sexta-feira, 31 de maio de 2024

Os sul-africanos que ainda vivem sob 'apartheid econômico' 30 anos após fim da segregação racial

O quarto de Jameelah já foi um necrotério; o de Faldilah, um banheiro; e o de Bevil, o consultório médico que ele visitava para receber seu remédio contra o diabetes.

Eles ocuparam um hospital abandonado na Cidade do Cabo, na África do Sul. Foi um protesto contra o que eles consideram ser falha do governo, por não oferecer moradias à população a custos acessíveis.

O fim do apartheid no país trouxe liberdade e direitos políticos para todos. Mas, às vésperas da sétima eleição democrática da África do Sul, a desigualdade persiste em dividir o país.

Em muitos aspectos, a política habitacional do partido do governo, o Congresso Nacional Africano (CNA), reforçou inadvertidamente a geografia do apartheid, em vez de combatê-la.

Ativistas pertencentes a um movimento chamado Reconquiste a Cidade ocuparam o Hospital Woodstock na calada da noite, sete anos atrás.

Seu objetivo foi ocupar imóveis perto do centro da cidade, segundo um dos líderes do movimento, Bevil Lucas.

O acesso a empregos e serviços é fundamental para corrigir os erros causados pela segregação.

"Uma nova forma de apartheid econômico" substituiu as leis racistas que mantinham os negros e as pessoas de cor (como são chamados os cidadãos sul-africanos com herança racial mista) presos na pobreza em bairros distantes da Cidade do Cabo, declarou Lucas à BBC.

"Os pobres e vulneráveis em geral foram empurrados para a periferia da cidade", ele conta. Agora, eles têm o direito de se mudar, mas não conseguem pagar os altos valores de aluguel exigidos pelos incorporadores de imóveis no centro da cidade.

Para Jameelah Davids, a localização era tudo.

"Eu me mudei para cá por causa do meu filho, que é autista", ela conta. "Ele frequenta a escola que fica na esquina. Era muito perto para ele. Tudo está ali. E ele evoluiu."

Ela instalou sua família no antigo escritório do necrotério do hospital.

Outra moradora, Faldilah Petersen, mostrou como ela transformou o banheiro do hospital na sua casa. O cubículo do toalete passou a ser a cozinha e a área do lavatório, o quarto de dormir.

"Fui despejada cerca de 10 vezes em um ano", ela conta. "Mas morar nesta ocupação me deu a oportunidade de melhorar minha vida."

"Tenho mais liberdade de fazer o que preciso e também fico muito mais perto da cidade. É como um retorno ao lar."

As autoridades municipais concordam que o local pode ser reformado para fins residenciais, mas afirmam que os atuais moradores são ocupantes ilegais, que precisam sair antes que comecem as reformas.

·        'A área urbana mais segregada do planeta'

O CNA chegou ao poder 30 anos atrás, com a Carta da Liberdade que prometeu moradia para uma população que foi privada de lares seguros e confortáveis, devido ao apartheid. Desde então, o governo construiu mais de três milhões de casas, concedendo sua propriedade gratuitamente ou alugando abaixo dos preços de mercado.

Mas a lista de pessoas em busca de casas do governo ainda é longa. Davids espera há cerca de 30 anos, enquanto Petersen está na lista há ainda mais tempo.

E a maioria das casas foi construída longe do centro da cidade, onde os terrenos são mais baratos. Com isso, o governo deixou de reverter o planejamento urbano do apartheid, que perpetuava as desigualdades.

A Cidade do Cabo é o exemplo mais típico deste processo, segundo o pesquisador de políticas urbanas Nick Budlender. Ele afirma que a cidade "provavelmente é a área urbana mais segregada do planeta".

A região foi o ponto de entrada dos colonizadores. Foi assim que eles projetaram a cidade, segundo o pesquisador, e reverter esta situação exigiria intervenções estatais criteriosas.

Mas, "desde o fim do apartheid, nenhuma unidade habitacional com custo acessível foi construída no centro da Cidade do Cabo", afirma Budlender.

Ele me oferece um tour pelos estacionamentos que guardam veículos governamentais, alguns deles apenas acumulando poeira. Esses terrenos são alvo dos ativistas, já que são terrenos públicos disponíveis que poderiam ser transformados em residências para pessoas de baixa renda.

"Usar um terreno no centro da cidade que sofre com essa séria crise de segregação para armazenar veículos, em vez de oferecer casas... não faz sentido do ponto de vista de ninguém", destaca Budlender.

