Philipp Lichterbeck: O Rio Grande do Sul é
um sinal de alerta vermelho
Não é mais possível
fechar os olhos: os efeitos das mudanças climáticas estão por todos os lados,
não só no estado gaúcho. Quem ainda nega isso ou fica passível, age
criminosamente.Quem pensa que as enchentes no Rio Grande do Sul são um fenômeno
extraordinário isolado se engana. Há poucos dias uma forte chuva inundou o
estado alemão do Sarre. Em alguns lugares caíram mais de 100 litros de água por
metro quadrado em menos de 24 horas.
Em abril, as cidades
de Abu Dhabi e Dubai foram atingidas por fortes chuvas. Em Abu Dhabi, as
autoridades disseram terem caído 254 litros de água por metro quadrado. Em
Dubai foram 142 litros por metro quadrado num único dia (a média anual é de
94,7 litros por metro quadrado), teve granizo e tempestade, e o aeroporto local
(um dos mais frequentados do mundo) foi fechado.
Também no mês passado,
cheias alagaram grandes áreas da África Oriental. Só no Quênia, tempestades e
deslizamentos de terra custaram mais de 200 vidas. Dezenas de milhares de
pessoas perderam suas casas, e muito mais de 200 mil ainda sofrem com as consequências:
estradas, pontes, redes de energia elétrica e de água destruídas, terras
agrícolas inutilizáveis.
No Paquistão e no
Afeganistão, ao menos 135 pessoas perderam a vida em cheias e deslizamentos de
terra em abril. As tempestades duraram vários dias. No Afeganistão, a situação
foi agravada por uma seca que havia deixado o solo duro e incapaz de absorver tanta
água.
No Paquistão, os
níveis de precipitação já estão acima da média anual histórica. O Paquistão é a
quinta nação mais populosa do mundo e uma das mais vulneráveis às mudanças
climáticas. Em 2022, um terço do país já estava sofrendo com enchentes sem
precedentes. Mais de 33 milhões de pessoas foram afetadas, e 1.700 perderam
suas vidas.
Também a China foi
atingida por fortes chuvas em abril. Embora essas chuvas não sejam incomuns em
algumas regiões do país, este ano elas foram muito mais intensas e ocorreram
muito mais cedo do que o normal. O relato do jornal estatal Guangzhou Daily é de
“uma enchente que só ocorre a cada 50 anos”. Chuvas fortes não são incomuns em
algumas regiões da China, mas este ano as chuvas foram muito mais intensas e
ocorreram muito mais cedo do que o normal.
De acordo com
especialistas, o número de enchentes na China vai aumentar significativamente.
Já no verão passado, a capital, Pequim, foi atingida pelas chuvas mais intensas
dos últimos 140 anos.
Brasil, Alemanha,
Dubai, Quênia, Paquistão, China: os relatos se parecem, e um recorde de
precipitações é quebrado após o outro.
• Em outros lugares, a seca
O outro lado da moeda
são as secas, que também estão aumentando em todo o mundo. Grandes partes do
norte e do oeste da China estão passando por ondas de calor excepcionais. Assim
como o centro-oeste do Brasil, com seus muitos campos de soja e milho, que está
sendo cada vez mais afetado pela seca. No ano passado, até mesmo a Bacia
Amazônica, que na verdade é a região mais rica em água do planeta, foi atingida
pela pior seca desde o início dos registros. Em alguns lugares, o enorme rio
Amazonas mais parecia um riacho.
Na Alemanha, há um
déficit de quase 10 bilhões de toneladas de água este ano devido às secas dos
últimos anos, de acordo com os cientistas. E a região espanhola da Catalunha
chegou a declarar emergência hídrica no início do ano. O consumo de água foi
drasticamente limitado: cada cidadão pode consumir no máximo 200 litros por
dia. O governo regional da Catalunha afirmou que se trata da pior seca desde
que os registros começaram a ser feitos.
• Mudanças climáticas já começaram
Por que apresento essa
lista, que poderia ter saído de um filme de catástrofe? Para mostrar que não é
mais possível fechar os olhos: as mudanças climáticas já começaram e estão
ganhando velocidade. Diminuir essa velocidade deve ser a meta de todas as ações
políticas e econômicas.
A velocidade com que a
Terra está se aquecendo deve ser reduzida, e as consequências da mudança que já
está em andamento devem ser identificadas e minimizadas. Os políticos que
duvidam disso, os líderes empresariais, os podcasters e outros influenciadores
que se recusam a reconhecer esse fato deveriam ser afastados do cargo,
substituídos e isolados, pois sua ignorância e oportunismo causam danos
consideráveis a todos.
