A lucrativa relação da Alemanha com a
ditadura brasileira
Regime
militar teve apoio do governo alemão e de importantes empresas, estimulados por
Guerra Fria e oportunidades de negócio. Já os exilados brasileiros enfrentaram
vida difícil no país europeu.
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Em janeiro de 2023,
quando apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro executaram atos golpistas em
Brasília, o governo alemão condenou enfaticamente a iniciativa. Há 60 anos,
quando o Brasil sofreu um golpe militar, a reação foi diferente: a então Alemanha
Ocidental prontamente reconheceu o novo regime militar como legítimo e
aprofundou a parceria com o país ao longo da ditadura.
Geopolítica e economia
explicam a diferença de comportamento. Em 1964, o mundo vivia a Guerra Fria e
estava polarizado entre o modelo capitalista dos Estados Unidos e o regime
comunista da então União Soviética. A Alemanha Ocidental era alinhada aos americanos
e tinha uma particular aversão ao comunismo – que governava a então Alemanha
Oriental e era combatido pela ditadura brasileira.
Interesses econômicos
também tiveram papel importante. A Alemanha Ocidental tinha filiais de diversas
empresas no país e era o segundo maior parceiro comercial do Brasil. A
aproximação com o regime militar contribuiu para que o investimento de empresas
alemãs no Brasil crescesse 350% entre 1969 e 1974, segundo um relatório
apresentado à Comissão Nacional da Verdade. Além disso, as políticas
antissindicais da ditadura achataram salários e ajudaram a ampliar os lucros
dessas companhias.
A relação amigável da
Alemanha Ocidental com o regime militar tornou mais dura a vida dos exilados
brasileiros que fugiram da ditadura e buscaram refúgio no país europeu. A
concessão de vistos era dificultada, e muitos eram obrigados a comparecer
regularmente a delegacias. Isso apesar de a chefia do governo federal alemão
ter ficado sob o comando de chanceleres do Partido Social Democrata (SDP), de
centro-esquerda, durante a maior parte da ditadura brasileira – Willy Brandt de
1969 a 1974, e Helmut Schmidt de 1974 a 1982.
No entanto, alguns
movimentos sociais, organizações civis e universidades alemães deram respaldo
decisivo a esses brasileiros, e participaram de protestos que criticaram a
visita em 1970 do então ministro da Justiça Alfredo Buzaid a Bonn, então
capital da Alemanha Ocidental, e a viagem oficial em 1978 do então presidente
Ernesto Geisel, que visitou Bonn, Berlin Ocidental e outras cidades alemães.
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Oposição a Jango
A aproximação de
setores influentes da sociedade alemã com o futuro regime militar brasileiro
começou já antes do golpe de 1964, por meio de canais políticos, religiosos e
econômicos.
O historiador
Francisco Carlos Teixeira da Silva, professor aposentado da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), relata que uma fundação da direita alemã
promovia no Brasil a divulgação de materiais de propaganda contra as reformas
de base do governo João Goulart, que durou de 1961 a 1964, associando-as ao
comunismo da Alemanha Oriental. Além disso, conta, clérigos alemães apoiaram
iniciativas conservadoras da Igreja Católica brasileira, como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade.
No âmbito econômico,
representantes de importantes empresas alemães no Brasil participaram de
articulações da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) para
preparar e sustentar o golpe, relata Rodolfo Costa Machado, professor de
história da PUC-SP que apresentou, junto com o pesquisador Vitor Sion, um
relatório à Comissão Nacional da Verdade sobre as relações das empresas alemãs
com a ditadura. Essas articulações eram "uma tentativa de mobilizar a
indústria civil para fins bélicos para uma eventual guerra civil, que não
veio", diz.
O trabalho apresentado
à Comissão concluiu que mais da metade das 16 empresas alemãs instaladas no
Brasil em 1971 engajaram-se diretamente com a ditadura, incluindo Volkswagen,
Siemens, Krupp e Telefunken.
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Negócios em primeiro plano
Membro da diretoria da
Associação dos Acionistas Críticos da Alemanha, uma rede de organizações que
compram ações de empresas para cobrar delas respeito a temas como direitos
humanos e meio ambiente, Christian Russau diz que a preservação dos investimentos
empresariais alemães no Brasil e a perspectiva de ampliar sua lucratividade foi
uma das forças-motrizes da política de cooperação entre a Alemanha Ocidental e
o regime militar.
"A Alemanha fez
muitos investimentos no Brasil, e o chamado milagre econômico brasileiro
[período de alto crescimento de 1969 a 1974] ajudou muito as empresas alemães.
