terça-feira, 30 de abril de 2024

As táticas usadas por empresas asiáticas para enviar drogas sintéticas para Europa e EUA

Há mais de uma década, quando Sammy deixou a sua aldeia na província chinesa de Sichuan para frequentar uma universidade no norte do país, ela estava seguindo um rito de passagem bem conhecido.

Mas, ainda assim, ela foi a primeira pessoa de sua família a ir para a universidade. Estudou inglês e tinha paixão por línguas estrangeiras. Sonhava em ser professora. Até então, ela nunca tinha ouvido falar de opioides sintéticos.

Depois de se formar, Sammy encontrou trabalho em uma empresa de produtos químicos na cidade de Shijiazhuang, vendendo o que ela pensava serem produtos químicos para clientes de todo o mundo.

Ela praticava inglês todos os dias conversando com clientes pela internet e ganhava uma comissão por cada venda que realizava. Seus sonhos de se tornar professora desapareceram rapidamente.

"Talvez outros sejam como eu… No início, não sabemos o que estamos vendendo, mas quando descobrimos, nos apaixonamos pelo trabalho", diz ela à BBC News.

"Este trabalho pode gerar dinheiro."

Sammy (nome fictício) é uma traficante de drogas improvável.

Agências internacionais de investigação estimam que possam existir milhares de vendedores de opioides na internet, trabalhando para empresas farmacêuticas e químicas chinesas ilícitas, que produzem e contrabandeiam essas drogas ilegais produzidas em laboratório.

O governo dos Estados Unidos vem repetidamente acusando empresas chinesas de inundar o país com drogas como o fentanil, um opioide sintético até 50 vezes mais forte do que a heroína. O governo chinês nega a acusação.

Os EUA dizem que os opioides fabricados na China estão alimentando a pior crise de drogas da história do país. Em 2022, mais de 70 mil americanos morreram de overdose de fentanil.

Os EUA têm um problema com o contrabando e abuso do poderoso opioide fentanil.

De acordo com um relatório publicado por um comitê dos EUA sobre o Partido Comunista Chinês, o governo do país asiático fornece subsídios a empresas que traficam abertamente drogas sintéticas ilícitas. O relatório encontrou dezenas de milhares de postagens na internet anunciando a venda dessas drogas ilegais.

O estudo afirma que empresas "totalmente estatais" estão envolvidas no tráfico de drogas. O governo chinês tem negado sistematicamente ter conhecimento do comércio ilegal de entorpecentes.

Muitos como Sammy entram no tráfico de drogas aparentemente por acidente, inicialmente sem saber dos produtos que vendem online e das suas consequências. Mas outros estão mais conscientes do que estão vendendo.

Todas as manhãs, Sara [nome fictício] publica fotos e vídeos em seus perfis nas redes sociais anunciando drogas: canabinoides sintéticos, MDMA, e nitazeno - um opioide considerado até 50 vezes mais potente que o fentanil.

"Temos muitos clientes na Grã-Bretanha e já cooperamos com eles muitas vezes" diz Sara, formada em Comércio Internacional, que agora trabalha para uma plataforma de vendas na internet.

Ela não se sente atraída por uma discussão moral sobre a venda de drogas. E afirma que nunca pergunta aos clientes como eles usam os produtos.

A Agência Nacional do Crime do Reino Unido (NCA) acredita que os traficantes de drogas estão misturando opioides sintéticos com outras drogas, como a heroína.

De acordo com a NCA, o Reino Unido registrou mais de 100 mortes ligadas a nitazeno nos últimos nove meses, o que levou profissionais de saúde a alertar que o país pode em breve enfrentar uma crise relacionada às drogas.

A BBC News encontrou centenas de anúncios de nitazenos na internet.

Os fornecedores ouvidos pela reportagem alegam enviar remessas por meio de serviços de correio expresso, rotulando as entregas e escondendo medicamentos em embalagens falsas.

A BBC também viu números de rastreamento de correio fornecidos por representantes de vendas na China - eles alegaram ter feito entregas bem-sucedidas em todo o Reino Unido.

