sábado, 27 de abril de 2024

Milei 'foi amador' ao subestimar importância do Brasil e agora Lula 'cobra o preço', diz analista

A reação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao envio de uma carta do seu homólogo argentino Javier Milei revelou mais uma vez a falta de harmonia entre os governos dos dois maiores países da América do Sul, cuja relação comercial é de vital importância para ambas as economias.

Durante entrevista coletiva na quarta-feira (24), Lula confirmou que a chanceler da Argentina, Diana Mondino, entregou a Mauro Vieira uma carta escrita por Milei.

"Eu sei que o meu chanceler recebeu uma carta do presidente Milei, mas acontece que meu chanceler viajou e ainda não vi a carta. Quando ele regressar agora eu verei a carta. Não sei o que Milei está dizendo na carta, por isso não posso responder. A única coisa que eu posso adiantar é que depois que eu ler eu tenho interesse em informar à imprensa o que a Argentina pretende discutir com o Brasil", afirmou.

Na visão do analista internacional da Universidade Nacional de La Plata, Juan Alberto Rial, "a declaração de Lula não é inocente, tendo em conta as coisas que o presidente argentino disse durante a campanha sobre Lula e o Brasil".

Para Rial, o fato de o líder brasileiro não ter lido a carta é um gesto "intencional que não busca agravar a natureza do vínculo interpessoal, mas cobra seu preço pelas queixas recebidas durante a campanha". Nesse sentido, Lula "é um veterano da política" que tem "clareza da consequência de cada uma das mensagens e o objetivo que persegue", afirmou Rial em entrevista à Sputnik.

Embora o petista tenha dito desconhecer o conteúdo da carta, a mídia argentina noticiou que nela Milei propôs a Lula marcar um encontro entre os dois. Segundo o especialista, a mudança de posição do presidente argentino pode ser explicada pelas necessidades dos setores econômicos que o apoiam no seu país.

"Não estou convencido de que o presidente argentino esteja buscando uma aproximação com o Brasil, mas o que está claro é que o establishment econômico e financeiro argentino precisa estar em sintonia com o establishment econômico e financeiro brasileiro", disse.

O analista também sublinhou que o presidente argentino "peca pelo amadorismo" por não ter levado em conta a importância do comércio com o Brasil, principal parceiro comercial de Buenos Aires, superando a China e os Estados Unidos.

Nesse sentido, Rial destacou a importância da Argentina manter "relações maduras" com estes três países, além das posições pessoais dos líderes no poder.

"Se Milei não gosta de Lula, é problema de Milei e não precisa ser problema do governo argentino. No momento em que um presidente começa a cumprir um papel, suas divergências pessoais devem ficar em segundo plano", sublinhou.

O especialista argentino também relativizou o efeito concreto que essa "rusga" entre os líderes pode ter no comércio bilateral. Embora reconheça que a falta de harmonia entre Lula e Milei "não ajuda", garantiu que a complementaridade das economias faz com que o comércio entre Brasil e Argentina flua de qualquer maneira.

"Existem muitas indústrias brasileiras que estão integradas em cadeias produtivas com a indústria argentina. A mais emblemática é a indústria automobilística, onde Argentina e Brasil produzem componentes recíprocos de sua produção de automóveis e caminhões. Há uma integração que vai além do circunstancial e de quem é o presidente de cada país", explicou.

Rial lembrou, por exemplo, que os líderes anteriores, Alberto Fernández (2019-2023) e Jair Bolsonaro (2019-2022) "disseram coisas atrozes" um ao outro e mesmo assim o intercâmbio comercial permaneceu "normal": "É provável que a mesma coisa aconteça agora", previu.

Contudo, o analista abordou outro assunto que, segundo ele nesse, a diferença de gestão e diretriz entre Lula e Milei em seus respectivos governos devem pesar mais: o Mercosul.

"Milei não tem a mesma visão do Mercosul que Lula tem. Nesse aspecto, é mais provável que Milei esteja muito mais próximo do presidente uruguaio, Luis Lacalle Pou, ou do paraguaio, Santiago Peña", complementou.

Segundo dados do último relatório de comércio bilateral elaborado pela Câmara Argentina de Comércio e Serviços (CAC), o comércio bilateral entre Argentina e Brasil foi de US$ 2,324 milhões (R$ 11,94 milhões) no terceiro mês do ano, 14,5% inferior ao valor obtido no mesmo período de 2023, quando havia sido de US$ 2,719 milhões (R$ 13,97 milhões).

Da mesma forma, o câmbio melhorou 40,4% em relação a fevereiro passado, devido ao forte aumento das exportações em 69,7% e das importações em 17,9%, relatou a CAC.

¨      Como a crise econômica fez disparar o uso das criptomoedas na Argentina

Passaram-se 15 anos desde o surgimento das criptomoedas, com a invenção do bitcoin, mas em grande parte do mundo ainda há desconfiança em relação a esses ativos virtuais, que continuam a se multiplicar.

No entanto, há um punhado de países onde, por diferentes motivos, uma parcela significativa da população adotou essas novas ferramentas financeiras. Um desses países é a Argentina.

