Por onde avançar com o Complexo Industrial
da Saúde
No segundo semestre do
ano passado, o Governo Federal revelou sua estratégia para o Complexo
Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), muito esperada pelo movimento
sanitarista: transformá-lo em uma das seis “missões” do também recentemente
anunciado programa Nova Indústria Brasil (NIB).
“O desenvolvimento
leva à boa saúde e uma boa política de saúde leva ao desenvolvimento. Essa é a
sinergia que orienta a nova estratégia”, avalia Reinaldo Guimarães,
vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e
pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Entrevistado em
recente live de Outra Saúde, ele sugere que a inserção do CEIS nos planos mais
amplos de uma nova industrialização do país pode se demonstrar um passo
acertado ao potencialmente garantir uma “âncora” para a política industrial da
saúde.
Mas para cumprir seu
papel de ancoragem, há um requisito óbvio para esta manobra, lembra Guimarães:
efetivamente oferecer a estabilidade exigida para o êxito de uma “política de
Estado”, e não apenas de governo, como deve ser o CEIS. “Se pensarmos na China,
que virou uma espécie de paradigma em projetos de longo prazo, as políticas
industriais se desenvolveram ao longo de décadas”, ele compara.
Para cumprir essa
tarefa, alguns pontos de atenção políticos e técnicos, enumerados pelo
estudioso, precisarão ser solucionados pelo governo. Na conversa ao vivo, o
sanitarista identificou as áreas em que o país já deu importantes passos nesse
sentido – e também onde ainda é necessário garantir um novo impulso para
assegurar o sucesso de sua estratégia.
• O cenário atual
Possuindo o maior
sistema de saúde público e universal do mundo, o Sistema Único de Saúde (SUS),
o Brasil já partiria na frente de outros países quanto à garantia do escoamento
dos produtos fabricados por uma indústria de saúde fomentada pelo CEIS, explicou
Guimarães.
Isso porque o “SUS é
um enorme criador de demanda no campo de produtos industriais. Ele compra algo
em torno de um quarto dos medicamentos brasileiros, quase metade dos
equipamentos de saúde e praticamente 90% das vacinas. Isso oferece uma
oportunidade de atender um mercado que não é difuso, fragmentado”, ele explica.
Contudo, hoje “estamos
em estágios diferentes de dependência” do mercado internacional para o
fornecimento desses produtos, aponta o pesquisador. Laboratórios públicos como
o Instituto Butantan, em São Paulo, e Bio-Manguinhos da Fiocruz, no Rio de
Janeiro, já garantem alguma autonomia em relação à produção de vacinas. Mesmo
assim, “nossa independência merece ser ampliada” com novos polos de fabricação,
comentou.
Um cenário “muito mais
grave, de muito mais dependência” pode ser observado no mercado de equipamentos
de saúde, revelou Guimarães, onde “oligopólios ferozes” dominam seu
fornecimento. “Quando se fala em equipamento, a gente pensa logo em tomografia
por emissão de prótons, que custa alguns milhões de dólares, mas não se
restringe a isso. Durante a pandemia, testemunhamos a escassez até de
respiradores, um produto que nossa indústria metal-mecânica tem total
capacidade tecnológica e produtiva de começar a fabricar, desde que haja
mercado e que a regulação proteja a produção nacional”, exemplificou.
Da mesma forma, a
indústria de insumos farmacêuticos ativos (IFAs) “praticamente desapareceu no
Brasil depois da abertura comercial desastrada [dos ex-presidentes] Collor e
FHC”, conta o médico.
“O que a estratégia do
CEIS precisa fazer é orientar a indústria a chegar a esses itens críticos para
o SUS, que são aqueles com que ele gasta mais e que são mais importantes para a
população”, indicou o entrevistado.
• O que enfrentar para progredir
Para agir frente a
essas condições, opina Reinaldo, o Brasil poderia aprender com o exemplo de
países do Sul Global que hoje possuem um respeitável parque industrial de
saúde, como a China e a Índia. “Os chineses compravam tudo e hoje produzem
tudo. Como fizeram isso? Houve uma trajetória”, ele instiga.
As negociações de
transferência de tecnologia, segundo indica, teriam sido uma ferramenta muito
empregada por seus governos nesse processo, utilizando seu “grande mercado e
capacidade industrial” – elementos que o Brasil também possui – como
instrumentos negociais frente aos parceiros estrangeiros.
A nível histórico,
ambos os países asiáticos também fizeram um uso estratégico da legislação
patentária para beneficiar sua indústria nacional. Enquanto China e Índia
demoraram anos para adotar as restrições previstas no Acordo TRIPS, um tratado
da OMC que regulamentou mundialmente as patentes de forma favorável aos
oligopólios do Norte Global, o Brasil demorou apenas dois anos para se adequar
– com grandes prejuízos para as empresas de capital nacional.
“Nossa Lei de Patentes
é absolutamente permissiva”, levando a um quadro em que “cerca de 85% das
patentes depositadas no Instituto Nacional da Propriedade Industrial, o INPI,
não são de brasileiros”, denuncia Guimarães. Por enquanto, o governo não dá sinais
de que fará alterações na legislação patentária, medida que poderia estimular
avanços na inovação farmacêutica.
Além disso, os Estados
chinês e indiano conseguiram firmar importantes parcerias com o empresariado
nacional. Por sua vez, “os empresários brasileiros na área farmacêutica têm a
‘boca torta’ e apresentam uma aversão ao risco muito grande, ainda que a indústria
já tenha musculatura para se arriscar”, ele avalia.
Ao “orientar a
capacidade de compra do SUS para os fornecedores nacionais” de forma mais
clara, o Ministério da Saúde pode dar alguns passos no sentido de quebrar essa
resistência e firmar uma interação que seja “virtuosa” entre os setores público
e privado nacionais, indica o professor da UFRJ. Por outro lado, é preciso ser
firme na exigência de ações de inovação e desenvolvimento por parte dessas
empresas, para que não se estimule a criação de novas fábricas que sejam meras
“montadoras” de produtos cujas partes vêm de fora, ele frisa.
Nada acontecerá em um
passe de mágica no desenvolvimento do CEIS, alerta Guimarães – e a “paciência
estratégica” será decisiva para manter a política caminhando a longo prazo. Até
o momento, a ministra Nísia Trindade tem cumprido um papel positivo na estruturação
da estratégia, que agora precisa de continuidade.
O que não se pode
perder de vista, ele conclui, é que “a missão de diminuir a dependência é
fundamental”.
Fonte: Por Guilherme
Arruda, em Outra Saúde
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