Existem sinais de uma nova abordagem. O governo da província, liderado pelo partido Aliança Democrática (AD), está construindo um modelo de "moradia melhor" em terras do Estado, perto dos empregos e serviços da cidade.

Foi criado o projeto do Parque Conradie – por acaso, também no local de um antigo hospital. A primeira fase oferece um conjunto de opções subsidiadas e outras com valor de mercado, enquanto a segunda fase do projeto está em construção.

O Ministro da Infraestrutura Provincial, Tertuis Simmers, reconhece os atrasos que levaram 600 mil pessoas a aguardar sua moradia. Ele afirma que existem planos "ambiciosos" de construir 29 projetos similares de moradia social.

Mas o orçamento é pequeno. O ministro está buscando parcerias com o setor privado e não há prazos de conclusão definidos.

·        Desilusão

As dificuldades de moradia costumam ser um tema importante durante as eleições, mas vêm perdendo destaque entre as prioridades políticas. O manifesto da AD, que é o partido de oposição oficial em nível nacional, não menciona especificamente a habitação – e o mesmo ocorre com os outros partidos.

Nas ruas estreitas do bairro de Khayelitsha, na Cidade do Cabo, existe pouca esperança no futuro. Muitos moradores dos inúmeros barracos de ferro corrugado espalhados pelo bairro saem de casa antes do amanhecer para ir à cidade trabalhar, da mesma forma que faziam seus pais e até seus avós.

A distância é de cerca de 30 km e os micro-ônibus, táxis e trens que eles usam são caros, não confiáveis e, muitas vezes, inseguros.

Noliyema Tetakome morou ali pela maior parte dos seus 49 anos. Ela consegue água na torneira comunitária no final do beco onde mora e usa as latrinas públicas.

Ela é jardineira e gasta um quarto do seu magro salário com o transporte até o seu local de trabalho. Alguns dos seus vizinhos gastam até a metade dos seus salários – e ela não espera que a eleição vá mudar esta situação.

Tetakome depositou seu voto em todas as eleições até aqui, mas "não faz nenhuma diferença", segundo ela.

Desta vez, ela afirma que "não irá votar", inclinando-se para frente na cadeira para dar mais ênfase. "Porque estou cansada. Porque eu já votei, mas não vi mudanças. Ainda estou aqui!"

Sua principal preocupação são as chuvas de inverno que estão chegando e devem inundar novamente o seu barraco.

A desilusão com o partido do governo, o CNA, indica que o partido da liberdade pode perder, pela primeira vez, a maioria absoluta com que governa o país desde a eleição de Nelson Mandela, em 1994.

O terceiro maior partido da África do Sul, os Combatentes da Liberdade Econômica (CLE), questiona o que ele chama de décadas de fracasso do CNA no fornecimento de um "plano de resgate" radical, para redistribuir a maior parte da renda que ainda se encontra nas mãos de uma pequena minoria.

E um novo partido, chamado Rise Mzansi, também explora as divisões que continuam existindo na Cidade do Cabo.

"Acreditamos que os sul-africanos deveriam poder morar mais perto dos seus locais de trabalho", afirmou recentemente o líder nacional do partido, Songezo Zibi, em uma visita de campanha. Ele acusa a AD e o CNA de não elaborarem o tipo de planejamento urbano necessário para a cidade, que se encontra em rápido crescimento.

O Rise Mzansi ainda não foi observado em ação, mas o partido chega sem a bagagem do mau uso do poder que marca o CNA e a corrupção generalizada que obscureceu suas décadas no governo.

"Os poderes existentes estão muito associados ao poderio imobiliário", afirma Lucas. Ele conversa comigo empoleirado na cama instalada nas suas apertadas instalações, que ocupam a mesma sala onde ele costumava consultar seu médico.

Ex-ativista antiapartheid que nunca deixou de defender a justiça social, Lucas explica que está decepcionado com o resultado das lutas. Mas ele insiste que o futuro ainda oferece possibilidades.

Para ele, "como é uma eleição, há esperança, o que não existia no antigo regime".

Lucas ainda espera que as autoridades políticas atendam à escala de necessidades sociais que permanece como legado do apartheid.

"Se não houver atendimento adequado", explica ele, "poderá haver convulsão social – e convulsão social significativa. O que as pessoas têm a perder quando já estão sem teto, quando não conseguem ter abrigo?"

