quarta-feira, 29 de maio de 2024

Michel Aires de Souza Dias: ‘A crise de governança nas democracias ocidentais’

No atual estágio das forças produtivas, dominado por grandes multinacionais e transnacionais, pelo setor financeiro e pelo agronegócio, o capitalismo está cada vez mais predatório. O próprio excedente social arrecadado pelo Estado é capturado pelos interesses do grande capital. Há uma crise de governança nas grandes nações do mundo capitalista. Hoje está cada vez mais difícil para o Estado fazer uma gestão eficiente, pois sua capacidade de ação para governar em benefício da população e na consecução de metas coletivas encontra-se abalada pela lógica capitalista.

A obtenção de renda ou de vantagens econômicas (rent-seeking) por indivíduos ou grupos de interesse, que não derivam do livre jogo do mercado, tornou-se um problema para as grandes nações. Esses indivíduos ou grupos se aproveitam de forma indevida das receitas do Estado, sonegando imposto, corrompendo funcionários públicos, fraudando licitações, faturando preços, recebendo propinas ou adquirindo aposentadorias ou pensões vultosas, que não corresponde a sua contribuição.

Ao invés do lucro ser gerado pela livre concorrência trazendo benefícios para toda a sociedade, a captura do Estado por indivíduos ou grupos econômicos produz resultados danosos para o bem-estar social. Segundo Queiroz (2012), a atividade dos agentes na busca do lucro de forma concorrencial no mercado, segundo as regras do jogo econômico, é algo benéfico para toda sociedade.

O lucro obtido dessa forma gera contextos positivos, como o incremento da produtividade no conjunto da economia, assim como a melhoria de processos produtivos e o bem-estar dos indivíduos, beneficiando todo sistema econômico e social. Já a obtenção de renda por mecanismos externos ao mercado, aproveitando-se de privilégios obtidos por decisões políticas, não encontra o mesmo contexto positivo, uma vez que produz a precarização do bem-estar social.

No Brasil a captura do Estado por indivíduos e grupos de interesse faz parte da cultura das instituições. Sérgio Buarque de Holanda já apontava na alma brasileira certos traços culturais ibéricos, em particular, o português, como o personalismo, os privilégios, o desrespeito às leis, a hierarquia social e a valorização do status quo. Por essa razão, “os elementos anárquicos sempre frutificaram aqui facilmente, com a cumplicidade e a indolência displicente das instituições e costumes” (HOLANDA, 1995, p. 33). Foram esses elementos culturais que se cristalizaram em nossa cultura organizacional, como o personalismo, o patrimonialismo e o clientelismo.

O patrimonialismo se caracteriza pela sujeição ou apropriação de bens e serviços das intuições públicas pelos indivíduos ou por grupos privados ligados às organizações do mundo capitalista. Apesar das reformas que o Brasil passou desde que era colônia, o patrimonialismo ainda permanece um traço cultural de nossas instituições. Como aponta Bergue (2010, p. 34): “A despeito das reiteradas abordagens e estudos que evidenciam a influência do patrimonialismo, do formalismo, do clientelismo, entre outros fatores, os insucessos dos projetos de reforma administrativa no Brasil podem estar relacionados também à insuficiente observância desses elementos culturais, incluindo suas variantes mais modernas como o compadrio, a vassalagem, a barganha, a fisiologia, a bacharelice e a centralização”.

Atualmente, os valores patriarcais ainda exercem uma influência significativa na política. As poderosas elites familiares se estendem até as esferas das instituições e dos cargos públicos, ecoando o passado do período colonial. O poder continua a ser transmitido de geração em geração, como se os altos escalões políticos fossem hereditários. As nossas elites empresariais, principalmente aquelas ligadas ao agronegócio e aos bancos, monopolizam o poder político, controlando os parlamentos, os ministérios e todas as principais posições de liderança.

Por isso, hoje é visto com naturalidade o fato de que o agronegócio não pague impostos sobre suas exportações e que também seja subsidiado em bilhões por ano pelo Estado. Esse fenômeno além de caracterizar uma forma de patrimonialismo, também pode ser compreendido por aquilo que Berge (2010) e os especialistas em administração pública chamam de bacharelice, ou seja, o hábito de tentar moldar a realidade através de leis e decretos.

Apesar das nossas peculiaridades de um passado colonial, que ainda influência nosso presente, o patrimonialismo, o clientelismo e a bacharelice também são condições determinantes em outros países. Essas características também se encontram nas modernas democracias do mundo ocidental. No entanto, não correspondem a seu passado histórico, mas a própria organização do mundo capitalista, em sua vertente neoliberal, que, com o discurso de “Estado mínimo”, o grande capital se apropria das receitas do Estado e põe fim às políticas sociais, reduzindo a sua capacidade de governança.

O melhor exemplo disso é o da maior economia do mundo, os Estados Unidos, que possui quase 50 milhões de miseráveis (12,8% da população) e se tornou refém do complexo militar-industrial armamentista. O lobby da indústria de armas é muito poderoso. É o país que mais se envolve e financia conflitos pelo mundo, com o único objetivo de obter lucro com a morte de civis inocentes. Hoje, vemos esse país envolvido em duas grandes guerras, a da Ucrânia e a de Israel, inviabilizando as próprias decisões da Organização das Nações Unidas e a cooperação internacional para garantir a paz.

