terça-feira, 30 de abril de 2024

Como Israel utiliza plantações de espécies invasoras para expulsar palestinos

A floresta Yatir na atual Israel é um bosque artificial plantado na região desértica do que os palestinos chamam de Naqab e os israelenses chamam de Negev. As quatro milhões de árvores que formam Yatir foram plantadas pelo Fundo Nacional Judaico, o Jewish National Fund (JNF) no início dos anos 1960, como parte de uma campanha de longa duração voltada para judeus nos Estados Unidos e no resto do mundo como ato beneficente ambientalista e meio de homenagear entes queridos.

Na verdade, como descreva a +927 Magazine, trabalhadores de florestamento do JNF foram acompanhados pela polícia militarizada israelense, armada com balas de borracha e gás lacrimogêneo, quando expulsaram beduínos, tribos pastoreiras árabes, que viviam onde hoje estão as árvores.  

Desde 1948, o governo israelense tem usado o “florestamento”, ou o plantio de árvores, para desalojar comunidades palestinas como Atir. Além disso, o florestamento serve para limitar o crescimento de outras comunidades e para esconder as evidências da destruição de antigos agrupamentos. Ao longo do tempo, organizações como o JNF têm ajudado a financiar as operações e a lavar dinheiro de contribuintes desavisados.

Expulsão via florestamento

“Desde a Nakba, o florestamento tem sido utilizado como ferramente para facilitar a expulsão e a despossessão de terras palestinas”, diz Myssana Morany, advogada no Adalah Legal Center for Arab Minority Rights in Israel. (“Nakba”, ou “catástrofe” em árabe, é como palestinos se referem ao seu deslocamento forçado provocado por forças sionistas em 1948).

O deslocamento forçado pelo florestamento israelense toma muitas formas, conforme descreve Morany. Imediatamente após a Nakba, sionistas utilizaram árvores para esconder ruínas de comunidades palestinas e para desencorajar o retorno dos residentes expulsos. Algumas das comunidades que permaneceram de pé foram cercadas por “reservas naturais”, permitindo ao Estado confiscar terras palestinas privadas para o uso público ostensivo enquanto impedia o crescimento futuro dos grupos locais.

Mais recentemente, a Israel Land Authority, Autoridade Fundiária de Israel e o JNF têm investido aceleradamente no plantio no Naqab, expulsando comunidades beduínas como Atir, cujos residentes se tornaram “invasores” onde antes viviam ou trabalhavam, uma vez que suas terras são consideradas como propriedade do Estado. No total, a JNF se gaba de ter plantado 250 milhões de árvores em Israel, e continua solicitando doações para expandir o plantio através de seu portal.

Um mapa interativo criado pela Adalah and Bimkom, uma organização israelense de direitos humanos, identifica comunidades beduínas no Naqab sob ameaça do governo israelense. Após a Nakba, a maioria das comunidades beduínas em Israel foi forçada para reservas concentradas em uma área militar fechada conhecida como Siyag (chamada algumas vezes de Sayig), carecendo de serviços básicos e de infraestrutura.

Até hoje, o governo israelense reconheceu oficialmente menos de uma dúzia de comunidades beduínas na Siyag, deixando trinta e quatro restantes sob constante ameaça de expulsão e demolição. Pelo menos nove estão sob ameaça iminente, o que significa que processos de despejo ou demolições já começaram. As comunidades podem ser forçosamente deslocadas sob variados pretextos do governo israelense, incluindo projetos de florestamento. 

Embora o JNF divulgue benefícios ambientais dos projetos de florestamento, como a revitalização do solo, a prevenção de inundações e o combate às mudanças climáticas através da captura de carbono, até isso parece ser falso. Críticos citados pela Yale School of the Environment dizem que a criação da floresta Yatir obliterou um ecossistema diverso de espécies raras e talvez tenha, na verdade, acelerado as mudanças climáticas ao reter mais calor que o deserto anteriormente refletia de volta para o espaço. De acordo com Morany, a Sociedade para a Proteção da Natureza em Israel, maior organização ambientalista  sem fins lucrativos do país, também afirmou que os projetos de florestamento no Naqab devem ser interrompidos, argumentando que eles “constituem uma ameaça significativa à biodiversidade única da terra”. 

