terça-feira, 30 de abril de 2024

Por que a esquerda precisa retomar a tradição marcial

m 2022, um grupo de lutadores profissionais manifestou apoio ao então candidato Jair Bolsonaro. O encontro do ex-mandatário com os lutadores ocorreu na escola Alliance Jiu-Jitsu, em São Paulo, sob o mote de que “quem luta de verdade, vota 22”.

Para quem conhece minimamente o meio das artes marciais, tal apoio não foi novidade. Trata-se de um ambiente que transita entre o conservadorismo e o reacionarismo. Normalmente, academias de lutas são lugares hostis a pessoas com pensamento minimamente progressista, além de, à imagem e semelhança dos quartéis, potenciais incubadoras de bolsonaristas. Mas por que isso acontece?

É importante compreendermos os motivos da maior inserção da direita no campo da marcialidade em sentido amplo, tendo em vista, sobretudo, que não se trata de um lugar alheio à tradição da esquerda. No Brasil anterior ao golpe de 1964, havia certo espaço para ela nas Forças Armadas ao ponto de haver condições para o surgimento de lideranças como Cândido Aragão e Carlos Lamarca. Foi também do Exército que vieram nomes como Luís Carlos Prestes e Gregório Bezerra. O próprio Frederich Engels dedicou vários escritos à questão militar, chegando a se alistar e a participar de combates. “O silvo das balas é coisa totalmente insignificante”, escreveu a Jenny Marx. “No decorrer de toda a campanha, apesar de ter presenciado muita covardia, não cheguei a ver doze homens exibirem covardia no momento da batalha. Por outro lado, o que não faltou foi ‘burrice corajosa’.”

“Se Ho Chi Minh nos ensina que o colonialismo tem suas bocas cravadas simultaneamente nos proletariados das metrópoles e das colônias, Frantz Fanon mostra que ele não é um corpo dotado de razão.”

A expressão “burrice corajosa” nos leva a refletir acerca do uso racional da violência e da marcialidade. Na medida em que é a violência a parteira da história, como bem disse Karl Marx, a condução política do seu uso não pode ser negligenciada. As lutas anticoloniais do século XX, por exemplo, com apelo a guerrilhas urbanas e rurais, invocam um passado em que a esquerda não apenas tinha dentes, mas se orgulhava em mostrá-los em nome do nascimento de uma sociedade sem miséria e exploração. Seja na Argélia, contra o colonizador francês, seja nos Estados Unidos, na luta dos Panteras Negras contra práticas racistas de discriminação, prisão e assassinato. Se Ho Chi Minh nos ensina que o colonialismo tem suas bocas cravadas simultaneamente nos proletariados das metrópoles e das colônias, Frantz Fanon mostra que ele não é um corpo dotado de razão, mas sim a violência em estado bruto, violência que só pode se inclinar diante de uma violência ainda maior.

•        Lições do passado para lutas do presente

Claro que a conjuntura que se apresenta não é a das lutas armadas. Mas isso não significa que o passado da Terceira Internacional, da sublevação dos povos colonizados, não deva ser lembrado como uma rica fonte de inspiração para as lutas presentes, principalmente em um momento no qual a contradição principal da sociabilidade burguesa, qual seja, a contradição entre o capital e o trabalho,  se acentua a cada ano.

A extrema direita, de matriz neofascista, costuma opor a imagem masculina e viril do pai-provedor, varão que porta o sacro estandarte da família e da propriedade privada, ao que considera uma frouxidão moral e de valores da esquerda, responsável por contaminar principalmente os jovens: a emancipação sexual e financeira das mulheres é vista como uma ameaça junto à reafirmação da população LGBTQIA+ e à ampliação e reconhecimento de direitos civis, sexuais e reprodutivos de modo geral. Contra isso, o uso da violência não é apenas moralmente autorizado, mas estimulado. Basta lembrar das palavras de Bolsonaro em 2018, incitando publicamente seus seguidores a fuzilarem a “petralhada”.

 Apesar da ameaça física ser real, concreta e iminente, há pouca disposição para acumular política e teoricamente sobre a questão da marcialidade – tanto a oficial e obrigatória, pertinente às Forças Armadas e de segurança, como a voluntária, referente a práticas desportivas e recreativas de artes marciais, além da prática politicamente conduzida para fins de autodefesa individual e coletiva. O apego a pacifismos vulgares e à passividade de motes como o de “ninguém solta a mão de ninguém” parecem ser um obstáculo à consideração da autodefesa como instrumento do cotidiano e da formação militante.

“O apego a pacifismos vulgares e à passividade de motes como o de “ninguém solta a mão de ninguém” parecem ser um obstáculo à consideração da autodefesa como instrumento do cotidiano e da formação militante.”

A tradição resumida acima mostra que não era para ser assim, em especial quanto às mulheres. O Pelotão Mariana Grajales, composto exclusivamente por mulheres, foi um dos agrupamentos mais importantes para o êxito da Revolução Cubana. Sua homenageada, Mariana Grajales Cuello, teve destaque na Guerra de Independência de Cuba no final do século XIX. Na Segunda Guerra Mundial, as tropas nazistas ficaram surpresas ao se depararem com mulheres no front soviético. A surpresa vinha exatamente do cativeiro doméstico que acreditavam ser o seu lugar natural, avesso à arena pública, que vai desde a política institucional até a marcialidade oficial, ambientes histórica e socialmente masculinizados.

