sexta-feira, 31 de maio de 2024

Henri Acselrad: As cidades e as águas

A tragédia das inundações das cidades do Rio Grande do Sul nos lança com força a pergunta: quais são as manifestações da questão ambiental nas cidades e como entendê-las? O sofrimento das populações, em sua maioria urbanas, atingidas por um desastre desta monta clama por ação e também por reflexão. Afinal qual é a dimensão especificamente ambiental das cidades?

O entendimento corrente a este respeito parece ainda insuficiente. A dimensão ambiental do urbano, dizem alguns, estaria na presença da natureza na cidade. Esta natureza, normalmente associada ao rural, poderia ser observada também nas cidades. Ou então, dizem outros, trata-se apenas de um “ambiente construído”, pois, não sendo natural, o ambiente das cidades é puro artifício e a natureza seria relegada ao espaço do campo. Em ambos os casos, este tipo de resposta faz uma separação de domínios entre ambiente e sociedade ou, então, vê um ambiente cortado ao meio – parte natureza, parte artifício social.

Tentemos situar no tempo histórico a noção de ambiente urbano e sua gênese, procurando não separar ambiente e sociedade. Isto porque no campo, como nas cidades, o ambiente é sempre apropriado material e simbolicamente pelos diferentes atores sociais. Certos autores cuidam, ademais, de nos lembrar: trata-se de uma problemática construída em um momento histórico determinado. Foi apenas em um dado momento do conhecimento científico e do debate público que as paisagens, no campo como nas cidades, passaram a ser vistas sob uma nova ótica – ambiental; a “ecologia” dirigiu o olhar para o modo como são feitas as ligações entre as partes – entre plantas e solos, rios e margens, edificações e morros.

E, sobretudo, para as ligações entre os diferentes modos de usar rios, lagoas, solos, atmosfera etc. Seria preciso, por exemplo, nos dizem os especialistas, alargar o olhar sobre as cidades para abranger toda a bacia hidrográfica onde elas se inserem. A questão urbana foi, assim, sendo“ambientalizada” pela formulação de novas percepções e interpretações dos problemas urbanos, em particular pela atenção dada às ligações e impactos recíprocos entre as diferentes formas de ocupação dos espaços.

Não se trata, por outro lado, apenas da questão dos ecossistemas onde se inscrevem as cidades, mas do conjunto de ideias e concepções mediante as quais se foram construindo os problemas socioecológicos urbanos e seus modos de tratamento.

A noção de “ambientalização” surgiu, assim, para designar o modo pelos qual os atores sociais passaram a avaliar a pertinência e legitimidade das práticas de ocupação do espaço, classificando-as em ambientalmente danosas ou ambientalmente benignas. Assim foi que certos modos de apropriação e uso do espaço, nas cidades e fora delas, passaram a ser percebidos e apontados como geradores de impactos indesejáveis sobre as condições ecológicas de existência e trabalho de terceiros.

E qual teria sido o histórico desta ambientalização da questão urbana? Sabemos que, em sua origem, a cidade moderna foi entendida como portadora de uma questão populacional. Os estatísticos que mediam os fatos urbanos, no século XIX, eram vistos como “técnicos de populações”. Eles apontavam o aglomerado populacional como responsável pelos males materiais e morais na cidade. Temas malthusianos invadiram então o debate público: a transpiração da cidade e a exalação de vapores em proveniência de uma grande quantidade de homens e animais eram vistos como problemas próprios aos bairros mais povoados.

Era nessas localidades, diziam eles, que se situavam as oficinas ruidosas e poluentes, as ditas patologias morais da criminalidade e da prostituição. A concentração populacional unificava as dimensões materiais e morais da recém conhecida expansão urbana. E mesmo quando os estatísticos verificavam uma distribuição desigual da taxa de mortalidade entre bairros, a relação quantitativa entre o número de indivíduos e o espaço ocupado pelo bairro era apontada como responsável pela desigualdade diante da morte – a atmosfera de massas, os miasmas, a falta de ar…

Não se incluía nas análises de então outros tipos de processos de concentração, além dos efeitos de aglomeração de gente: pouco se discutiu, por exemplo, a concentração de poder sobre o espaço urbano e seus recursos, como tampouco a concentração da capacidade de certos atores sociais afetarem – dentro e fora das cidades – os demais por via do impacto de suas práticas na fisíco-química atmosférica, nas águas, nos solos e sistemas vivos.

Enquanto o capitalismo foi criado juntamente com a privatização da terra, tornada, a partir de então, uma pseudomercadoria, apresenta-se a nós a pergunta seguinte: o que teria acontecido com os demais elementos de uso compartilhado como as águas e o ar? O historiador Alain Corbin dá elementos para caracterizar o que hoje podemos considerar uma dimensão ambiental avant la lettre do urbano: com relação aos males associados à grande indústria, prevaleceram, a partir de então, diz ele, o otimismo tecnológico e a naturalização da poluição.