Infelizmente, vivemos
numa sociedade muito imediatista, na qual muitas pessoas (incluindo um número
alarmante de políticos brasileiros) não conseguem entender questões complexas.
A única relação que conseguem estabelecer é entre uma suposta causa e o seu
efeito imediato.
Um exemplo emblemático
disso é o vereador Sandro Fantinel, de Caxias do Sul, que só poderia mesmo
pertencer ao partido de extrema direita PL e que quer agora apresentar um
projeto de lei para desmatar encostas ao longo de estradas no Rio Grande do
Sul, pois afirma que o peso das árvores é o responsável por deslizamentos de
terra. Ele também quer abolir leis ambientais “extremas” que impedem o
desenvolvimento econômico. As gerações futuras vão amaldiçoar homens como esse,
que são parte do problema e não da solução.
• A sociedade que não reage sucumbe
Encontrar respostas
rápidas para as mudanças climáticas não é uma questão de moral ou orientação
política, mas do tamanho dos custos. E não apenas os financeiros, mas sobretudo
os sociais. Algumas regiões vão se tornar inabitáveis. Ou porque nelas haverá
pouca água, ou porque muita água estará caindo num tempo muito curto, como
aconteceu agora no Rio Grande do Sul. Ou porque o mar vai tomar conta de cada
vez mais faixas costeiras. Os lugares próximos à costa, onde os preços dos
imóveis são altos hoje, não valerão nada no futuro. A humanidade, mais uma vez,
vai se pôr em movimento.
A Terra, no fim das
contas, não se importa com o que a humanidade faz. A natureza não tem
consciência, ela reage. Portanto, nada do que fazemos é para o bem da Terra ou
do meio ambiente, como muitos, especialmente políticos de direita ou líderes
empresariais, gostam de dizer. O que fazemos é única e exclusivamente para o
nosso próprio bem. A Terra sobreviverá à humanidade garantidamente.
Há um estudo do
historiador Jared Diamond sobre os motivos pelos quais até mesmo civilizações
altamente desenvolvidas sucumbiram ao longo da história. Quase sempre os
fatores ambientais desempenharam um papel importante, e Diamond identificou
alguns fatores, entre eles a extensão de danos ambientais, a extensão das
mudanças climáticas e a maneira como uma sociedade reage a essas mudanças e
ameaças. Se ela não reage, por exemplo por motivos religiosos ou de poder
político ou porque não quer mudar e prefere se agarrar ao antigo com todas as
suas forças, ela acaba por sucumbir.
• Destruição da natureza e especulação
imobiliária. Por Igor Felippe Santos
A tragédia no Rio
Grande do Sul com as enchentes e alagamentos atingiu 2,3 milhões de pessoas. A
cada 10 gaúchos, dois sofrem com o impacto das chuvas. Milhares tiveram suas
casas, móveis, eletrodomésticos, livros e memórias destruídos. Morreram 163
pessoas e 88 ainda estão desaparecidas. As cidades atingidas chegaram a 463
(93% do total). Cerca de 180 mil pontos estão sem energia elétrica.
Essa é a fotografia do
desastre vivido pelo povo gaúcho com as fortes chuvas, que tiveram seus
primeiros registros no final de maio, com alertas para os riscos da onda de
calor no centro do país, que canalizava a umidade para o sul. Uma tragédia
dessa magnitude não é apenas um acidente natural, como alguns querem fazer
crer, mas consequência de um modelo de desenvolvimento econômico, do processo
político-institucional e da forma de exploração dos recursos da natureza.
A razão estrutural é a
fase neoliberal do modo de produção capitalista no mundo e no Brasil, que
intensifica as mudanças climáticas. Os desdobramentos desse sistema são a
destruição da natureza com o consumo acelerado de energia e o avanço do modelo
do agronegócio, a especulação imobiliária nas grandes metrópoles, a
flexibilização da legislação urbana e ambiental por governos e pelos
parlamentos, em todas as esferas.
A questão central da
crise climática é a lógica da reprodução ampliada do capital, que precisa se
expandir de forma acelerada e contínua para a reprodução do sistema, como tem
apontado o professor do Departamento de História da Unicamp, Luiz Marques, autor
do premiado livro Capitalismo e colapso ambiental.
As principais razões
para as mudanças climáticas, a expansão da queima de combustíveis fósseis para
sustentar a matriz energética e do desmatamento para a ampliação das fronteiras
agrícolas para a globalização do sistema alimentar, fazem parte dessa dinâmica
do capitalismo.
Por isso, o modo de
produção capitalista não tem condições de colocar um limite nessas atividades
para efetivamente restringir a acelerada exploração dos recursos naturais e a
emissão de um volume estratosférico de gases de efeito estufa jogados na atmosfera,
que ameaçam a vida da humanidade.