Sara entrou no negócio depois da universidade. Ela pensou que estava vendendo produtos químicos. Trabalha no setor há dois anos e meio. "Conheço a maioria dos produtos", diz.

"Meu chefe dirige esta empresa há mais de sete anos e conhece muitos clientes e despachantes. Se o produto for retido, ele perderá mais. Portanto, ele fará o possível para que o produto chegue até você sem problemas", explica.

Em março, o governo do Reino Unido classificou 15 opioides sintéticos como drogas de "Classe A", consideradas perigosas. De acordo com a Lei do Uso Indevido de Drogas, qualquer pessoa pega fornecendo ou produzindo drogas ilícitas pode pegar prisão perpétua. Aqueles pegos em posse dessas drogas pegam sete anos.

De acordo com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), a China tem entre 40 mil e 100 mil empresas farmacêuticas.

"A China tem há muito tempo uma das indústrias farmacêuticas mais significativas da Ásia, bem como uma das maiores indústrias químicas. E temos visto o crescimento desse setor em outros países da região", disse Jeremy Douglas, representante regional do UNODC no Reino Unido.

"Embora ambas as indústrias sejam regulamentadas, o desafio é significativo dada a escala e, ao mesmo tempo, uma série de maneiras de movimentar produtos. As encomendas postais, o frete aéreo e os contêineres marítimos estão todos se movimentando globalmente em grandes volumes", afirma.

Douglas diz que os sintéticos estão movimentando o comércio tradicional de drogas. Fora da China, os entorpecentes sintéticos oferecem oportunidades tanto para as organizações criminosas tradicionais como para as novas empresas capazes de comprar diretamente de produtores de todo o mundo.

"Sintéticos como o fentanil têm diversas vantagens sobre os medicamentos tradicionais - compactos, facilmente transportáveis, com demanda pré-existente, substituíveis. Eles são atraentes para os traficantes", diz Douglas.

Isso foi confirmado nas conversas da reportagem da BBC News com vendedores que trabalham para farmacêuticas chinesas.

"Em primeiro lugar, nossa embalagem é totalmente secreta, ninguém sabe o que é até você abri-la e, em segundo lugar, mudaremos o nome da embalagem e não revelamos nenhum nome sobre o produto", afirma Sara.

"Receberemos o número do pedido logístico no momento do envio da encomenda, acompanhamos a situação da encomenda a qualquer momento e quaisquer anomalias poderão ser conhecidas e resolvidas a tempo", acrescenta.

De acordo com a Europol, a agência policial europeia, a China é o maior fabricante e distribuidor mundial de drogas sintéticas fabricadas em laboratório. Algumas delas imitam os efeitos de drogas tradicionais, como a cannabis e a cocaína. Os químicos sintetizam novos medicamentos para estarem um passo à frente da lei.

"É um empreendedorismo criminoso, mas em cenário legal que é realmente único”, diz Louise Shelly, diretora do Centro de Terrorismo, Crime Transnacional e Corrupção (TraCCC), da Universidade George Mason, nos Estados Unidos.

"Não vi tanto profissionalismo e elemento corporativo nisso em nenhum outro lugar do mundo. A atividade criminosa era um tipo de mobilidade social", diz Shelly, que também escreveu um livro sobre esse mercado.

Em 2020, pesquisadores do TraCCC estudaram mais de 350 sites em inglês que anunciavam o opioide sintético fentanil. "De todos os anúncios que encontramos, quase 40% deles eram de registros corporativos, e o maior centro desse mercado estava em Wuhan", diz Shelly.

Oficiais da Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA localizam fentanil e outros narcóticos escondidos em um pacote no International Mail Facility, em 28 de novembro de 2017, em Chicago, Illinois. O pacote vinha da China.

Os vendedores contactados pela BBC veem o comércio de drogas simplesmente como mais um aspecto do comércio eletrônico.

Quando questionada sobre a venda de drogas que prejudicam vidas, uma delas se descreveu como uma "intermediária".

"Alguém precisa, alguém faz, e eu sou apenas uma intermediária que informa aos clientes que eu tenho o produto. Não me importo com o que eles fazem com ele", diz ela. "Então descobri que só preciso ganhar dinheiro. Não sei e não me importo. Cada um tem suas próprias necessidades."