O florestamento israelense não está confinado às fronteiras internacionalmente reconhecidas de Israel. Morany cita documentos da coligação governamental anterior do atual primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, em 2022, ligando explicitamente o governo ao florestamento de partes da Cisjordânia, que é amplamente considerada como território palestino ilegalmente ocupado por Israel. Segundo o Akevot Institute, que faz menção a documentos internos do JNF de 1987, a organização também tem plantado na Cisjordânia há décadas a fim de evitar que os palestinos usem terras que poderiam ser transformadas em colônias israelenses ilegais no futuro.

Dando um fim no duto caridade-maldade

De acordo com Morany, a Adalah tentou impedir novos projetos de florestamento, assim como o deslocamento forçado de palestinos, por meios legais em Israel, mas teve pouco sucesso. Para começar, os palestinos têm receio de se envolverem com o sistema legal israelense, que frequentemente decide contra eles, estabelecendo uma visão comprometida sobre se anteriormente existia pelo menos incerteza jurídica.

Além disso, Morany acusa que, quando apresentados com provas claras e fortes reivindicações legais de propriedade palestina, os tribunais israelenses recorrem a lacunas, como a reclassificação arbitrária de projetos de florestamento como projetos agrícolas, julgados, então, por burocratas, políticos e membros do JNF a portas fechadas. Há também o sionismo enraizado no sistema jurídico, evidente num caso do Supremo Tribunal Israelense de 2010, no qual um dos juízes defendeu o florestamento citando extensivamente a Bíblia.

Incapazes de recorrer aos tribunais ou de defender as suas terras dos trabalhadores florestais flanqueados pela polícia militarizada, os palestinos continuam a ser deslocados em favor das árvores, muitas delas financiadas por instituições de caridade, mas plantadas com segundas intenções. Obstruir o duto de caridade que alimenta a malícia talvez seja um dos únicos meios de estancar os esforços de florestamento israelense contra o povo palestino.

“As autoridades israelenses e o JNF se envolvem em greenwashing para mascarar os seus crimes na Palestina histórica, vendendo a imagem de amigos ambiente enquanto causam graves danos aos palestinos e, por vezes, também ao ambiente”, diz Morany. “Já observamos um caso em que os doadores, após refletirem, reconheceram e pediram desculpa pelas consequências de suas contribuições para o florestamento do JNF.”

O caso mencionado por Morany é o da Floresta África do Sul, em Israel. Financiada graças a contribuições ao JNF por judeus sul-africanos, a floresta foi plantada sobre a aldeia palestina de Lubya, cujos residentes foram expulsos durante a Nakba. Em 2015, os sul-africanos, incluindo alguns dos contribuintes originais para a floresta, pediram desculpas formalmente pelo seu papel no deslocamento forçado dos palestinos como parte da Stop the JNF, uma campanha internacional para revelar a verdadeira natureza do florestamento israelense. A campanha fornece material educativo e recursos de organização sobre o JNF, impedindo florestamento e acabando com a ocupação israelense da Palestina. Também solicita doações próprias para plantar árvores – oliveiras na Cisjordânia, para apoiar os agricultores palestinos.

 

¨      O atual massacre de palestinos por Israel já é tão catastrófico quanto o de 1948

 

Falamos com Bruno Huberman, professor de Relações Internacionais da PUC-SP, especialista em Palestina, sobre o momento atual do massacre dos palestinos em Gaza. Desde os desdobramentos da limpeza étnica em curso às possibilidades catastróficas de uma ampliação regional do conflito — e também das possibilidades para a paz, agora que entram em cena novos atores geopolíticos como a China e, ainda, se avizinham as eleições presidenciais americanas, colocando entraves ao apoio de Joe Biden à ação israelense. A situação atual é tão grave quanto aquela que se deu após a partilha da Palestina e a consequente fundação do Estado de Israel no final dos anos 1940.

