sexta-feira, 31 de maio de 2024

Juliana Rosas: ‘Como cobrimos tragédias?’

Já se vão cerca de três semanas do início das enchentes que atingiram diversas cidades do Rio Grande do Sul, causando mortes, deslocamentos e perdas irreparáveis. Desde então, vimos muitas notícias e reportagens sobre o desastre, pois os efeitos permanecem e a água não deu trégua. Por isso, é difícil em tão pouco tempo (e espaço) fazer uma análise de como a imprensa vem cobrindo tais acontecimentos.

Há e houve diversos tipos e estilos de coberturas: as que focaram no factual, na tragédia, na análise, na questão ambiental, política, etc. Como mencionado, já se passaram semanas, daí termos visto análises mais aprofundadas e com ênfase na questão climática. Poderíamos questionar se as enchentes tivessem sido graves, mas durado apenas um dia, se veríamos análises assim.

De modo geral, no jornalismo tradicional, classificaria a cobertura como positiva. Assim como aconteceu em veículos independentes. Meios de alcance nacional como Folha de S. Paulo e o jornalismo da Rede Globo cobriram tanto os acontecimentos cotidianos como fizeram análises e trouxeram especialistas para falar sobre a questão ambiental e também sobre a onda de notícias falsas e fabricadas que solaparam as redes.

Para falar sobre as relações entre os casos, vou citar o capítulo “Democracia, crise climática e jornalismo” do professor e pesquisador canadense, Robert A. Hackett. De modo geral, o que Hackett reflete neste texto é como o jornalismo se comporta ou o que é esperado dele em determinados tipos de contextos democráticos.

A abordagem liberal de mercado na democracia ignora o poder excessivo da riqueza concentrada nos processos de elaboração de políticas. Rejeita a ameaça à igualdade política e até à liberdade individual significativa colocada pelo crescente fosso entre ricos e pobres, um fosso reforçado pelas políticas neoliberais de cortes nos programas sociais, nos serviços públicos e na tributação dos ricos. Ignora a erosão, por uma cultura de individualismo aquisitivo, do sentido de comunidade que sustenta a governança democrática. E de uma perspectiva ecológica, a adulação dos direitos de propriedade e a procura de ganhos privados por parte do liberalismo de mercado veem-se desconfortavelmente ao lado da aceitação verde de soluções coletivas e da intervenção governamental para os desafios ambientais, e da necessidade de restrições ao consumo individual (Hackett, 2017, p. 41).

O autor afirma que em democracias onde predomina o liberalismo de mercado, a proteção ao meio ambiente não é a principal preocupação. E esta afirmação conecta a cobertura sobre tragédias ambientais e as chamadas fake news.

•        Tipos e concepções de democracia

As democracias podem ser classificadas com base no modo como se organizam e podem apresentar diferentes estágios de desenvolvimento. O termo é amplo e de difícil definição, mas por questões de simplificação e metodologia, tentaremos fazê-lo. Segundo a maneira do cidadão expressar sua vontade, os sistemas democráticos de governo podem se organizar de maneira direta ou indireta. Pode-se estabelecer três tipos básicos de democracia: direta, representativa e participativa (ou semidireta).

O sistema político no Brasil pode ser chamado de representativo, mas a Constituição Federal de 1988 permite uma ampla participação popular, que, caso fosse efetivamente aplicada, poderia colocar o país no patamar de democracia participativa, o que na prática, praticamente inexiste.  As concepções sobre a extensão atribuída às garantias de liberdade podem ser nomeadas de democracia liberal, social-democracia e democracia neoliberal.

•        Democracia, economia, jornalismo

O atual governo federal, ao contrário do anterior, é, pelo menos na teoria, preocupado com questões humanas, sociais e ambientais. É, também, um governo preocupado em fazer a economia crescer. Historicamente, governos brasileiros não tiveram políticas públicas fortes na área ambiental, tampouco os cidadãos têm grande preocupação ou mesmo interesse neste campo. O jornalismo preocupado ou cobrindo questões ambientais de forma mais significativa também é relativamente recente.

De secas a queimadas, passando por enchentes e extinção de animais, as reportagens podiam apresentar as tragédias no sentido grego, onde a peça “Édipo rei” é um clássico exemplo. Ou seja, tragédia é algo ao qual não podemos escapar. Obra divina ou da natureza. Nem sempre se questionava o social.

Durante a pandemia de Covid-19, os estados da região Sul foram os que mais resistiram ao isolamento social. Muito se ouvia que não deviam parar de trabalhar. O professor Pablo Ortellado, coordenador do Debate Político Digital, iniciativa que monitora as principais plataformas digitais, afirmou que um dos achados do projeto é que cerca de um terço do que circula sobre a catástrofe no X (antigo Twitter) é conteúdo com ataques aos governos federal, estadual e municipais. Nas redes sociais, circulam afirmações que os governos não estão fazendo o suficiente e que iniciativas privadas e individuais poderiam fazer melhor.