O que passou a vigorar, nos usos sociais das águas e da atmosfera, foram relações de força; ou seja, o exercício da potência de certos proprietários disporem livremente dos espaços compartilhados por todos. Friedrich Engels, por sua vez, falava, de forma bem mais genérica, de uma capitalização de tudo: “os capitalistas se apropriam de tudo, enquanto, ao grande número, não resta senão a própria vida”.

A industrialização, dizem os historiadores, gerava ansiedades públicas. Ou seja, ela trazia consigo um problema político: o da prevalência de um determinado uso privado dos espaços não-mercantis do ar e das águas sobre os demais usos. Uma questão política que foi, porém, silenciada. Atos de força que foram naturalizados, despolitizados. Dada a nova escala de operação das práticas produtivas e a forma concentrada do exercício do poder de manejo dos espaços e recursos, criou-se uma divisão social desigual da capacidade das práticas espaciais se impactarem reciprocamente; no campo, nas cidades e, por certo, entre o campo e as cidades.

As práticas dominantes da grande indústria e da agricultura em grande escala impuseram, assim, de fato, seus usos privados aos espaços comuns do ar e dos cursos d´água, neles lançando os produtos não vendáveis da produção de mercadorias (resíduos, efluentes, emissões) ou, no caso da agricultura comercial, desmatando margens e compactando solos, impactando – e eventualmente comprometendo – o exercício de outras práticas espaciais não dominantes.

Podemos chamar essa configuração de uma “proto-ambientalidade” do capitalismo – ou seja um padrão “ambiental” próprio ao regime de acumulação de riqueza que começou a operar muito antes que uma questão ambiental propriamente dita tivesse sido formulada como um problema público. Certos autores fazem menção ao que teria sido uma “primeira política pública ambiental” europeia quando, em 1806, as manufaturas de Paris foram classificadas em categorias de “cômodas e incômodas”, umas sendo afastadas da aglomeração, outras toleradas.

Ora, tais medidas não davam propriamente tratamento às indústrias como fonte de poluição ambiental a ser restringida e regulada; as fábricas tornaram-se apenas objeto de políticas espaciais de localização dos incômodos.

Saltemos um século: é nos anos 1960, que pudemos observar o surgimento de lutas sociais através das quais se fez a denúncia – como “males ambientais” – dos processos de dominação privada, de fato, dos espaços comuns, que vinha sendo praticada desde os primórdios do capitalismo; ou seja, a imposição, a cidadãos supostamente livres, do consumo forçado – via cursos d´água e atmosfera – de produtos invendáveis da produção mercantil: resíduos sólidos, efluentes líquidos e gasosos.

Questionamentos foram feitos igualmente ao manejo arbitrário das matas e cursos d´água pela grande agricultura químico-mecanizada, com suas consequências danosas para a alimentação, a biodiversidade e os solos. O que se buscou fazer então foi politizar um debate antes silenciado, iniciando um processo de ambientalização das lutas sociais que incluiu, por certo, questões urbanas.

Inicialmente, a partir dos movimentos sociais contraculturais de crítica ao consumismo e ao modelo agrícola monocultural que, vemos hoje, tem consequências dramáticas sobre bacias hidrográficas, com inundações de áreas urbanas, mediadas ou não por mudanças climáticas; em seguida, por instituições multilaterais, UNESCO, HABITAT e Banco Mundial, com a assim chamada “agenda marrom” relativa a uma ambientalização do saneamento; por fim, por governos, que criaram suas secretarias e ministérios de meio ambiente, em grande parte como resposta a movimentos sociais e pressões internacionais e com pouca incidência sobre as cidades, embora, mais recentemente, evocando a necessidade de adaptação das cidades às mudanças climáticas.

Mas, para além dos usos correntes do senso comum, que considera o ambiente urbano como a soma das questões do saneamento, da poluição do ar e da água, da impermeabilização e contaminação dos solos, em termos analíticos, poderíamos ainda perguntar: como se foi conceituando, de forma um pouco mais sistemática, a “dimensão ambiental do urbano”? Como foram sendo unificados processos aparentemente tão dispares?

Observando a literatura sobre meio ambiente urbano, verifica-se uma ampliação do debate convencional do urbano para aspectos físico-químicos e biológicos da configuração das cidades. Os autores que vieram animando este debate referem-se, via de regra: (a) ao modo como, nas cidades, se consome, transforma e deterioram os “bens coletivos, como água, ar, solo”; (b) ao fato que estes bens coletivos passaram a ser vistos como mediadores/transmissores de riscos de comprometimento das condições ecológicas da vida nas cidades, em função dos diferentes modos sociais de apropriação de que eles são objeto; (c) à necessidade de se considerar a diferenciação social no processo de mudança socioecológica: a saber, que os riscos urbanos são distribuídos desigualmente; o que favorece a um grupo social pode prejudicar a outro.