Leia a entrevista:

·        Avança a emergência humanitária em Gaza sob ataque israelense: falta água, comida e atendimento hospitalar básico, em suma temos dois milhões de seres humanos em grave risco de vida. Israel pretende expulsá-los para o deserto do Sinai, no Egito. Quais as possibilidades disso acontecer?

BH - O plano ainda é expulsar os palestinos para o Sinai e esse plano está sendo movido em etapas, conforme o WikiLeaks atesta como verdadeiro — e, assim, terceirizar a questão de Gaza para o Egito.  Isso já está presente desde os anos 1940, com a expulsão de centenas de milhares de palestinos, e se fundamenta na ideia de que os palestinos são genericamente “árabes” e, portanto, poderiam se abrigar em qualquer país árabe.

Agora, Israel alega que a sede do Hamas estaria em Khan Younis, no sul da Faixa de Gaza, para justificar um ataque. O objetivo é empurrar os palestinos para o Egito. Inclusive, recentemente se falou que Israel estaria negociando com os Estados Unidos um alívio de dívidas do Egito com o Fundo Monetário Internacional (FMI) para que ele possa aceitar receber os palestinos expulsos de Gaza.

O ditador egípcio Al-Sisi sabe que isso é um enorme problema, uma vez que o Hamas é inimigo do seu governo, uma vez que ele é aliado da Irmandade Muçulmana, sua adversária interna.

·        Depois da inércia dos líderes muçulmanos e árabes em relação a Israel, mas com a piora da situação, agora uma delegação liderada pela Arábia Saudita irá até a China. O que esperar disso?

A inércia relativa dos líderes árabes é reveladora do poder que os Estados Unidos e Israel ainda têm no Oriente Médio. De fato, já houve consequências como a interrupção das negociações entre israelenses e sauditas; Turquia, Bahrein e Jordânia também chamaram seus embaixadores de volta – enquanto, especificamente, o Bahrein teria rompido relações comerciais.

Mas essas movimentações, por enquanto, são apenas para satisfazer a opinião pública interna desses países, que é muito favorável à causa palestina — tanto que os cidadãos desses países estão indo massivamente às ruas.

Há, ainda, o caso da delegação árabe, liderada pela Arábia Saudita, que foi à China buscar um aconselhamento e um maior envolvimento de Pequim na questão, o que pode levar a uma mudança. E temos o exemplo de como os chineses, recentemente, mediaram a paz entre o Irã e a Arábia Saudita.

Os chineses conseguiram representar de uma maneira melhor os interesses árabes — e palestino incluso –, porque apesar da aliança entre americanos e israelenses, a China tem uma boa relação com Israel e os dois países fazem grandes trocas comerciais. A atuação chinesa era bastante tímida sobre o genocídio de Gaza, mas hoje ela tem influência e capital para mover as peças necessárias e contribuir de forma decisiva para a paz.

·        Do ponto de vista interno de Israel, o que esperar do futuro próximo? Netanyahu é criticado, mas ainda lidera o governo de Israel, o que talvez cesse apenas com o final da guerra; agora, e se a conjuntura, daqui para frente, não for um permanente estado de guerra?

BH - A sociedade israelense tem passado por um “reavivamento patriótico” muito grande, o qual marca o esvaziamento da esquerda do país. Pesquisas apontam que o Partido Trabalhista, que fundou o Estado, não entraria sequer no parlamento na próxima. Isso é um processo importante, pois uma grande parte do eleitorado se divide hoje entre um setor centrista e outro de extrema-direita. Esses centristas não querem negociar uma paz justa com os palestinos e são racista e desumanizadoras — e são liderados por Yair Lapid, um dos favoritos para suceder Netanyahu.

