Por que trabalhadores em funções 'heroicas'
ganham menos
Quase todas as pessoas
concordam que certas profissões inspiram reverência.
Veteranos de guerra,
bombeiros, profissionais da saúde e professores garantem nossa segurança,
salvam nossas vidas e cultivam as gerações futuras. Por isso, não surpreende
que nós os chamemos de "heróis" — uma palavra que evoca a força e a
abnegação que parecem evidentes nas responsabilidades diárias desses
profissionais.
O entusiasmo desses
sentimentos pode ser bem recebido, mas pesquisas recentes indicam que o rótulo
de herói também é carregado com premissas contraproducentes sobre as
necessidades e ambições pessoais desses trabalhadores.
A maioria das pessoas
considera, por exemplo, que os heróis simplesmente não se importam muito com
questões como o pagamento justo pelo trabalho que eles oferecem.
"Esta é uma clara
falácia da lógica e do raciocínio dedutivo", explica o pesquisador em
pós-doutorado Matthew Stanley, da Escola de Negócios Fuqua da Universidade
Duke, nos Estados Unidos.
E as consequências
para o mercado de trabalho podem ser sérias. As pesquisas de Stanley indicam
que a "heroificação" pode reduzir a remuneração dos profissionais e
levar as pessoas a ignorar políticas que resultem em más condições de trabalho.
"Nós nos
preocupamos menos com o mau tratamento se as pessoas exploradas forem
'heróis'", afirma Stanley.
• Faca de dois gumes
A inspiração de
Stanley para sua pesquisa veio dos profissionais da saúde, durante os primeiros
estágios da pandemia de covid-19.
Muitas pessoas do seu
círculo social, incluindo sua esposa, lutavam contra a sobrecarga de trabalho.
Elas sentiam que não estavam recebendo o apoio necessário.
"Os políticos
proclamavam o 'rótulo de herói', como elogio e reconhecimento, mas tudo parecia
muito vazio", ele conta.
Stanley é psicólogo e
começou a imaginar se a própria ideia do herói altruísta poderia fazer com que
suas necessidades fossem ignoradas. Se confirmado, isso influenciaria as
condições em muitas outras profissões, além da medicina.
Em conjunto com o
professor Aaron C. Kay, da Escola de Negócios Fuqua, ele projetou uma série de
estudos para avaliar as premissas das pessoas sobre profissões
"heroicas". O resultado foram dois estudos, um dos quais foi
publicado no Journal of Personality and Social Psychology no ano passado.
Em um deles, quanto
mais os participantes consideravam os educadores altruístas, menos eles se
opunham a uma política teórica que reduziria o salário dos professores.
Nas duas pesquisas
iniciais, Stanley e Kay confirmaram que as pessoas consideram os veteranos de
guerra como cidadãos muito mais heroicos do que a média americana. Esta
impressão está ligada à percepção de altruísmo e sacrifício pessoal.
"As pessoas
pensam neles em termos incrivelmente positivos — elas querem tê-los como
amigos, colegas de trabalho e vizinhos", explica Stanley. "Eles
formam o grupo dos heróis por excelência."
Em seguida, os
psicólogos examinaram as percepções das pessoas sobre os empregos que os
veteranos deveriam buscar depois de deixarem as forças armadas.
Em diversos
questionários, os participantes consideraram que os veteranos se enquadrariam
melhor em cargos que envolvessem o serviço a outras pessoas, como captadores de
recursos, paramédicos ou cuidadores domiciliares, em detrimento de empregos com
maior remuneração e associados a maior interesse próprio, como banqueiros
privados ou corretores de seguros.
Stanley e Kay
observaram respostas muito similares quando solicitaram aos participantes que
considerassem como os veteranos se enquadrariam em organizações específicas.
O resultado foi que os
participantes da pesquisa consideraram que alguém vindo da área militar seria
mais apropriado para um emprego na organização Habitat for Humanity (que ajuda
a construir casas para famílias de baixa renda) do que no banco multinacional
de investimentos Goldman Sachs.
Basicamente, os
pesquisadores concluíram que reforçar o estereótipo do herói aumenta o tamanho
do efeito. Quando os participantes observavam um logotipo dizendo
"contrate nossos heróis" ao lado dos seus questionários, por exemplo,
eles eram ainda mais propensos a endossar o trabalho beneficente para os
veteranos de guerra.
É claro que alguns
veteranos, de fato, preferem um trabalho com menor remuneração que envolva
servir aos demais, mas existe uma grande variação na preferência das pessoas.
Stanley suspeita que
essas premissas estruturais possam incentivar injustamente os indivíduos para
que sigam profissões que atendam ao estereótipo altruísta.
É fácil imaginar, por
exemplo, como o estereótipo do herói pode influenciar o aconselhamento de
carreira que eles recebem ou as decisões de contratação dos empregadores,
fazendo com que eles tenham maior possibilidade de entrar nessas profissões, em
detrimento de outros setores.
