O QUE O CHILE TEM A VER COM ISSO? Desvincular a Previdência do salário mínimo é a cereja do bolo
Recentemente nos
deparamos com a notícia de que a atual ministra do Planejamento e Orçamento,
Simone Tebet, possui um plano que resultará na desvinculação dos
valores dos benefícios previdenciários do salário mínimo. Mas o que de fato
significa isso? Por que essa proposta tem sido comparada com a situação do
sistema de pensões chileno?
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Entendendo a
vinculação dos benefícios ao salário mínimo
É importante entender
que os valores dos benefícios previdenciários são corrigidos anualmente com
base no Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), apurado pelo IBGE,
e não acompanham o reajuste do salário mínimo. Então, considerando
este ano como exemplo, o reajuste do salário mínimo em janeiro foi de 6,97%
(Decreto nº 11.864/2023), enquanto o reajuste dos benefícios foi de 3,71%
(Portaria MPS/MF nº 2/2024). Dessa informação decorrem dois pontos importantes.
O primeiro deles é que
essa disposição atrai como consequência o rebaixamento dos valores dos
benefícios que são concedidos com cifras acima do salário mínimo. Ou seja,
em alguns anos, considerando a não correspondência do índice com o reajuste do
salário mínimo, os benefícios acabam sendo achatados ao valor do próprio
salário mínimo.
Disso decorre o
segundo ponto. A nossa Constituição atualmente determina que nenhum
benefício que substitua a remuneração do trabalho terá valor mensal inferior ao
salário mínimo. Significa que no processo de concessão de um benefício, se
o cálculo resultar em valor inferior, este será elevado ao valor do salário
mínimo, passando, portanto, a obedecer o reajuste aplicado anualmente ao
mínimo. Pode parecer algo incomum, mas não é: em muitos casos o cálculo dos
benefícios resulta em montante inferior ao piso previdenciário.
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O projeto incompleto
de achatamento dos benefícios previdenciários
A forma de cálculo dos
benefícios previdenciários é um tema complexo, que envolve médias aritméticas,
porcentagens, entre outros componentes relativos ao campo atuarial,
incompreensíveis a uma pessoa comum que está diante da sua carta de concessão
quando um benefício previdenciário lhe é concedido. Certo é que existe
um projeto de conformação da forma jurídica previdenciária em curso (Silva,
2021) desde o primeiro respiro da Constituição de 1988 (Martins, 2018).
Para ficarmos apenas
em dois grandes exemplos, a fim de que compreendam o que significa o atual
debate sobre a desvinculação, temos (i) a criação do famigerado fator
previdenciário e (ii) as novas regras de cálculo criadas pela reforma da
Previdência de 2019 (Emenda Constitucional nº 103).
O fator previdenciário
nada mais é do que uma fórmula matemática criada em 1999 para reduzir o
valor das aposentadorias. Ele leva em consideração a idade, a expectativa
de sobrevida e o tempo de contribuição da pessoa que vai se aposentar, a fim de
que quanto mais “cedo” a pessoa se aposentar, menor será o valor do seu
benefício, independentemente de todo o seu suor e desgaste em relação a
longos anos de trabalho. Desde então o fator previdenciário vem sendo o grande
redutor do valor dos benefícios de aposentadoria.
O segundo exemplo se
refere às recentes alterações nas regras de cálculo dos benefícios, promovidas
pela última reforma da Previdência. O cálculo dos benefícios possui o
que chamo de camadas redutoras que, em linhas gerais, considerando a
aposentadoria, leva-se em conta uma média aritmética com base em todos os
salários de contribuição do/a trabalhador/a desde julho de 1994, incluindo as
contribuições mais baixas (anteriormente se excluíam as 20% menores no
período), o que na média resulta na redução do valor final. Ainda,
sobre essa média aritmética, o valor do benefício tem por base inicial 60%, não
a sua integralidade. No caso das pensões por morte, feito esse cálculo,
aplica-se outra vez um redutor em cotas, sendo 50% do valor, mais 10% por
dependente, rebaixando ainda o montante final.