Embora seja difícil quantificar o fenômeno, uma vez que se trata de atividades não regulamentadas e descentralizadas, e, portanto, não há uma entidade que as reúna, há evidências claras de que muitos argentinos adotaram as criptomoedas.

Uma primeira pista está claramente visível: cidades como Buenos Aires estão repletas de publicidades nas ruas que promovem sites de troca de criptomoedas. Mas também há diversos dados do setor que confirmam sua popularidade entre os argentinos.

Em 2023, o país apareceu em 15º lugar no Índice Global de Adoção de Criptomoedas, compilado pela empresa americana Chainalysis, que analisa a indústria com base no volume de transações relatado pelos diversos provedores de serviços.

A Argentina foi o segundo maior mercado da América Latina, depois do Brasil. Enquanto isso, uma das plataformas de compra e venda mais populares do país, Lemon, relatou que 4 em cada 10 pessoas que baixaram um aplicativo de criptomoedas na América Latina em 2023 o fizeram a partir da Argentina.

A empresa argentina, que juntamente com a Binance - a maior plataforma de moedas digitais do mundo - domina o mercado local, estima que cerca de 3 milhões de pessoas usem plataformas de criptomoedas no país.

Isso colocaria os investimentos em criptomoedas quase ao mesmo nível do mercado de capitais tradicionais, onde são comprados e vendidos títulos negociáveis como ações e títulos.

De acordo com dados fornecidos à BBC Mundo pela Bolsas y Mercados Argentinos (BYMA), que reúne os principais atores do mercado de valores, em 2023 houve 3.647.912 contas com operações.

·        Primeiro registro de criptomoedas

Outro sinal do crescimento das criptomoedas na Argentina foi a abertura, no final de março, do Registro de Provedores de Serviços de Ativos Virtuais, criado pela Comissão Nacional de Valores (CNV).

O presidente da CNV, Roberto Silva, afirmou a este veículo de comunicação que o registro foi estabelecido por lei, seguindo as recomendações do Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI) para prevenir a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo.

"O objetivo do registro é identificar os provedores, uma vez que eles passaram a ser sujeitos obrigados", explicou, referindo-se às pessoas físicas ou jurídicas que têm a obrigação legal de relatar à Unidade de Informação Financeira (UIF) sobre a existência de transações suspeitas.

Silva afirmou que devem se registrar tanto as empresas de criptoserviços argentinas quanto as de origem estrangeira que direcionam suas operações a residentes argentinos, fazem publicidade no país, usam um domínio '.ar', têm subsidiárias locais ou geram mais de 20% de seu negócio na Argentina.

Embora o organismo só divulgue a lista de plataformas de criptomoedas quando o período de convocação, que era de 45 dias, terminar, fontes do setor disseram à BBC Mundo que várias dezenas de empresas já apresentaram sua solicitação.

A criação do registro visa evitar que a Argentina entre na "lista cinza" de países com risco de lavagem de dinheiro, o que complicaria as chances do país de renegociar financiamento externo. Mas por que o negócio de criptomoedas se expandiu tanto na Argentina?

·        Um "combo explosivo"

O especialista em criptoativos e professor de Tecnologia e Negócios, Rodrigo Civiello, afirma que a Argentina enfrenta um "combo explosivo" de quatro fatores que explicam por que muitos cidadãos decidiram adotar essa nova ferramenta financeira.

#### 1. Inflação de quase 300%

A rápida perda de valor do peso, superior a dois dígitos por mês, leva os argentinos a buscar outra moeda de reserva.

#### 2. Restrições cambiais

As restrições à compra de dólares - a forma mais tradicional de poupança dos argentinos - levam muitos a buscar moedas alternativas.

#### 3. Alta informalidade no trabalho

Os trabalhadores não registrados representam cerca de 50% do mercado de trabalho e não podem receber através de uma conta bancária, pois não conseguem justificar seus rendimentos.

#### 4. Insegurança

"É um fator que não é muito levado em consideração", diz Civiello. "Mas muitas pessoas que compram dólares não querem tê-los em casa. Com as criptomoedas, mesmo que o celular seja roubado, se você tiver a senha da sua conta, pode recuperá-la".

"Devido a todos esses fatores, a Argentina está na vanguarda", destaca à BBC Mundo.

Segundo a Bloomberg, em fevereiro e março, a compra de criptomoedas na Argentina aumentou tanto que até substituiu a compra de dólares como forma de poupança.

"A troca de pesos por dólares, o principal refúgio seguro há décadas, perdeu parte de seu atrativo nos últimos dois meses, já que a taxa de câmbio paralela comumente usada fortaleceu-se em 10% em relação ao dólar, enquanto o Bitcoin disparou quase 60% em relação ao dólar durante o mesmo período", informou a Bloomberg.

Embora o Bitcoin - que continua sendo a criptomoeda mais popular do mundo - esteja ganhando adeptos na Argentina, não é a mais usada no país.

De acordo com um relatório da exchange mexicana Bitso, 60% dos argentinos preferem as stablecoins, outro tipo de criptoativo considerado mais seguro, pois seu valor está vinculado a outro ativo, como o dólar, tornando-os menos voláteis.

