sábado, 27 de abril de 2024

O apelo indígena contra os combustíveis fósseis e a inoportuna surdez do governo

“Enquanto o mundo discute caminhos para viabilizar a transição energética e a redução urgente de gases do efeito estufa, o avanço das atividades extrativas da indústria de petróleo e gás no Brasil nos deixa em alerta. Certamente não será abrindo novas frentes de exploração que iremos protagonizar os esforços mundiais de enfrentamento da crise climática e promover a transição energética justa e popular.”

Este é um trecho da “Carta dos Povos Indígenas por uma Transição Energética Justa”. O manifesto foi organizado pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste e Minas Gerais (APOINME), e lançado após dois debates, realizados na quarta-feira (24/4) no Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília, sobre os impactos da extração de petróleo e gás nos Territórios Indígenas e as perspectivas dos Povos Originários sobre a transição energética na Amazônia.

O apelo indígena é claro: o governo brasileiro precisa ser proativo na eliminação dos combustíveis fósseis, condição sine qua non para tentarmos frear os efeitos cada vez mais frequentes e intensos das mudanças climáticas. Para isso, o país deve interromper imediatamente a exploração de combustíveis fósseis, sobretudo na Amazônia. E, simultaneamente, adotar estratégias que garantam uma transição energética justa e inclusiva, que de fato não deixe ninguém para trás.

Contudo, nenhum representante dos Povos Indígenas foi convidado para o seminário “Transição energética justa, inclusiva e equilibrada: caminhos para o setor de óleo e gás viabilizar a nova economia verde”, promovido no mesmo dia pelo Ministério de Minas e Energia (MME) a alguns poucos quilômetros do local onde se realiza o ATL. Na mesa, apenas gente do próprio MME, da Petrobras e da EPE. A escolha tinha uma razão óbvia: apresentar argumentos supostamente “técnicos” para justificar o aumento da exploração de combustíveis fósseis – inclusive na foz do Amazonas e nao interior da floresta – como passo necessário para a transição.

Nas últimas semanas, a ala pró-petróleo do governo federal adicionou uma camada na sua narrativa em defesa da exploração “até a última gota”: a “ameaça” de voltar aos tempos da importação do combustível se não abrirmos novas frentes de exploração. Acontece que, segundo dados da ANP – agência reguladora que também integra o grupo defensor da energia suja –, as reservas brasileiras provadas de petróleo no ano passado foram as maiores desde 2014. Estas garantem o atual nível de produção por 13 anos, até 2037. Se consideradas as reservas prováveis, com menor grau de certeza, essa autossuficiência chega a 18 anos – até 2042, portanto.

Claro que esse cálculo não considera o provável aumento da eletrificação do transporte, principalmente de carros e ônibus, que, obviamente, reduzirá a demanda por combustíveis fósseis. Sem falar no avanço dos biocombustíveis, como etanol e biodiesel, que também contribuirão para essa queda.

•        Royalties não cobrem a conta dos eventos climáticos extremos

Mas, no seminário, coube à EPE adicionar um argumento alarmista – e fake – para defender o indefensável aumento da exploração de combustíveis fósseis: as supostas “perdas” de tributos e royalties que teríamos se não extrairmos “até a última gota”. Pelos cálculos da estatal de planejamento, o país deixaria de ganhar [o que, claro, é diferente de “perder”] R$ 3,7 trilhões em 23 anos, no período entre 2032 e 2055, na forma de royalties e arrecadação de impostos.

Não sabemos qual preço do petróleo e cotação do dólar a EPE utilizou para fazer tal projeção. Mas o primeiro fator deve cair com o tempo, já que há uma tendência de queda progressiva da demanda por combustíveis fósseis a partir de 2030, segundo as projeções da Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em Inglês). Sem falar que, no Brasil, a tributação costuma mudar ao bel-prazer dos governantes da ocasião. A própria ANP, vez ou outra, defende a redução da alíquota dos royalties para “viabilizar a produção”.