O Brasil tornou-se um lugar onde elas podiam ter muitos ganhos, e por isso o
governo alemão fechou de propósito os olhos diante do problema da falta de
democracia", diz Russau, lembrando que a política anticomunista da Guerra
Fria também teve um papel.
Machado, da PUC-SP,
lembra que o período pré-golpe no Brasil foi marcado por uma "ascensão das
classes trabalhadoras por meio da luta sindical", interrompida em 1964.
"Uma das primeiras medidas da ditadura é restringir os direitos sindicais.
Isso aumenta a taxa de lucro das empresas e há um processo de militarização de
locais de trabalho", afirma.
O exemplo mais notório
desse processo ocorreu na Volkswagen, que contratava egressos das Forças
Armadas para suas equipes de segurança e contribuía com a delação e entrega de
funcionários aos órgãos de repressão. Em 2020, a montadora alemã concordou em indenizar ex-funcionários de sua filial
brasileira afetados pela colaboração da empresa
com a ditadura, e um relatório apresentado em 2021 trouxe detalhes dessa cooperação com os militares.
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Acordo nuclear contra vontade dos EUA
A proximidade entre o
governo alemão e a ditadura brasileira atingiu seu ápice com a assinatura do acordo nuclear, em 1975. A parceria envolvia a construção no Brasil de oito
usinas nucleares com tecnologia alemã, o desenvolvimento de uma indústria para
a fabricação de componentes e combustível para os reatores e a transferência de
tecnologia para enriquecimento de urânio.
A Alemanha Ocidental à
época considerava a energia nuclear a chave para a produção de energia no
futuro, e tinha interesse em expandir o uso da tecnologia desenvolvida por suas
empresas, em especial do grupo Siemens. O governo alemão, comandado pelo social-democrata
Helmut Schmidt, considerava o acordo com o Brasil estratégico, e firmou a
parceria apesar da forte oposição dos Estados Unidos.
Havia suspeitas à
época de que os militares brasileiros tinham interesse em aproveitar a
transferência de tecnologia para desenvolver uma bomba atômica, o que foi
oficialmente negado. Posteriormente, no entanto, revelou-se que a ditadura
brasileira tinha elaborado planos para desenvolver a bomba e fazer testes na
Serra do Cachimbo.
"O acordo nuclear
envolveu diversos ministérios, setores de alta tecnologia e universidades
alemães, foi muito orgânico", afirma Silva, da UFRJ. Apesar disso, pouco
saiu como planejado. Somente a usina Angra 2 foi construída com tecnologia alemã,
e Angra 3 ainda está em obras.
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Exílio alemão
Como o governo alemão
prezava a colaboração com o regime militar, não ofereceu apoio significativo
aos brasileiros exilados que buscaram refúgio na Alemanha. Pelo contrário,
muitos recebiam apenas vistos curtos de três meses, que precisavam ser
renovados com frequência, e tiveram pedidos de reunião familiar negados.
Um dos exilados
brasileiros que viveram na Alemanha naquela época é Marijane Vieira Lisboa,
professora de história da PUC-SP. Ela relata que a política alemã em relação a
todas as ditaduras da América do Sul era de "simpatia ou
indiferença", contaminada pelo clima da Guerra Fria.
Presa pela ditadura
brasileira por um ano e meio, Lisboa chegou à Alemanha em 1974, grávida de sua
filha, por meio de contatos da Anistia Internacional, depois de ter passado por
Chile e México, e morou no país europeu até o final de 1979.
"A Alemanha
lidava com refugiados como nós como se fôssemos subversivos", diz Lisboa.
"Em 1974, quando teve Copa do Mundo na Alemanha, a polícia ordenou que
comparecêssemos à delegacia várias vezes quando tinha jogo do Brasil. Se não
íamos, podíamos ser expulsos."
Ela recebeu uma bolsa
de uma associação religiosa para estudar alemão por seis meses na região de
Colônia e depois mudou-se para Berlim Ocidental, onde cursou sociologia na
Universidade Livre de Berlim. E credita o período que passou na Alemanha ao
apoio contínuo que recebeu de entidades da sociedade civil.
"Embora o governo
alemão tenha dificultado ao máximo a vida dos exilados, uma parte da sociedade
alemã – Anistia Internacional, associações religiosas, universidades – foi
extremamente solidária. E, no fim da ditadura, quando o regime militar estava
balançando, tivemos muito apoio desse setor", afirma Lisboa.
Ela diz ter trazido da
convivência com ativistas da sociedade civil em Berlim a inspiração para seu
engajamento posterior em causas ambientais e antinucleares: Lisboa foi relatora
do direito humano ao meio ambiente da Plataforma Dhesca de 2007 a 2012, e é
membra da Articulação Antinuclear Brasileira.