Mas hoje, o fato é que essa extrema-direita segue no poder com Netanyahu, que está liderando um governo de unidade nacional. Apesar das pesquisas mostrarem uma insatisfação muito grande contra Netanyahu, elas não mostram o mesmo contra o esforço de guerra — e é a política que o sustenta no poder.

Muitos israelenses culpam o governo Netanyahu pelas falhas de inteligência e segurança que teriam permitido o ataque do Hamas no 7 de outubro, mas eles estão a favor desse estado de guerra. Portanto, é possível que Netanyahu busque um estado de guerra permanente para se manter, por mais que o clamor por cessar-fogo esteja crescendo no Ocidente, ainda que a passos lentos.

A questão é se os Estados Unidos, um país cuja opinião pública é favorável ao cessar-fogo imediato, vão apoiar, ao contrário, um aumento gigantesco do esforço de guerra. Então, Israel terá, em tese, de parar com isso, enquanto o ano eleitoral americano se aproxima. O apoio de Joe Biden ao conflito está se transformando em algo muito impopular, sobretudo entre sua base jovem e também entre a estratégica comunidade árabe-americana. A guerra, contudo, só continua por causa do poder do enorme lobby israelense, mas há um limite — e este limite virá da sociedade americana, não da sociedade israelense.  

·        E quais as chances de uma regionalização do conflito no Oriente Médio?

BH - O conflito já está regionalizado. Existe um limite entre o norte de Israel e o sul do Líbano. Já há envolvimento dos rebeldes houthis do Iêmen, que lançaram alguns mísseis e confiscaram embarcações israelenses, o que vai obrigar Israel a não usar o Canal de Suez para chegar em lugares da África e da Ásia — o que vai atrapalhar negócios dos israelenses; o conflito, lembremos, é bom para o complexo bélico-industrial de Israel, mas não para o resto da economia.

Portanto, existe um eixo de resistência contra Israel que envolve, portanto, Hamas em Gaza, Hezbollah no Líbano, os houthis no Iêmen e outros setores menores no Iraque. A tendência é uma distensão pela vontade americana e chinesa, embora Israel ameace uma grande ofensiva contra o Líbano — o que não é possível sem o aval americano; do mesmo modo, um ataque do Hezbollah contra Israel só ocorreria com o apoio do Irã.

·        E o que dizer desse anúncio desencontrado de trégua, que tem sido adiada?

BH - Essa trégua entre Israel e Hamas é muito bem-vinda, mas poderia ter vindo há semanas, pois temos relatos que um acordo semelhante havia sido proposto pelo Hamas logo no início, muito antes da invasão terrestre e da radicalização do bombardeio. Então, isso revela como Israel se negou a negociar com o Hamas sob o discurso fraudulento de que “com terrorista não se discute”, tudo para manter um contexto que lhe permitiria executar uma ação militar vultuosa, que significasse a limpeza étnica do norte de Gaza e o risco de expulsa de todos os palestinos de lá, que é a situação atual.

Aceitar a trégua significa que Israel encontrou dificuldades de alcançar o seu objetivo militar, isto é, derrotar o Hamas. E agora Israel está encontrando tempo para recalcular a rota. Pois o Hamas segue conseguindo resistir à operação terrestre e ainda bombardeia Israel. A trégua serve também para diminuir as críticas de que Israel está cometendo um genocídio e, assim, se colocar como respeitoso ao direito humanitário, o que é uma falácia.

Os atrasos na implementação da trégua parece ser que Israel almeja chegar nos 15 mil mortos oficialmente — para, ao menos, igualar o número de mortos da Nakba Palestina de 1948, sendo que já ultrapassou o número de deslocados, que gira em torno de 1 milhão contra 750 mil em 1948 e a destruição de residências já passa das 40 mil, além de outras 220 mil danificadas, somado à destruição de escolas, hospitais, fazendas e infraestruturas de esgoto, água, comunicação e viárias, contra 550 vilarejos em 1948. Parece haver a intenção de fazer da Nakba de 2023 um evento verdadeiramente paradigmático para o povo palestino.

 

Fonte: Jacobin Brasil

 

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