 

¨      As categorias raciais do apartheid que ainda são usadas oficialmente na África do Sul

A acusação de fraude contra o professor Glen Snyman por marcar a alternativa "sul-africano" em uma seleção para um emprego em 2017 jogou luz sobre o problema atual da África do Sul com a classificação racial. Snyman havia sido definido pelo governo como "mestiço" (que significa "herança racial mista").

A Lei de Registro da População, a pedra angular da política de apartheid que legalizou a discriminação introduzida no país em 1950, dividiu os sul-africanos em quatro grandes grupos: brancos, africanos, negros e indianos — esses termos foram escolhidos para fazer cumprir a política de segregação racial.

A classificação foi revogada em 1991, quando o país passou a se mover rumo à governança democrática, o que ocorreu de fato em 1994. Mas ela continua sendo uma parte importante da esfera de debate no país, embora seja contestada por ativistas.

O governo ainda usa a terminologia do apartheid para coletar dados que ajudem a corrigir os desequilíbrios flagrantes de renda e de oportunidades econômicas, que são um legado do racismo oficial do passado.

Mas muitos no país, incluindo Snyman, que fundou a organização "People Against Racial Classification" (Povo contra a Classificação Racial) em 2010, acreditam que o uso das categorias não tem lugar em uma África do Sul democrática.

"A remoção da Lei de Registro da População retira dos funcionários de recrutamento de mão de obra e de qualquer governo ou sistema privado o direito legal de classificar os sul-africanos por raça", escreveu ele em uma apresentação à Comissão de Direitos Humanos do país.

·        'Use classe, não raça'

Embora Snyman reconheça que ainda existam enormes desequilíbrios que precisam ser corrigidos, ele sugere que o governo use uma medida de renda para substituir a classificação racial.

"O governo não precisa saber a identidade das pessoas por grupos, ele precisa conhecer as pessoas que precisam de serviços, empregos ou o que for necessário", explica.

"O governo e o setor privado devem entregar a todos os sul-africanos igualmente e não discriminar com base em sua identidade", diz ele.

Ryland Fisher, ex-editor do jornal Cape Times que iniciou o projeto "One City, Many Cultures" (Uma cidade, muitas culturas, em tradução literal), da Cidade do Cabo, concorda com a avaliação.

Legenda da foto,As leis do apartheid privilegiavam os brancos e separavam os sul-africanos por raça, como mostra essa placa antiga

"Se adotarmos a classe social como marco de reparação, inevitavelmente poderemos beneficiar mais os negros", afirma. "Os negros são a maioria neste país e também a maioria das pessoas pobres deste país."

"E se você diz que vai se consertar os problemas com base na classe, um negro que viveu uma vida privilegiada não se qualificará para oportunidades econômicas por meio das políticas de ação afirmativa do governo", detalha.

Hoje, a agência oficial de estatística da África do Sul aponta que a população do país, de 57,7 milhões de pessoas, é composta por 80,9% de negros, 8,8% de mestiços, 7,8% de brancos e 2,5% de indianos.

·        'Nos consideramos negros'

Durante a década de 1970, quando a luta contra o apartheid estava ganhando força — inspirada pelo Movimento da Consciência Negra, liderado pelo famoso ativista Steve Biko e pela Organização de Estudantes da África do Sul —, muitas das pessoas marginalizadas do país (africanos, negros e indianos) se identificaram como negros em uma declaração de solidariedade com a luta pela derrubada do regime do apartheid.

E é nesse sentido que Snyman recebeu o apoio do maior sindicato de professores do país, o Democratic Teachers Union of South Africa, quando se autodeclarou como "sul-africano" em um processo seletivo.

"Muitos de nós tomamos uma decisão consciente de não nos identificarmos com a classificação racial prescrita pelo regime do apartheid. Nós nos consideramos negros, africanos, sul-africanos", diz Jonavon Rustin, porta-voz do sindicato dos professores de Cabo Ocidental, uma das províncias da África do Sul.

Destacando uma compreensão muito mais matizada de identidade, ele acrescenta que "algumas pessoas adotam a classificação étnica de cor: Khoisan, Africano, Xhosa, Zulu, Branco, Camissa Africano, Korana Africano, Griqua, Europeu, africâner e muitos outros."

Alguns, entretanto, fazem uma distinção entre uma identidade política ou cultural e a necessidade de lidar com os desequilíbrios criados pelo apartheid.