Em razão da forma
complexa como os cálculos são realizados (entre as várias camadas redutoras
existentes), muitos benefícios resultam em valores inferiores ao mínimo e
acabam sendo elevados ao mínimo, exclusivamente, em razão da determinação
constitucional. Ocorre que esse projeto está inconcluso, falta a cereja
do bolo: a desvinculação do valor dos benefícios do salário mínimo.
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Qual o estado atual do
debate?
Para compreendermos a
amplitude e a gravidade do atual debate sobre a desvinculação do valor dos
benefícios do salário mínimo, é necessário entender qual o cenário de concessão
dos benefícios. Dados compilados no Boletim Estatístico da Previdência Social
(BEPS) apontam que 67% dos benefícios pagos correspondem ao valor de 1
salário mínimo, com referência a fevereiro de 2024, e desse montante, cerca de
70% são benefícios previdenciários (BEPS, 2024).
Além disso, um fator a
ser considerado é que o maior grau de precarização e informalidade nas relações
de trabalho acarretam na redução da vinculação e do aporte de contribuições das
trabalhadoras e trabalhadores com contribuições para a Previdência (Silva;
Martins, 2024), as quais, se forem realizadas, dificilmente estarão
acima do valor mínimo. Nesse sentido, sendo bastante otimista, caso venham
a contribuir e quiçá terem direito a receber algum benefício previdenciário no
futuro, certo é que o terão com base no salário mínimo, pois não haverá
condições reais de contribuir com valores altos, resultando, assim, em
benefícios com prestações rebaixadas. E com os avanços da precarização das
relações de trabalho, a tendência é que essa realidade aumente
significativamente ao longo dos anos.
Esses apontamentos
revelam que atualmente a maioria dos benefícios concedidos pela
Previdência Social tem por base o valor do salário mínimo, com a
tendência de aumentar no futuro, observando os mesmos índices de reajuste
do mínimo, não do INPC. Qualquer política de valorização do salário mínimo que
seja realizada pelo governo precisará encarar o aumento, sob o mesmo índice de
reajuste, do valor de cerca de 70% dos benefícios pagos no geral, cuja maioria
é de natureza previdenciária. Um dos mecanismos de popularização dos
governos é a valorização do salário mínimo, porém, na situação atual ela vem
acompanhada da pressão relacionada aos gastos da Previdência Social. Então,
como articular uma agenda de valorização do salário mínimo se ela esbarra no
aumento dos gastos com os benefícios previdenciários?
Por essa razão têm
crescido os rumores sobre os riscos para o futuro da Previdência Social
(Martins, 2024), bem como rapidamente surgem propostas de desvinculação dos
benefícios do salário mínimo. E nesse contexto surge a notícia de que a
ministra Simone Tebet está mirando essa medida.
·
Consequências da
desvinculação e o caso do Chile
Considerando que cerca
de 70% dos benefícios concedidos possuem renda mensal de 1 salário mínimo e que
a atualização pelo INPC costuma não acompanhar as atualizações do mínimo, é
certo que haverá uma enorme catástrofe para o patamar protetivo
previdenciário das trabalhadoras e trabalhadores, especialmente para
as pessoas que ao longo de sua vida contributiva aportaram baixos valores. E
essa desvinculação será grave não apenas se considerarmos cada segurado da
Previdência, mas será muito mais grave para famílias inteiras que dependem dos
benefícios previdenciários para sobreviver (Silva, 2024).
Uma medida dessas não
poderia encontrar espaço no cenário de precarização das relações de trabalho,
mas considerando as necessidades do atual estágio do modo de produção
capitalista (Correia, 2021), perfaz-se como o momento de conformação do
conteúdo normativo para a adequação às novas formas de exploração da força de
trabalho. Com a consolidação dos efeitos da referida reforma trabalhista e
sua projeção na Previdência Social, já teremos um futuro de desproteção de uma
parcela imensa de trabalhadoras e trabalhadores, e com a desvinculação dos
benefícios do salário mínimo a tendência é piorar. Isso porque se hoje
os benefícios concedidos são em sua maioria no valor de 1 salário mínimo, a
tendência é que com a precarização das relações de trabalho esse número aumente
exponencialmente.