• Destruição da natureza
Os números da expansão
do agronegócio no Rio Grande do Sul evidenciam a marcha da destruição que está
em curso. Em menos de 40 anos, a agropecuária absorveu 12,41% do território do
estado para as suas atividades, de acordo com dados do Mapbiomas.
A área do agronegócio
cresceu de 34,8% (1985) para quase metade (47,22%) em 2022 no estado. Uma área
de 35 mil km², ocupada anteriormente por campos, banhados e florestas, foi
substituída por plantios e pastagens. Somente a área de campos, banhados e áreas
rochosas perdeu 30% para, sobretudo, as pastagens e a monocultura de soja e
milho.
A monocultura da soja
aumentou em cinco vezes no período, passando de 13,6 mil km² em 1985 para 63,5
mil km² em 2022, de acordo com o Mapbiomas, que considera o número subestimado.
O governo gaúcho, por sua vez, estima que o plantio de soja em 2023 superou 84
mil km².
• Especulação imobiliária
A dinâmica do capital
nas cidades – com a expansão das empresas da construção civil, empresas
imobiliárias, especuladores de terrenos e fundos de investimento, responsáveis
pela especulação imobiliária –, também está na raiz da tragédia.
Metrópoles como Porto
Alegre sofrem e sucumbem à pressão do capital imobiliário por uma generalizada
desorganização do território, com a desestruturação das políticas de
planejamento urbano. De 1960 para cá, a capital gaúcha passou por um processo
de crescimento urbano e aumento da densidade populacional. Nesse período, a
população da cidade duplicou, passando de 600 mil habitantes para 1,3 milhão.
Os impactos negativos
para o conjunto da população e para a infraestrutura urbana se aprofundaram com
a aplicação das políticas neoliberais no município, com a flexibilização do
planejamento urbano (o chamado Plano Diretor), as restrições fiscais para
adequação da infraestrutura e as privatizações de órgãos, estruturas e serviços
públicos.
• Falência das instituições
Diante da pressão do
grande capital, governos, parlamentos e Judiciário, nas diversas esferas, se
submeteram e criaram uma “institucionalidade” para viabilizar a expansão do
projeto das grandes empresas no campo e nas cidades.
O governo federal tem
sustentado o crescimento do agronegócio desde o começo dos anos 2000. O país
passou por um processo de desindustrialização, enquanto o modelo de produção
agrícola em monocultura com utilização excessiva de agrotóxicos para exportação
de commodities se tornou pilar da economia dependente do mercado externo.
O investimento do
governo federal no agronegócio subiu de R$ 59 bilhões em 2002/2003 para R$
256,5 bilhões em 2015/2016, em valores corrigidos pela calculadora do Banco
Central. Foi um aumento de 335%. Assim, o Estado brasileiro tem financiado a
substituição da vegetação nativa, fundamental para controlar as mudanças de
temperatura com a crise climática, pela produção de soja, açúcar, milho,
celulose e pastagens para a pecuária.
O Congresso Nacional
fez uma ofensiva para flexibilizar a legislação ambiental e limpar o terreno
para a expansão do agronegócio. As mudanças no Código Florestal, aprovadas em
2012, por exemplo, desmontaram os marcos regulatórios da preservação da vegetação
nativa. Levantamento publicado pelo jornal O Globo estimou que ao menos 11 leis
aprovadas reduziram a proteção ambiental nos últimos anos.
Na esfera estadual,
480 normas do Código Ambiental do Rio Grande do Sul foram alteradas em 2020, no
começo da gestão do governador Eduardo Leite. O desmonte das leis estaduais de
proteção ambiental foram aprovadas pela Assembleia Legislativa do estado e sancionadas
pelo governador.
A irresponsabilidade
com a população das autoridades locais, o governador Eduardo Leite (PSDB) e o
prefeito Sebastião Melo (PMDB), é evidente pelas suas próprias declarações e
pelos estudos de órgãos que administram, que anunciavam a tragédia que destruiu
casas, pertences e parte da história de milhares de pessoas.
A tragédia no Rio
Grande do Sul tem responsáveis que precisam ser apontados para que sejam
enfrentadas as causas da crise climática, que ameaça a população em centenas de
cidades e a vida da humanidade. O modelo de produção capitalista, com a
necessidade de expandir permanentemente, não tem como se adaptar ao imperativo
da mudança da forma de organização e produção da sociedade. Que não seja
necessário esperar mais um desastre de grandes dimensões.
Fonte: Deutsche
Welle/A Terra é Redonda
Nenhum comentário:
Postar um comentário