O neoliberalismo é hoje uma nova forma de “razão governamental” que se aproxima muito do que Adorno e Horkheimer (1985), na década de 1940, denominaram de sociedade administrada. É um sistema normativo “capaz de orientar internamente a prática efetiva dos governos, das empresas e, para além deles, de milhões de pessoas que não têm necessariamente consciência disso” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 14). Hoje, as forças e poderes que estabelecem o neoliberalismo operam em uma interconexão tanto em âmbito nacional quanto internacional.

Oligarquias burocráticas e políticas, empresas multinacionais, entidades financeiras e grandes organizações econômicas internacionais colaboram em uma coalizão de poderes concretos, desempenhando um papel político significativo em escala global (DARDOT; LAVAL, 2016). Nesse sentido, o neoliberalismo é uma nova forma de capitalismo administrado, pois impõe uma forma de dominação social calcada na racionalidade técnica, econômica e administrativa, transformando os indivíduos em objetos de coordenação, organização, controle e planejamento em larga escala.

 

¨      O nome do culpado é capitalismo. Por Luis Felipe Miguel

Os gaúchos ainda esperam a água baixar para voltar às suas casas, contam os mortos e avaliam a medida da devastação. Nem por isso os negacionistas do colapso climático se calam. Aferram-se ao fato de que no passado também ocorreram cheias (a de 1941, em Porto Alegre, é sempre evocada) para enquadrar a tragédia como “fatalidade”. Prosseguem na cruzada contra o método científico, usando casos isolados para contestar regularidades e tendências, tal como fizeram durante a pandemia do novo coronavírus.

Sim, há muitos registros de inundações, de temperaturas extremas ou de calor ou frio fora de hora no passado. O ponto é que estes fenômenos estão se tornando mais – muito mais – constantes e intensos. Os dados são eloquentes e décadas de pesquisa apontam para a ação humana como causa. O consenso científico está estabelecido, mesmo com todo o esforço dos “mercadores da dúvida” (pesquisadores bancados por grandes corporações, que produzem estudos enviesados em temas como tabagismo, opioides, alimentos ultraprocessados ou aquecimento global).

Falar em “ação humana”, no entanto, é muito vago. Parece distribuir a culpa entre todos nós. No entanto, as responsabilidades são muito diversas. O custo ambiental do cidadão de um país rico, com seu padrão de consumo mais elevado, equivale a muitas vezes aquele do morador de um país pobre. E, dentro de cada sociedade, evidentemente os mais ricos têm maior impacto, com seus automóveis dispendiosos, jatinhos particulares, lanchas e iates, profusão de gadgets em constante substituição etc. Um relatório do ano passado estima que os 10% mais ricos dos Estados Unidos, isto é, cerca de 0,4% dos habitantes do mundo, são responsáveis por 40% da poluição de todo o planeta.

Ao mesmo tempo, as consequências também são distribuídas desigualmente – e as primeiras vítimas são sempre os mais pobres. Os países ricos “exportam” boa parte de sua poluição, transferindo seja as plantas industriais, seja já os resíduos. E, em cada país, os ricos têm acesso aos bens e serviços que minimizam as consequências do colapso ambiental, de equipamentos de climatização a imóveis em áreas menos vulneráveis.

Em suma: estamos todos no mesmo barco, como se costuma dizer. Mas há muita diferença entre estar na primeira ou na terceira classe. E, quando ele afundar, o que é seu destino provável, só alguns terão acesso aos botes de salvação.

São culpados os empresários gananciosos, os políticos que vivem a serviço deles bloqueando medidas de proteção ambiental, é culpada a mídia que calibra o noticiário com a preocupação de não melindrar muito os grandes anunciantes. Precisamos indicar a responsabilidade de cada um deles. Mas também o fato de que suas ações – como, em alguma medida, a de todos nós – seguem a dinâmica de um sistema: o capitalismo.

A lógica da acumulação capitalista, com sua incessante demanda por geração de valor, torna toda a natureza “um objeto da humanidade”, como disse Marx. A preservação ambiental é absolutamente contraditória a essa lógica. Como expôs o filósofo japonês Kohei Saito, o capitalismo reorganiza radicalmente a relação da humanidade como a natureza “a partir da perspectiva da máxima extração possível de trabalho abstrato”. Como se trata de gerar valor, não de suprir necessidades, não há limite para a extração de matérias-primas e para seu processamento. E cada um de nós, habitantes do mundo capitalista, somos ensinados desde cedo a buscar no consumo incessante a compensação para a alienação de nossas vidas.

As corporações podem fazer o teatrinho da “sustentabilidade”, mas o enfrentamento do colapso climático é necessariamente o enfrentamento do império do capital. Ao mesmo tempo, sua lógica contaminou também os países do “socialismo real”. Quando, após a Segunda Guerra, os dirigentes soviéticos estabeleceram como meta superar o padrão de vida ocidental, aceitavam uma métrica capitalista. O mesmo se pode dizer, hoje, da China.

Marx não foi, evidentemente, um ambientalista avant la lettre. É inútil buscar nele uma presciência milagrosa sobre os desafios ecológicos que enfrentamos hoje. Mas a crítica ao capitalismo, a seu caráter predatório, à violência que ele engendra, cujos mecanismos foram em grande medida desvendados por Marx e pelos pensadores que seguiram seus passos, tudo isso é essencial a qualquer enfrentamento consequente da crise ambiental.

 

Fonte: A Terra é Redonda/Blog da Boitempo 

 

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