·        Quem utiliza as criptomoedas?

Embora os números claramente mostrem que a Argentina é um dos países que mais está adotando criptomoedas no mundo, a verdade é que, para a maioria dos argentinos, elas ainda são algo desconhecido.

Civiello explica que seu uso, por enquanto, parece estar principalmente em alguns setores da população. Mas não são os grupos que se poderia pensar.

"Muitos imaginam que aqueles que usam criptomoedas são pessoas especializadas em finanças e mercados, mas a realidade é que, embora esses tenham sido os primeiros a usar essa tecnologia disruptiva, agora qualquer pessoa pode abrir uma conta, o que leva apenas cinco minutos", diz ele.

Os jovens, especialmente aqueles com empregos informais, são um dos grupos que mais as usam. Outro conjunto que as adotou são os freelancers, trabalhadores sem vínculo empregatício que oferecem serviços para o exterior, afirma o especialista.

Dessa forma, conseguem contornar a restrição que impede receber dólares em contas bancárias argentinas (só é possível receber em pesos, e todo dinheiro recebido do exterior é "pesificado" à taxa oficial, que é menor que a do mercado). Um terceiro grupo que usa criptomoedas são os imigrantes.

"Temos muita imigração de países vizinhos. Para enviar ou receber dinheiro de seus países de origem, até recentemente, tinham que recorrer a um serviço de transferência de divisas, que cobrava uma taxa de pelo menos 5% e a transferência levava entre dois e cinco dias úteis. Com as criptomoedas, é imediato", diz Civiello. Mas o setor talvez menos pensado que abraçou os ativos virtuais é um dos mais tradicionais do país, e um emblema da Argentina: o campo.

Os produtores rurais, os principais geradores de dólares na Argentina, não apenas adotaram as criptomoedas como uma forma alternativa de comprar a moeda verde no mercado paralelo (aqui chamado de "dólar blue").

Uma produtora rural, que preferiu não revelar seu nome, explicou à BBC Mundo que essas novas tecnologias até permitiram eliminar o dólar da equação, usando as próprias colheitas - especialmente a soja - como "moeda" de troca.

"No setor agrícola, usamos um aplicativo chamado Agrotoken, que nos dá um token para cada tonelada de soja", disse.

"Tradicionalmente, a unidade de medida no campo é um caminhão, que são 30 toneladas de soja. Antes, se precisasse comprar um insumo que valesse o mesmo que uma tonelada e meia de soja, tinha que vender um caminhão inteiro".

"Agora, apenas verificando quantas toneladas de soja tenho armazenadas em bolsas de silo em meu campo, posso 'tokenizar' a quantidade de soja que desejo e usar esses agrotokens para comprar o que preciso, através de um cartão associado à minha conta".

O sistema não apenas permite vender apenas a quantidade necessária de cultivo. Além disso, evita ter que transportar os caminhões até as empresas de grãos, já que esse processo caro só é realizado no final, uma vez que os tokens são resgatados.

Os tokens até podem ser usados como garantia para solicitar empréstimos em alguns bancos.

·        Regulamentações

O que acontecerá agora que foi criado um registro de provedores? Isso poderia desencorajar o uso de criptomoedas? E o que acontecerá com as plataformas que não se registrarem?

Segundo a CNV, os provedores que atendem aos requisitos para se registrarem e não o fazem não poderão mais operar legalmente na Argentina.

Para a Câmara Argentina Fintech, que reúne empresas de tecnologia que oferecem serviços financeiros, ter "um quadro normativo correto, que promova a inovação e estabeleça os incentivos adequados, ao mesmo tempo em que protege as pessoas que investem neles, é uma grande oportunidade" para o país.

"Hoje, a Argentina lidera a indústria de criptomoedas regionalmente, em termos de desenvolvimento tecnológico, empresas e adoção. Acreditamos que essa regulamentação dos Provedores de Serviços de Ativos Virtuais pode ajudar a complementar e consolidar esse processo, com um quadro normativo adequado, e estamos trabalhando nisso", disse à BBC Mundo o diretor executivo da Câmara, Mariano Biocca.

Em fevereiro passado, quando a compra de Bitcoin disparou, a ONG Bitcoin Argentina alertou que as denúncias de golpes com criptomoedas quintuplicaram, um problema difícil de combater em um mercado desregulado.

Tanto a Câmara Fintech quanto a CNV enfatizam que o registro regula os provedores, mas não os clientes, nem os ativos em si.

No entanto, a lei que criou o registro concede à CNV autoridade para regular e supervisionar o mundo das criptomoedas, e espera-se que o órgão convoque futuramente uma consulta pública antes de decidir como avançar.

Enquanto isso, o crescimento das criptomoedas na Argentina pode depender da capacidade do governo de Javier Milei de reduzir a inflação, suspender as restrições sobre o dólar, reduzir a informalidade no mercado de trabalho e melhorar a segurança, os quatro principais fatores que atualmente impulsionam a popularidade do dinheiro digital.

 

Fonte: BBC News Brasil

 

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