Mas podemos fazer contas bem simples para mostrar os equívocos da EPE:

1.       O PIB anual brasileiro hoje é da ordem de R$ 10 trilhões. Supondo um crescimento muito pífio, de 2% ao ano, o PIB do período 2032-2055 somará cerca de R$ 360 trilhões. Ou seja, a tal perda representaria pouco mais de 1% do PIB. É sério, mas nada alarmante.

2.       No ano passado, a arrecadação de impostos da produção de combustíveis fósseis e de royalties somou cerca de R$ 100 bilhões. Sem aumentar a produção, e mantidas as regras atuais de tributação, seriam arrecadados R$ 2,2 trilhões entre 2032 e 2055. Ou seja, a suposta “perda” de novas explorações seria de R$ 1,5 trilhão, ou 0,4% do PIB do período.

3.       Os R$ 100 bilhões arrecadados ano passado correspondem à extração de 3 milhões de barris por dia. Assim, os R$ 1,5 trilhão “perdidos” correspondem à produção de outros 2 milhões de barris por dia. Ou seja, a EPE supõe que seja possível duplicar a produção a partir de 2032 – daqui a 8 anos. Sem o conhecimento das reservas da margem equatorial, miragem que se tornou o “eldorado” dos defensores dos combustíveis fósseis, tal esperança nada mais é que um tremendo chute. E isto sem contar que é impossível elevar a produção neste nível até 2032, já que o tempo que se leva desde o início da atividade de exploração até o começo da produção é da ordem de 10 anos.

4.       Por fim, o INESC estimou que o país deixou de arrecadar R$ 80 bilhões na forma de subsídios ao setor. Se mantidos, o país deixaria de arrecadar R$ 1,8 trilhão em subsídios no período usado nas contas da EPE. Ou seja, a perda estimada pela EPE foi – talvez desonestamente – superestimada.

Há, porém, outros dados ignorados pela estatal de planejamento. Uma pesquisa feita pelo Potsdam Institute for Climate Research Impact (PIK, da Alemanha) e publicada recentemente, mostrou que, mesmo que o planeta zerasse hoje as emissões de gases-estufa, a humanidade perderá renda equivalente a nada menos que US$ 38 trilhões anuais – isso mesmo, em dólares, e por ano, não em 23 anos – até 2049. Vale lembrar que pela dependência da economia do país de um clima adequado à produção agrícola, o Brasil é dos países com maior prejuízo econômico potencial por conta da crise climática. Os tributos e os royalties do petróleo certamente não cobrirão essa conta.

O ano de 2023 foi o mais quente da história, e tudo leva a crer que 2024 o superará. Mas a EPE, ao calcular “perdas” com a não exploração de combustíveis fósseis, esqueceu de considerar os prejuízos de R$ 401,3 bilhões, entre janeiro de 2013 e fevereiro de 2023, decorrente de desastres climáticos, valor (este, sim) que pode ser calculado como perda, de acordo com informação levantada pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM). E perda esta que não vai parar de subir, pelas razões já expostas anteriormente.

•        Se é necessário reduzir a demanda, por que então aumentar a produção?

Ainda no seminário pró-combustíveis fósseis, o secretário de petróleo e gás do MME, Pietro Mendes, disse que o Brasil precisa buscar a redução da demanda por petróleo e seus derivados, em vez de optar por reduzir a produção no processo de transição energética. Brilhante, não?

De fato, Mendes está certo em apontar a necessidade de se trabalhar pela redução da demanda. Por isso se fala tanto na eletrificação dos transportes. As próprias montadoras brasileiras anunciaram altos investimentos na produção de veículos elétricos e híbridos flex, que, além de eletricidade, podem usar gasolina e etanol.

É o caso da Noruega, que também costuma ser usada pelos defensores dos combustíveis fósseis no Brasil como “exemplo” por ter criado um fundo com recursos do petróleo e gás fóssil. No país nórdico, a demanda por veículos a combustão está despencando rapidamente: cerca de 82% dos novos carros lá vendidos são elétricos.