É uma concepção não apenas desinformada da realidade – pois há um esforço nacional para ajudar nesta catástrofe, ações do Exército, Aeronáutica, poderes executivos e legislativos, incluindo de outros estados, mas uma visão individualista, capitalista e elitista do que se passa. Ainda sobre ações nacionais, há inclusive equipes de Bombeiros partindo de estados do Nordeste – ou seja, do outro lado do país e, é importante mencionar, uma região que tanto sofreu preconceito da região Sul – para ajudar em resgates.

Do lado do jornalismo, desde o início das enchentes, estas são notícia dos principais jornais de diferentes estados e regiões. Não só notícia, mas são chamadas de capa. E por falar nisso, as capas de algumas das principais revistas das últimas semanas, a exemplo de Veja, Isto é e Carta Capital, trazem reportagens sobre as enchentes, com diferentes abordagens, seja sobre a solidariedade, emergência climática ou decisões políticas.

É um fato que o jornalismo nasceu e floresceu com o capitalismo. E foi adotado e adaptado por diferentes regimes econômicos e de governo. Da mesma forma que atentamos aos vieses políticos de cobertura, devemos prestar atenção em como determinados meios cobrem tragédias deste tipo. E mesmo que mostrem soluções e abordem a crise climática, devemos perceber suas contradições.

A Rede Globo, em diferentes veículos, seja em podcasts ou reportagens televisivas, trouxe ótimas reportagens sobre a questão ambiental. No entanto, possui patrocinadores avessos a tais questões. O mesmo pode se dizer da Folha de S. Paulo. Seu podcast Café da Manhã produziu excelentes episódios sobre a catástrofe sulista, entrevistou especialistas, falou de falhas de políticas públicas na questão climática. Porém, é um programa agora cada vez mais interrompido para anúncio de patrocinadores. Compreensível, mas só demonstra que o jornalismo sempre esteve entre a cruz e a espada, entre informação pública e financiamento privado.

Para terminar assuntos tão complexos, diria que há algo de errado com a frase que o jornalismo repete à exaustão: devemos desconfiar de tudo. Historicamente, brasileiros já possuem desconfiança em relação à política e aos políticos, pois sempre se sentiram lesados por estes, o que era frequentemente verdade. Em relação às fake news, também deve-se desconfiar e procurar fontes confiáveis.

Do mesmo modo que não se deve ingenuamente acreditar em tudo, tampouco cidadãos devem desconfiar de todos os políticos e políticas públicas. Essa desconfiança exagerada nos levou a ainda mais tragédias durante a pandemia de Covid-19, fez o país cair nos índices de vacinação, fez a população desdenhar da educação e da ciência, nos faz achar que política pública é esmola e – olha aí o efeito bumerangue – fez o índice de confiança no jornalismo cair ainda mais.

A cobertura de tragédias deve tratá-la como ocorrência ou acontecimento terrível e ir a fundo nas causas e consequências. Pessoas e governos devem esquecer a ideia grega e compreender que o meio ambiente não suporta mais alguns estilos de vida. Os jornalistas devem desconfiar durante seu processo de apuração para que a audiência confie em seu trabalho. Uma democracia depende da confiança da população em seu governo. A democracia é mais saudável com um jornalismo não só vigilante, mas confiável.

 

•        A inserção dos refugiados e deslocados climáticos na cobertura da catástrofe no RS. Por Eloisa Beling Loose e Claudia Herte de Moraes

As enchentes severas em diferentes municípios gaúchos provocaram uma fuga em massa. Muitos gaúchos tiveram que abandonar suas casas. Impossível não se comover com as imagens de desabrigados e desalojados, com poucos pertences, carregando crianças, animais domésticos e o que mais pudesse ser levado nas mãos diante do caos instalado. Para onde ir?

A situação vivenciada por grande parte da população atingida, transmitida por canais de comunicação diversos, acabou trazendo à tona a expressão “refugiado climático”. O repórter Juliano Castro, da RBS, foi um dos primeiros a trazer essa questão para a cobertura das enchentes na televisão. Depois disso, muitos outros jornalistas e comentaristas colaboraram para popularizar a ideia de que, se não fosse a crise climática, essas pessoas não teriam que deixar suas casas.

O Nexo trouxe este debate, indicando que o uso do termo pode ser uma forma de clamar pela atenção ao desafio da emergência climática, que passa a ser cada vez mais presente na vida de milhões de pessoas no planeta.

Na cobertura da imprensa, ao longo dos últimos dias, pode-se observar que tanto as imagens como a referência ao deslocamento humano são destacados. G1, Uol, Folha de S.Paulo e outros veículos enfatizaram a questão em seus títulos. As cidades foram abandonadas porque foram inundadas e/ou ainda apresentavam riscos de isolamento, desabastecimento, dentre outros. A imagem de “cidades fantasmas”, como foram retratadas Porto Alegre  e Eldorado do Sul,  reforçam o efeito do deslocamento massivo.