Zodwa Ntuli, comissária do Broad Based Black Economic Empowerment (Base Ampla de Empoderamento Econômico dos Negros), argumenta que, embora a classificação racial seja uma anomalia em um país que tenta se afastar de seu passado baseado em raça, os reguladores e o governo só podem medir o progresso social e econômico da população por meio de estatísticas de acordo com as velhas categorias.

O impacto da discriminação do apartheid contra negros, africanos e indianos, observa Ntuli, foi tão generalizado que os brancos continuam a dominar a economia em termos de propriedade e poder de decisão.

Mas ela ressalta que "ninguém na África do Sul está autorizado a usar a classificação racial ou de gênero para excluir qualquer cidadão do gozo dos direitos no país, isso seria ilegal".

Kganki Matabane, que chefia o Conselho Empresarial Negro, concorda. Para ele, embora o governo democrático tenha quase 27 anos, ainda é cedo para abandonar as velhas categorias.

"Precisamos perguntar: conseguimos corrigir esses desequilíbrios? Se não, como é o caso, se você olhar para as 100 maiores empresas listadas na Bolsa de Valores de Joanesburgo, 75% ou mais dos CEOs são homens brancos", diz.

Uma vez que o apartheid discriminava a população com base na raça, essa é a única maneira de abordar as questões da atualidade, e não a classe social, acrescenta.

"Só podemos ter uma cláusula de caducidade (da classificação racial) quando a economia refletir a demografia do país. Até chegar lá, será prematuro falar sobre o fim do empoderamento econômico dos negros", afirma.

·        Novos problemas

Em alguns casos, entretanto, o uso contínuo da classificação racial para monitorar as mudanças sociais levou ao endurecimento das categorias.

No Cabo Ocidental, que possui um grande número de pessoas anteriormente classificadas como negras, há um sentimento antigo entre alguns de que, em um esforço para resolver os problemas do passado, o governo democrático ignorou suas necessidades.

Na Cidade do Cabo, um grupo de ativistas que se identificam como negros fundou um equipe de lobby chamado Gatvol em 2018.

Em um vídeo introdutório na página do grupo no Facebook, o líder do grupo, Fadiel Adams, explica que "todos os braços do governo declararam uma guerra econômica contra os negros", reclamando que não há trabalho para membros da comunidade, mesmo que sejam a maioria na área.

Fisher, ex-editor do jornal Cape Times, disse que as pessoas classificadas como mestiças ficam felizes em lutar ao lado dos negros na luta contra o apartheid. Mas ele culpa o governo do Congresso Nacional Africano (ANC) pelo agravamento das diferenças raciais.

"O que aconteceu nos últimos anos é que a maioria (no Cabo Ocidental) decidiu levantar a voz e fazer valer seu direito de se identificar como negro", acrescenta.

"O ANC realmente não levou esses tipos de nuances em consideração. Eles alienaram pessoas que se identificavam como pessoas de cor. O que isso significa é que essas pessoas identificaram os tipos de coisas que poderiam afirmar sua identidade, incluindo elementos relacionados à cultura, comida, música e idioma ", explica ele.

Ele e outros acusam o governo liderado pelo ANC de não fazer o suficiente pelos negros e de ter como alvo a maioria nacional, que é oficialmente classificada como africana ou negra.

·        'Precisamos nos identificar como sul-africanos'

Saths Cooper, um psicólogo próximo a Steve Biko durante seus dias de estudante na década de 1970, argumenta que a imposição de uma classificação racial impediu a formação de uma identidade verdadeiramente comum.

"Não aprendemos primeiro que somos seres humanos", diz ele.

"Nós sempre colocamos uma cor, colocamos atributos externos e então colocamos talvez a linguagem e a crença, e isso permite mais divisão. Essa narrativa é então perpetuada", explica Cooper.

"Não demos às pessoas motivos suficientes para dizer que nos identificamos como sul-africanos", lamenta.

Enquanto isso, Snyman, através de Parc, continua a luta para banir a classificação racial do apartheid.

"Tomaremos todas as medidas, inclusive as legais, para livrar a África do Sul desse flagelo que mais uma vez gerou discriminação contra aqueles que não atendem aos critérios preferenciais do atual governo", afirma.

 

Fonte: Por Barbara Plett-Usher, correspondente da BBC News África na Cidade do Cabo, África do Sul

 

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