A mulher se orgulha de ter clientes do Canadá à Croácia. Ela forneceu fotos de remessas recentes de drogas completas com etiquetas mostrando um endereço no Reino Unido.

"A princípio, eu não sabia, até entrar na internet e traduzir o produto para o chinês", diz ela, por meio de uma mensagem pontuada por um emoji de choro.

Natalie [nome fictício] concentra-se no fentanil. "Essa indústria é fácil e você consegue salários mais altos, o que atrai um grande número de jovens", diz ela.

"Compramos em mais de 10 laboratórios diferentes e temos uma grande seleção. Tenho um agente de transporte profissional que embala mercadorias, por isso tem uma taxa de sucesso de entrega muito alta para o Reino Unido", completa.

Enquanto isso, outro fornecedor alegou ser capaz de contrabandear drogas para o Reino Unido escondidas em embalagens de ração para cães. "Você não precisa se preocupar com a embalagem. Garantimos uma entrega segura", afirma.

"Enviamos grandes quantidades para todo o mundo diariamente. Confie na nossa equipe profissional. Garantimos um transporte 100% seguro."

Em 2019, o governo da China proibiu todas as formas de fentanil e drogas similares. Em janeiro de 2024, a China e os Estados Unidos lançaram uma operação conjunta para reduzir a produção do opioide sintético fentanil.

"Enquanto a procura do mercado permanecer elevada em algumas partes do mundo, essa procura será satisfeita de uma forma ou de outra", afirmou Douglas, do UNODC.

¨      'Vantagem da China sobre os EUA' alimenta as tensões mútuas, diz especialista

O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, reuniu-se com o presidente chinês, Xi Jinping, na sexta-feira (26), como parte de uma visita de três dias à China – marcada pelas tensas relações diplomáticas entre Washington e a crescente potência asiática.

A China tem "vantagem sobre a América em muitos campos", o que aumenta as tensões entre os dois países, disse à Sputnik Francesco Sisci, especialista, autor e colunista da China baseado em Pequim.

A vantagem de Pequim sobre Washington reside em "possuir, até agora, a única capacidade de produção abrangente do mundo", observou.

"A China pode produzir qualquer coisa sem ir para outros países", disse Sisci. "Nenhum outro país é tão autossuficiente industrialmente, por assim dizer. Portanto, esta é uma grande vantagem em tempos de grande competição."

O analista acrescentou que o tempo mostrará se os EUA, que "tenta restaurar sua capacidade industrial", será capaz de fazê-lo "em uma capacidade semelhante à da China".

Em meio a esforços para isolar a Rússia a nível global, uma sucessão de líderes dos EUA visitou recentemente a China. Irritada com os fortes laços entre Moscou e Pequim, a secretária do Tesouro norte-americana, Janet Yellen, foi a China dar lições sobre comércio.

Agora foi a vez de Blinken se dirigir à potência asiática. Na sexta-feira, como parte da sua visita de três dias à China, o oficial dos EUA regurgitou afirmações de "práticas comerciais injustas" por parte da China e a possibilidade de os EUA e outros mercados serem inundados com produtos chineses.

A administração Biden tem alimentado uma lista de queixas contra a China, que vão desde a continuidade do seu comércio com a Rússia à medida que a crise ucraniana continua, até ao domínio de Pequim no desenvolvimento de veículos elétricos e outras áreas.

As autoridades ​​norte-americanas visitantes alternam a sua retórica entre a tentativa de estabilizar ainda mais as relações econômicas e comerciais com acusações de práticas comerciais injustas e de "superprodução".

Na verdade, a China tem "excesso de capacidade", para usar as palavras de Yellen, "em muitos campos inovadores, por exemplo, novas energias, baterias, painéis solares, alguns tipos de chips que são produzidos quase exclusivamente na China", observou Sisci. "Ter essas capacidades industriais em outros países é possível, mas exigirá tempo."

 

Fonte: BBC News Mundo/Sputnik Brasil

 

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