• Abertura à exploração
O segundo estudo de
Stanley e Kay observou as formas em que a heroificação pode incentivar a
exploração no ambiente de trabalho em muitos campos diferentes, como o
magistério, a enfermagem, a assistência social e o setor policial.
Solicitou-se aos
participantes, em primeiro lugar, que avaliassem se o trabalhador típico de
cada profissão era um herói, em uma escala de um (com certeza, não) a sete
(definitivamente, sim). Em seguida, eles precisavam estimar a probabilidade de
que aquela pessoa se apresentasse como voluntário para trabalhar um dia a mais
sem remuneração.
Como era esperado, as
respostas dos participantes foram correlacionadas. Quando os participantes
consideravam uma profissão como heroica, eles tinham expectativas muito maiores
de que os profissionais sacrificariam seu dia de descanso sem pagamento.
Os experimentos finais
dos pesquisadores estudaram a oposição dos participantes a políticas que
prejudicariam os direitos dos profissionais. O rótulo de herói reduziria ou
aumentaria a indignação das pessoas frente a notícias de cortes nos pagamentos
dos professores, por exemplo?
Para descobrir, os
psicólogos forneceram um texto detalhando uma política de corte dos orçamentos
das escolas e pediram a eles que declarassem sua posição em escala de um (forte
oposição) a sete (forte apoio). Em alguns casos, o texto era acompanhado de um
desenho de professores vestidos com roupas de super-herói; em outros, os
participantes observavam apenas o texto.
Talvez fosse de se
esperar que o respeito natural que nutrimos pelos heróis diminuiria o apoio aos
cortes de pagamentos – mas não foi o que aconteceu.
Aparentemente, graças
à associação com o altruísmo abnegado, os participantes tenderam a demonstrar
menos oposição à política quando observaram a ilustração dos professores com
capas de super-heróis.
"É de uma ironia
brutal", afirma Stanley. "A nossa veneração faz com que sejamos mais
tolerantes quando eles são mal tratados."
• Palavras vazias
As descobertas de
Matthew Stanley coincidem com as opiniões da professora de enfermagem em
terapia intensiva Nicki Credland, da Universidade de Hull, no Reino Unido. Ela
defende que a narrativa do herói pode prejudicar os conhecimentos e a educação
dos seus colegas.
"[Ela sugere que]
nós fazemos o nosso trabalho porque temos um chamado e um desejo inato de
ajudar as pessoas", explica ela. "Mas isso é tão válido sobre a
enfermagem quanto sobre muitas outras profissões."
"E causa impactos
negativos quando queremos ser adequadamente remunerados pelos conhecimentos e
técnicas que possuímos", afirma a professora.
Outros psicólogos
também elogiaram o novo estudo. A professora Sapna Cheryan, da Universidade de
Washington em Seattle, nos Estados Unidos, afirma que os resultados estão
totalmente de acordo com a literatura científica sobre "estereótipos
positivos".
Ela compara o estudo
com a ideia de "pobre, mas feliz" – a noção de que pessoas com renda
mais baixa, de alguma forma, vivem vidas mais simples e felizes, o que pode
reduzir as preocupações das pessoas sobre as causas da desigualdade.
"Nós oferecemos
um pouco de positividade às pessoas e, depois, nós as prejudicamos",
afirma ela.
Já o professor de
comportamento organizacional Nadav Klein, do campus da Escola de Negócios
Insead em Fontainebleau, na França, concorda que isso é possível, mas defende
que será preciso ter mais pesquisas para demonstrar a influência da
heroificação nos comportamentos do mundo real.
Como outros
preconceitos, ele surge da nossa tendência de traçar conclusões a partir do
"conhecimento insuficiente dos demais", explica ele.
"As pessoas podem
fazer premissas erradas com base em informações minúsculas". Esta
heurística é comum no raciocínio e na tomada de decisões pelos seres humanos –
e pode ser muito difícil de corrigir.
A solução mais óbvia
pode ser desestimular o uso do rótulo de "herói", mas Stanley
acredita que não seria algo viável. O termo é usado com tanta frequência para
transmitir respeito que seria difícil convencer as pessoas a parar de usá-lo,
segundo ele.
Ele acredita que a
resposta pode estar no cultivo de maior consciência das muitas razões que podem
fazer alguém escolher uma profissão "heroica", além do desejo de
ajudar os demais. Uma pessoa pode entrar para as forças armadas para passar
pelo treinamento e educação específicos do emprego, por exemplo.
As pesquisas de
Stanley concluíram que descrever esses motivos pode evitar que as pessoas façam
premissas incorretas sobre suas escolhas de carreira subsequentes.
"Deveríamos
ensinar ao público o que essas pessoas realmente querem, para que elas possam
fazer menos uso de 'caricaturas' e estereótipos", explica Stanley.
Na verdade, todos nós
somos indivíduos multifacetados, com muitas necessidades e ambições paralelas.
E reconhecer este fato não diminui necessariamente nosso respeito e admiração
por aquelas pessoas que nos mantêm seguros, protegidos e saudáveis.
Fonte: BBC Business
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