Assim, “a natureza urbanizada reuniria bens materiais e simbólicos atravessados por conflitos sociais urbanos em torno a seu controle, configurando padrões espaciais desigual de distribuição das amenidades e males ambientais”.

Articulando-se as considerações destes autores, a noção de “meio ambiente urbano” designaria o espaço de vigência de riscos urbanos associados aos modos de apropriação e consumo de bens coletivos como ar, água e solo, assim como elementos dos sistemas vivos portadores de microorganismos, vírus, bactérias etc., pelos quais certas práticas espaciais (em geral de empreendimentos capitalistas de grande impacto) afetam as práticas de terceiros (em geral grupos despossuídos e racializados), em contexto de padrões socialmente desiguais e conflituais de distribuição de danos e amenidades urbanas.

Estamos longe, portanto, dos simples efeitos populacionais aglomerativos do século XIX, mas, sim, confrontados aos efeitos indesejáveis de determinadas práticas espaciais desenvolvidas nas cidades ou fora delas, mas com impactos sobre elas.

O governo do “ambiente urbano” remete, assim, à regulação política dos riscos desigualmente distribuídos decorrentes dos modos dominantes de apropriação dos espaços materiais compartilhados e não-mercantis da cidade ou fora das cidades, com consequências dentro delas. Não se trata, com efeito, somente da gestão de ecossistemas, mas da regulação de práticas espaciais e das disputas em torno à definição de quais delas são ou não portadoras de riscos e para quem.

A este propósito, é gritante a concomitância entre as cheias desastrosas nas cidades e a flexibilização de códigos florestais (o caso de Santa Catarina, em 2011, é disto emblemático), indicando a força do negacionismo aplicado a relações causais e à (des)responsabilização dos tomadores de decisões geradoras de riscos. Exemplo recente é o de um vereador do Rio Grande do Sul que culpou as árvores pelos deslizamentos de encostas, entre outros contrasensos.

Ou então a conhecida campanha de imprensa dizendo que as favelas deveriam ser removidas por sua definição como “problema ambiental” das cidades. Ora, a moradia precária é, na realidade, uma, entre muitas, das manifestações do padrão desigual de distribuição dos riscos ambientais urbanos. Evidências empíricas mostram, a propósito, a vigência de uma lógica discriminatória de localização de equipamentos portadores de risco, sendo as populações negras, indígenas e de baixa renda expostas, de forma mais que proporcional, a seus impactos ambientais, assim como às dinâmicas inigualitárias do mercado de terras, à distribuição desigual de infraestrutura de saneamento, ao insuficiente acesso a moradia segura etc.

As situações assim configuradas de desigualdade ambiental são aquelas, portanto, que exprimem processos de concentração do poder, por parte dos agentes das práticas espaciais dominantes, de impactar a terceiros – os promotores de práticas espaciais não dominantes – e de não serem por eles impactados. Por esta razão, as grandes corporações, inclusive as imobiliárias urbanas, justificam no plano discursivo, licenças ambientais pouco criteriosas, flexibilização de normas e regressão de direitos. Impactos danosos e riscos serão alocados sistematicamente, de forma mais que proporcional nos espaços ocupados por grupos sociais despossuídos.

Em paralelo, a condição de vulnerabilidade experimentada pelos grupos despossuídos e racializados resulta da subtração de suas condições de resistência à imposição de agravos, inclusive climáticos, quando vigoram relações desiguais de poder nas dinâmicas espaciais de localização e de mobilidade urbana. A condição de vulnerabilidade exprime, assim, o fato de o Estado deixar de assegurar proteção igual para todos os seus cidadãos – como defesa contra enchentes, ilhas de calor, deslizamentos etc.

Em debates acadêmicos em torno à definição do objeto de estudos da disciplina da História Ambiental, certos pesquisadores conclamaram seus colegas a não se ocuparem das cidades, por elas serem supostamente expressão da cultura, estranhas ao objeto natureza. Os defensores da pertinência do tema do ambiente urbano retrucaram, por sua vez, que seria impossível estudar a natureza sem levar em conta aquilo que há dois séculos representou seu maior desafio: a urbanização em massa e a industrialização.

Excluir a cidade como construção cultural, dizem eles, suporia, ademais, desconsiderar que as paisagens agrárias também o são. Poderíamos acrescentar mais um argumento: a vigência de desigualdades ambientais na distribuição dos riscos urbanos indica que a gestão do ambiente das cidades é uma incontornável e específica questão política. Consequentemente, caso se queira garantir proteção ambiental para todos e evitar situações críticas como as que abalaram as cidades do Rio Grande do Sul, será preciso não apenas cuidar da manutenção das estruturas hidráulicas construídas ao longo dos cursos de água, mas também regular as práticas espaciais urbanas e extra-urbanas – no caso em pauta, da grande monocultura desmatadora – através de leis e normas que sejam resistentes aos esforços negacionistas de flexibilização, desmontagem e retrocesso.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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