Há uma diferença entre deslocados e refugiados climáticos/ambientais: os primeiros seriam aqueles sujeitos à migração forçada por catástrofes climáticas, mas que não chegaram a atravessar fronteiras internacionais; já os refugiados são aqueles que, motivados pela mesma situação, são obrigados a deixar seu país de origem. A situação dos refugiados climáticos está inserida no Direito Internacional, com regulação específica e uma agência da ONU dedicada ao tema, a ACNUR. Juridicamente, a expressão “refugiado” não deve ser usada no caso da situação vivenciada pelos gaúchos. Ademais, é preciso ter cuidado para não banalizar o uso, já que a saída temporária das casas não é o mesmo que  não conseguir retornar para o lugar em que se vivia devido às consequências geradas pelas chuvas fortes.

No entanto, sob o ponto de vista do jornalismo, faz  sentido nomear essa consequência das enchentes com o adjetivo climático, realçando a conexão entre a intensificação das mudanças climáticas e a maior frequência dos eventos extremos. Além disso, dar visibilidade ao números de desabrigados e desalojados revela parte da dimensão da tragédia, já que ser obrigado a deixar o lugar que se vive, para além dos prejuízos materiais, traz perdas imateriais, de memórias, pertencimento e convívio, que são imensuráveis.

A crônica da jornalista Juliana Bublitz, de ZH, descreve os momentos em que os moradores de classe média da capital Porto Alegre são avisados sobre a urgência da evacuação no dia 6 de maio. A cena é de estranhamento, com ruas lotadas, impaciência, insegurança, medo, incerteza. O relato lembra o sentido de estar fora de seu lugar, traz a dimensão humana do desastre que se transfigura em tragédia diante de fatores agravantes, como a falta da manutenção do sistema de bombas que retiravam a água da cidade. Contudo, é sempre bom ressaltar, as classes vulnerabilizadas tendem a sentir esse impacto de forma mais aguda e prolongada, por não terem as mesmas condições socioeconômicas para lidar com os efeitos em cascata provocados pela eclosão do desastre.

A análise de Leonardo Sakamoto no UOL, no mesmo dia, é direta: “Não temos guerra, mas teremos cada vez mais refugiados ambientais”. Ele afirma: “tudo o que tem acontecido, ocorrido, essas pessoas mortas, ilhadas, desaparecidas, desabrigadas, e esses refugiados ambientais. [Isso] que a gente tem que cravar. O pessoal fala ‘o Brasil não tem refugiados, tragédia, vulcão, terremoto, guerra’. Tem sim!”.

O resultado dos eventos climáticos extremos no Rio Grande do Sul é desolador. Levando-se em conta um dos pressupostos do Jornalismo Ambiental, o engajamento, pensamos que há pertinência de trazer a referência da urgência e da relevância dos fatos. Desta forma, o jornalismo demonstra sua função social e política na sociedade. Neste sentido, usar o termo refugiado climático pode ser um caminho para evidenciar a conexão com o colapso do clima. Isso aparece na reportagem do Intercept Brasil: “Segundo números da Defesa Civil, divulgados na manhã desta quarta-feira, 8, 95 mortes foram confirmadas, e há 128 pessoas desaparecidas. Mais de 158 mil gaúchos precisaram deixar suas casas por causa das enchentes que assolam o estado. Nove mil só na capital, Porto Alegre. Mais de 66 mil pessoas estão em abrigos espalhados pelos 414 municípios afetados – mais de dois terços do estado. São os chamados refugiados climáticos: pessoas submetidas a um deslocamento forçado por conta de um evento climático extremo que coloca em risco sua existência.”

No dia 8 de maio, em função da calamidade gaúcha, um projeto de lei foi apresentado pedindo a definição da condição de “deslocado interno por questões climáticas”, como informa Sakamoto. A proposta do deputado pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ) diz que “Entende-se como deslocado interno por questões climáticas, qualquer pessoa, residente no Brasil, forçada a deixar seu habitat tradicional, temporária ou permanentemente, por causa de uma perturbação ambiental acentuada, desencadeada ou não por terceiros, que comprometam sua existência e/ou afete seriamente sua qualidade de vida”. O objetivo desta mudança é facilitar o acesso a políticas públicas, em especial ao financiamento da casa própria no programa Minha Casa, Minha Vida. A questão foi repercutida no UOL, por Sarah Moura no dia 9 de maio.

Assim, embora o termo siga em discussão nos organismos internacionais de Direitos Humanos para uma definição aceita para fins jurídicos, na esfera do debate público e diante da calamidade e do sofrimento humano, acreditamos que o uso das expressões refugiado climático ou ambiental é uma forma de o jornalismo visibilizar algumas consequências humanas que nem sempre aparecem em meio à cobertura a partir dos números. Quem sabe, ao pensarmos no que sustenta a designação de um deslocado ou refugiado climático, possamos recordar que o objetivo maior de uma Nação é  dar condições dignas de vida e segurança ao seu povo. E sem cuidado ambiental isso não é possível.

 

Fonte: Blog da Boitempo/Observatório da Imprensa

 

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