Mas fica uma pergunta: se estamos agindo para reduzir a demanda, e há de fato uma projeção de queda desta nos próximos anos, há algum sentido econômico em se aumentar a produção de combustíveis fósseis? A resposta parece óbvia. Mas o secretário ignorou e preferiu repetir o mantra da “importação” para mais uma vez defender o indefensável.

Nada como encerrar esta análise com outro trecho da própria “Carta dos Povos Indígenas por uma Transição Energética Justa” para resumir esse falso debate: “As atividades da indústria fóssil acumulam violações gravíssimas de Direitos Humanos, com um histórico de acidentes e impactos socioambientais e climáticos devastadores. O avanço da exploração de petróleo e gás no país nos coloca na contramão dos esforços globais de combate às mudanças climáticas. Se o Brasil quer liderar pelo exemplo, precisa fazer a lição de casa.”

Como se diz nas redes sociais, “fica a dica”. E não apenas para o Brasil, mas para todo o mundo: ou eliminamos os combustíveis fósseis já, ou a conta a ser paga será cada vez mais alta. E principalmente para os países do Sul Global, como o nosso.

•        Estados da Amazônia negociam créditos de carbono e se antecipam a Congresso e críticas do agro

Convidado pela Associação Comercial de São Paulo a palestrar para um grupo de políticos próximos ao MDB, o governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), contava para os colegas, nesta segunda-feira (22), a nova forma que seu estado encontrou para arrecadar bilhões de reais nos próximos anos: os mercados jurisdicionais de carbono.

Nesse modelo, os estados geram créditos de carbono a partir da variação positiva na taxa de desmatamento em relação a anos anteriores considerando todo o território, inclusive áreas privadas. Um crédito de carbono equivale a uma tonelada de CO2 que deixou de ser emitida devido à queda no desmatamento.

"A redução de ferramentas que acabam gerando uma concorrência federativa vai cada vez mais necessitar que os estados possam ativar suas vocações que os diferenciam na criação de novas economias", disse Barbalho ao responder uma pergunta sobre trecho da Reforma Tributária que dificulta incentivos fiscais estaduais.

Ouviam o governador, por exemplo, o ex-governador do Rio Grande do Sul Germano Rigotto, o ex-senador Heráclito Fortes e os deputados federais Baleia Rossi (MDB-SP) e Newton Cardoso Jr. (MDB-MG).

Hoje, esse modelo é estruturado principalmente pela Coalizão Leaf, que reúne 25 grandes empresas, como Amazon, Unilever e Nestlé, e quatro países desenvolvidos: Noruega, Reino Unido, Estados Unidos e Coreia do Sul. Esse grupo negocia com os estados a compra futura de créditos gerados até 2026.

Entre os estados amazônicos, Pará e Acre estão na frente das discussões com a coalizão.

O Pará pretende assinar o contrato de intenção de venda de um milhão de créditos no final deste semestre prazo ambicioso, segundo quem acompanha as discussões. Ao todo, Barbalho estima que até 2026 o estado vai gerar 153 milhões de créditos de carbono.

"O Pará está vendendo a US$ 15 o que a Costa Rica vendeu a US$ 10. Isso porque o sistema jurisdicional do Pará gera maior integridade do que o sistema jurisdicional operado na Costa Rica", afirmou Barbalho na segunda. A Coalizão também negocia com Gana, Equador, Quênia, Vietnã e Nepal.

Se os 153 milhões de créditos forem vendidos por esse preço, o Pará poderá arrecadar quase US$ 2,3 bilhões (R$ 12 bi). A ideia do estado é que 40% desse valor vá para políticas ambientais. Os outros 60% serão repartidos entre comunidades indígenas, quilombolas e produtores rurais.

No final do ano passado, o Acre assinou com a Emergent, braço coordenador da coalizão, um termo que dá início às negociações da venda de 10 milhões de créditos gerados entre 2023 e 2026 para as empresas da coalizão. A Emergent atua como intermediadora entre os estados e as multinacionais, e o governo do Acre também espera assinar o contrato de venda até o final de junho.