•        A importância de confrontar a violência da extrema direita

Para o nazismo não havia construção histórica e social. Uma vez que a marcialidade é essencialmente masculina, não o são os espaços domésticos, tidos como desconformes à virilidade característica do homem. É dessa tradição que bebem o bolsonarismo e demais expressões do neofascismo contemporâneo, primas-irmãs do neoliberalismo. A esquerda, ao tentar romper com tudo isso, poria em ameaça esta ordem natural da família e da propriedade privada. Para conter seu avanço, vale tudo.

É possível que, com a derrocada da União Soviética e a chegada ao “Fim da História”, a consequente domesticação da esquerda aos limites políticos e econômicos do neoliberalismo e o crescimento de teorias pós-modernizantes e antimarxistas tenham contribuído para que a luta política contramajoritária esquecesse, em termos teóricos e práticos, o papel central da violência, seja em sua perspectiva cotidiana, mais sensível, seja em sua dimensão histórica. Afinal, foi também sob o porrete que as formas políticas e econômicas neoliberais ganharam o mundo após a implosão do socialismo soviético.

“Ainda na virada do século XIX para o século XX, praticantes de Kung Fu organizaram uma revolta anticolonial na China.”

Voltemos, assim, ao laboratório da história. Na Inglaterra Vitoriana, mulheres organizadas pelo direito de votar treinavam Jiu-Jitsu como autodefesa, inserido, portanto, num contexto de ação política e militante. Alvo constante da repressão policial, conseguiram identificar a arte marcial mais adequada para se defenderem contra homens maiores e mais fortes. Ainda na virada do século XIX para o século XX, praticantes de Kung Fu organizaram uma revolta anticolonial na China, a Rebelião dos Boxers, severamente reprimida por ao menos sete países colonizadores (Alemanha, Estados Unidos, Inglaterra, França, Japão, Itália e Rússia).

Nessa linha, não é à toa que o nome original dos Panteras Negras, um agrupamento marxista-leninista, era “Partido dos Panteras Negras para Autodefesa”. Por necessidade histórica, a marcialidade esteve presente na construção de sua identidade política e teórica, inspirada em boa parte nos escritos de Robert F. Williams, membro do Partido Comunista dos Estados Unidos conhecido, dentre outras coisas, por teorizar sobre a autodefesa armada legítima contra a violência ilegítima do racismo. A perseguição à população negra, envolvendo linchamentos e a insuficiência na concretização de direitos, os levaram aos caminhos da revolução socialista. Para tal, além de teoricamente afiados, seus militantes precisavam estar vivos e preparados fisicamente.

•        Autodefesa para ter longevidade

No texto “Um estudo de educação física”, Mao Zedong explica como a preparação física é fundamental para o trabalho político. Se o corpo é o invólucro da mente, que pensa e constrói a ação política, cuidar do corpo, tornando-o longevo, é tornar longevas também as virtudes desta ação. O corpo, ensina Mao, “é a carruagem que contém o conhecimento, a câmara que abriga a virtude”. Quando ele é forte, “pode-se avançar rapidamente no conhecimento e na moralidade e colher vantagens de longo alcance”. Corpo são em mente sã significa, para nós, maiores condições de organização coletiva e maior êxito em nossas intervenções. É neste ponto que reside a importância da autodefesa.

Sobram exemplos para realçar essa importância. Ainda entre os turnos da eleição de 2018, mestre Moa do Katendê, capoeirista, artista e educador baiano, além de reconhecido militante da cultura, foi assassinado por um apoiador de Bolsonaro após expor sua preferência pelo PT em um bar. Em 2022, o guarda municipal Marcelo Arruda, militante do PT do Paraná, foi morto a tiros pelas mesmas razões. Em 2020, durante os primeiros meses da pandemia, enfermeiros que protestavam pacificamente na Praça dos Três Poderes foram agredidos por uma turba de negacionistas de verde e amarelo. Depois do resultado das últimas eleições, militantes bolsonaristas usaram e abusaram da violência – naquele momento contra prédios públicos e veículos, mas potencialmente contra pessoas.

“Se a marcialidade e a preparação física fazem parte da tradição político-teórica da militância socialista, passou da hora de reavivá-la.”

Revigorar a marcialidade na militância de esquerda é fundamental não apenas para que os militantes, sabendo se defender, mantenham-se vivos, mas para que tenham melhores condições de tocar suas tarefas diárias com algum nível de preparo físico e solidez psicológica, imprescindíveis para que assumam desafios e possam lidar com as pressões tão características em quem se propõe a dar sua contribuição à construção de horizontes alternativos à sociabilidade capitalista.

Na esteira do slogan de que “quem luta vota 22”, bolsonaristas se sentiram à vontade para hostilizar o ministro Alexandre de Moraes e desferir um soco contra seu filho. Moraes, chamado de comunista pelos agressores, está longe de ter uma orientação política de esquerda, apesar de ser hoje um aliado circunstancial contra o bolsonarismo, cuja pobreza teórica o faz colocar todos os seus adversários no mesmo balaio ideológico.

Reincorporar a autodefesa e resgatar a marcialidade como instrumentos de projetos emancipatórios, guiados por uma linha política justa e radical, certamente ajudará na consolidação e nos acúmulos destes projetos. Se a marcialidade e a preparação física fazem parte da tradição político-teórica da militância socialista, passou da hora de reavivá-la, sob o risco de limitar, no tempo e no espaço, a vida útil dos militantes e de todo o potencial de transformação neles represados.

 

Fonte: Por Gustavo Freire Barbosa, em Jacobin Brasil

 

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