas cidades do mundo, pois a percepção é de que a forma como vivemos até agora se esgotou.

 

Fonte: FolhaPress/UOL/Brasil de Fato

 

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