Então, a desvinculação
dos benefícios do salário mínimo terá como consequência uma imensidão de
trabalhadoras e trabalhadores que receberão da Previdência, após anos de
trabalho árduo e precarizado, valores inferiores ao salário mínimo.
Para termos uma noção
mais concreta sobre essas consequências, é imprescindível trazer a situação da
classe trabalhadora chilena que é, sem sombra de dúvidas, o caso que precisamos
analisar. Um recente estudo da “Fundación Sol” – centro de investigações no
Chile que se propõe a produzir conhecimento crítico e ações para potencializar
as lutas sociais – denominado “Pensiones bajo el Mínimo”, apontou um cenário
preocupante em relação ao montante de benefícios que possuem valores inferiores
ao mínimo.
Entre os vários
enfoques da pesquisa, ressalta-se que quase 85% das pensões pagas são
menores que 1 salário mínimo. Ainda, mais de 60% das pessoas que
recebem pensão se encontram abaixo da linha da pobreza para lares
unipessoais (Gálvez, et al, 2024). Como consequência disso, mesmo
se cumpridos os requisitos para obter o valor ínfimo da “Pensión Garantizada
Universal” (PGU), a população necessita continuar trabalhando por
longos anos, mesmo sendo idosos, no intuito de aumentar o montante das suas
contas individuais antes de se aposentar ou então continuar trabalhando
mesmo após a sua aposentadoria (Fuentes, 2018; Luna, 2020).
Importante frisar que
no Chile vigora o sistema de capitalização individual, operada pelas
Administradoras de Fundos de Pensão (AFPs), por meio das quais se constituem
contas individuais e o montante aportado ao longo da vida laborativa é
revertido em pensões após o cumprimento de determinados requisitos. Ocorre que,
considerando o reduzido potencial de aportes individuais pelas trabalhadoras e
trabalhadores, somando-se às taxas de administração das AFPs, resultam saldos
pequenos e, consequentemente, benefícios com valores irrisórios. E como
as pensões não são vinculadas ao salário mínimo chileno, grande parcela da
população acaba tendo como pensão valores muito inferiores, que chegam a ser
cerca de 40% do salário mínimo (Gálvez, et al, 2024).
Esse cenário torna a
experiência chilena uma referência de análise crítica sobre qualquer proposta
de desvinculação dos benefícios do salário mínimo. Isso porque a precarização
das relações de trabalho não é uma realidade apenas brasileira, sendo o aumento
da informalidade uma tendência da América Latina. No caso do Brasil
essa situação ocasiona, igualmente, no menor potencial contributivo, mas
reflete na sistemática de cálculo dos benefícios, resultando em valores
inferiores ao salário mínimo.
Com isso, a ausência
da vinculação dos benefícios ao salário mínimo, especialmente no contexto em
que há solidariedade social no financiamento da seguridade social, é assombrosa
e acarretará prejuízo irreversível para a “proteção social” no Brasil.
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A cereja do bolo está
por vir
Com a maior
precarização das relações de trabalho e o aumento do contingente de
trabalhadoras e trabalhadores informais, o cálculo do valor dos benefícios
dificilmente resultará em montante acima do salário mínimo. Por
consequência, ocorrendo a desvinculação em questão, a “proteção social”
ganha mais um passo para o seu fim. Os ataques à Previdência Social nunca
cessam e a base de uma nova reforma começa dessa maneira. O projeto de
achatamento dos benefícios se iniciou com a instituição do fator
previdenciário, chegou a um novo ápice com a reforma da Previdência em 2019,
porém, ainda falta a cereja do bolo, ou seja, desatrelar os benefícios
do salário mínimo. Essa é a destruição da Previdência Social em curso.
Fonte: Por Deise
Lilian Lima Martins, no Le Monde
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