As partes fixaram uma linha de base que considera a média anual de desmatamento entre 2018 e 2022 (no caso do Pará, é de 2017 a 2021). A partir dela, o estado fará a comparação da variação do desmatamento a cada ano. Caso se constate queda do desflorestamento, o governo estadual registra seus créditos em uma certificadora e conclui a venda para a Emergent.

Exemplo: se em 2024, o Acre constatar que emitiu 1 milhão toneladas a menos de carbono em relação à média anual entre 2018 e 2022, ele conseguirá vender até 1 milhão de créditos para Emergent naquele ano.

A venda de créditos jurisdicionais, porém, não é exclusiva para a coalizão. O próprio Acre tentou no ano passado vender créditos de carbono gerados entre 2005 e 2015 para uma empresa americana, mas o negócio emperrou. Além disso, apesar de negociar a venda de 10 milhões de créditos para as empresas da coalizão, o Acre estima que produzirá entre 30 e 50 milhões de créditos até 2027 o restante poderá ser vendido para outras companhias.

Já o Tocantins, que também tem seu mercado jurisdicional, vendeu no ano passado seus créditos para a suíça Mercuria, que não faz parte da Coalizão Leaf.

No negócio com a coalizão, os recursos só serão depositados na conta dos estados após geração dos créditos e transferência deles para as empresas. Ou seja, por mais que os estados anunciem a venda em junho, o dinheiro só deve cair, de forma escalonada, no meio do ano que vem tempo que se leva, geralmente, para a certificação e registro dos créditos. Os estados negociam um adiantamento de 10% dos recursos para poder viabilizar as políticas ambientais.

Mas muito pode acontecer nesse período, inclusive a judicialização do tema. Isso porque o Congresso debate desde o ano passado a viabilidade dos mercados jurisdicionais o tema foi inserido no projeto de lei que regula o mercado de carbono, hoje parado no Senado.

Em Brasília, os governadores precisarão enfrentar a influência do agronegócio, que teme que os mercados jurisdicionais impeçam o desenvolvimento de projetos de créditos de carbono em áreas privadas. Esse, aliás, foi um dos motivos que atrasaram a aprovação do PL na Câmara, no final de 2023 o texto aprovado na Casa define que aqueles produtores que quiserem desenvolver seus próprios projetos precisam avisar aos governos estaduais.

Segundo Nelson Ananias, coordenador de sustentabilidade da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil), o agro vai pedir aos senadores para que tirem o mercado jurisdicional do projeto. "Há dúvidas da falta de clareza que esses mercados jurisdicionais apresentam e isso nos coloca contra esse processo", diz.

Mas para quem defende os mercados jurisdicionais, a possível retirada do tema do PL não afetará a venda dos créditos dos estados. Isso porque, na visão deles, a falta de regulamentação não inviabiliza a existência desse mercado. O próprio governo federal, a favor da existência desse sistema, defende que o assunto seja tratado em outro projeto.

"O mercado jurisdicional nunca foi proibido. A tentativa de regular é para poder dar mais segurança aos investidores", diz Leonardo Carvalho, presidente do Instituto de Mudanças Climáticas do Acre, técnico que está à frente das discussões pelo estado.

Mas Ananias, da CNA, rebate: "Como não é um mercado regulado, [a insegurança jurídica] cabe à negociação de quem compra e quem vende. Eles estão sujeitos a que isso não se realize, até por questão de contestação, inclusive judicial."

Caso o mercado não vá para frente, seja por aumento da taxa de desmatamento ou problemas legais, o risco fica com todos os atores envolvidos.

"É um risco assumido por todos: estado que se comprometeu a vender com a Emergent e empresas que se comprometeram a comprar em detrimento de alocar para outros. Então, existe um risco inerente, mas, obviamente, a gente também está acompanhando os resultados, as políticas públicas, os compromissos institucionais, para a gente ver se, de fato, a expectativa é de resultados positivos", diz Juliana Santiago, vice-presidente-executiva da Emergent.

 

Fonte: ClimaInfo/FolhaPress

 

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