Ø
Gustavo Menon: 60 anos do golpe no Brasil e
as ditaduras no Cone Sul
O Brasil completa 60
anos de um dos momentos mais terríveis de sua história. A ditadura militar,
iniciada em 1964, foi marcada, sobretudo, por cerceamento de direitos,
violência e autoritarismo. O violento golpe liderado pelas Forças Armadas
brasileiras, aliado às grandes potências imperialistas e às frações das classes
dominantes internas, espalhou-se pela região. Sob o contexto da Guerra Fria, a
América Latina e o Caribe tornaram-se palco de arbitrariedades lideradas por
setores golpistas, muitas delas protagonizadas por militares dentro do contexto
da doutrina de segurança nacional.
As ditaduras militares
no Cone Sul iniciaram-se no Paraguai (1954) e, rapidamente, se espalharam pela
região, chegando ao Brasil, à Argentina, ao Chile e ao Uruguai durante as
décadas de 1960 e 1970. Como fator em comum, esses governos impuseram a militarização
do Estado, com as Forças Armadas assumindo um papel relevante na condução do
processo político. Por meio de violenta repressão às forças populares e às
instituições democráticas, esses regimes, sob o clima da Guerra Fria no mundo
bipolar, estabeleceram alianças estratégicas e programáticas com os Estados
Unidos na luta contra os setores progressistas.
Inúmeras manifestações
sociais foram silenciadas: sindicatos, intelectuais, partidos e até artistas
que se opunham aos governos militares. Ainda há muito a ser explicado sobre a
Operação Condor em nosso continente e os reflexos desse período de terrorismo
de Estado na conjuntura atual, marcada por um cenário de múltiplas crises e
ameaças à limitada e frágil democracia brasileira, como apontado por Florestan
Fernandes.
É importante recordar
que o ciclo de ditaduras militares na região — além de resultar em mortes,
tortura e violações dos direitos humanos — acentuou as desigualdades e
potencializou o problema da dependência e do subdesenvolvimento: enormes
dívidas internacionais foram contraídas com credores globais e o chamado
"milagre econômico" foi fonte para acentuação das assimetrias
domésticas. Entre 1954 e 1976, praticamente todo o subcontinente mergulhou em
regimes militares, promovendo a configuração de Estados de Exceção para
favorecer os interesses internacionais, especialmente dos Estados Unidos.
Com o objetivo de
promover a hegemonia do capital internacional, por meio da repressão aos
trabalhadores e às trabalhadoras, foram deflagradas execuções sumárias e a
restrição de direitos fundamentais. E as feridas das políticas do ciclo de
ditaduras militares na América Latina ecoam até hoje. Na Argentina, por
exemplo, em meio a um forte sentimento negacionista, nega-se a existência de
milhares de desaparecidos.
No caso brasileiro,
por sua vez, os crimes cometidos pela ditadura, em quase sua totalidade,
permanecem impunes. Apesar do trabalho da Comissão Nacional da Verdade (CNV), e
na guarda da Lei da Anistia, os responsáveis pelos delitos não foram levados à
Justiça — tanto as altas patentes das Forças Armadas quanto as empresas que
lucraram, apoiaram e sustentaram tais regimes de terror. Atualmente, depois de
cancelar atos críticos à ditadura, o governo federal, em nome de uma suposta
governabilidade, também desistiu da construção do Museu da Memória e dos
Direitos Humanos.
Sessenta anos após o
golpe de 1964, é importante ressaltar que o Brasil foi um dos últimos países
latino-americanos a estabelecer a Comissão da Verdade. Mesmo a iniciativa sendo
boicotada por muitos setores reacionários da sociedade brasileira, os movimentos
sociais se esforçam para cumprir o objetivo de recuperar parte da memória do
país e investigar as violações de direitos humanos cometidas por agentes do
Estado entre 1946 e 1988.
Em todo o mundo,
vários países adotaram iniciativas para resgatar a história e, em alguns casos,
identificar, processar e punir os responsáveis. Neste ano, é crucial destacar a
importância da tríade verdade, justiça e reparação no Brasil. Enfatizar a questão
das lutas e resistências e salientar o papel autoritário do Estado durante a
ditadura empresarial-militar brasileira é responsabilidade de todos que
compartilham o compromisso com uma sociedade justa, democrática e livre. Que
1964 nunca mais se repita! Nunca mais!
Fonte: Por Bruno
Lupion, para Deutsche Welle/Correio Braziliense
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