quarta-feira, 27 de março de 2024

Na transição entre Caatinga e Cerrado, povos tradicionais se unem para resgatar frutas nativas

À sombra do umbuzeiro, Maria Neves conta a Maria José que umbu maduro é feito mulher às margens de parir: tem urgência. “O umbu não tem feriado, é igual tirar leite, é todo dia”, diz Maria Neves Almeida, caaatingueira da comunidade de Furado da Roda, no município de Porteirinha.

Maria José dos Santos, conhecida por Zezé naqueles vales semiáridos do norte de Minas Gerais, concorda. “Você tá ali, debaixo da natureza, colhendo. Não tem riqueza melhor, não tem saúde melhor.”

Zezé, liderança extrativista na região, conta que por décadas o sustento do agricultor familiar vinha do algodão. Com a infestação do bicudo-do-algodoeiro, um tipo de besouro, na década de 1990, tudo mudou. “Quando a gente viu o algodão virar desse jeito, a gente achou que era o fim da picada, todo mundo ia morrer de fome”, diz.

Mas foi em campo minado por peste que as comunidades tradicionais do norte mineiro acharam esperança num gosto e cheiro esquecidos na infância: as frutas nativas.

“Chega nesse tempo, todo mundo tá colhendo as frutas e a cooperativa transforma em polpa. De lá pra cá, a melhora foi muito grande”, diz Zezé. “Para a gente colher o algodão, era a custo de veneno. Morreu muita gente intoxicada. Hoje o pessoal trabalha com as frutas sem veneno. Então, a saúde é outra. Já aproveita aquelas frutas, guarda pra tomar um suco natural, né? Hoje é assim, o pessoal largou a vida do refrigerante.”

Na área de transição entre Caatinga e Cerrado, caatingueiros, geraizeiros, veredeiros, quilombolas e indígenas vêm resgatando frutas nativas como o umbu, o buriti, o coquinho-azedo e o pequi. Este último guarda a fama de “carne do sertão”, pela riqueza de nutrientes e proteínas que guarda na polpa.

Além de gerar renda e melhorar a saúde dos povos tradicionais, a valorização das frutas tem beneficiado a saúde dos biomas: famílias e biodiversidade mantêm seus pés plantados num território ameaçado pela pecuária, pela cultura carvoeira, pela monocultura de eucalipto e soja e por crescentes projetos de usinas solares fotovoltaicas de grande porte.

Em atividade desde 2003, a Cooperativa Grande Sertão — em colaboração com universidades, cooperativas locais e o apoio financeiro de parceiros como o WWF e a Fundação Banco do Brasil — é a principal compradora da produção de frutas dos pequenos agricultores num raio de 600 quilômetros, abrangendo 36 municípios, mais de 280 cooperados e cerca de 2 mil famílias.

•        Carne do sertão

“A gente criou o olhar no Cerrado. A gente já anda olhando aquelas frutas que vão produzir de agora para frente. Anda visando se tá florindo, se vai dar produção boa”, conta Jorge Martins Corrêa, quilombola nascido e criado na década de 1960 no Quilombo da Onça, hoje com cerca de 45 famílias vivendo da agricultura familiar e do extrativismo em Januária. “Depois que a gente pegou esse conhecimento, hoje a gente tá sempre colhendo pra estar vendendo, né? O coquinho, o buriti, o cajuí, o pequi.”

“O norte de Minas passou depois da década de 1970 por um plantio de eucalipto gigante, em que foi derrubado o Cerrado de uma maneira muito agressiva. Com isso, a gente veio perdendo vegetação, biodiversidade e água. Como que você retira a sua carne do sertão?”, diz Sarah de Mello Teixeira, que cuida de relações interinstitucionais do Núcleo do Pequi, rede de associações e cooperativas parceiras em 16 municípios do norte de Minas Gerais, que fortalece a cadeia produtiva do pequi.

Em 1992, a sociedade civil se organizou e pressionou para a criação da lei que torna o pequizeiro imune de corte. Em 2001, quase 10 anos mais tarde, uma lei estadual criou o Programa Pró-Pequi, que valoriza a cadeia produtiva do fruto, desde a coleta até a comercialização. O incentivo na compra de produtos da agricultura familiar por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) também tiveram e têm grande importância para devolver a essa fruta nativa do Cerrado seu lugar de destaque e dar segurança aos extrativistas — que, por vezes, têm na safra do pequi a principal renda do ano.

“Nós chegamos a quase 700 mil quilos de pequi processados na última safra”, diz José Fabio Soares, engenheiro de alimentos e técnico da Cooperativa Grande Sertão, referindo-se à safra de dezembro de 2022 a fevereiro de 2023. “O que foi processado converteu-se em óleo, em pequi congelado e em polpa.”

A cooperativa ambiciona subir das 40 mil dúzias de pequi comercializadas atualmente para 200 mil dúzias nos próximos dois anos. Estima-se que em 2020 circularam mais de 50 milhões de reais com o extrativismo do pequi no norte de Minas.

Sarah destaca que a comercialização do pequi mineiro no Ceasa de Goiânia já deu mais dinheiro do que abóbora e coco, e ficou próximo da laranja.

“O extrativismo vai render muito mais do que um metro de carvão e vai render todos os anos”, diz Adailton Lopes Viana, presidente da Associação dos Usuários da Sub-bacia do Rio dos Cochos (Assusbac), que foi fundada em 2003 e tem o pequi como principal produto. “E aí você pode plantar mais um pé de pequi, mais dois, mais três e trazer isso para próximo do seu quintal, próximo da sua propriedade. A partir do momento em que você começa a enxergar o pequi como um potencial, você não vai querer desmatar, você vai querer aumentar a população.”

•        Uma porta, uma janela e um órgão

Quem garante metade da renda mensal da família do Pedro é o coquinho-azedo.

“Os outros 50% a gente se vira, a gente cria uma galinha, cria um porquinho, planta uma rocinha, planta um milho”, conta Pedro Pereira da Mota. “Depois que apareceu a cooperativa, a extração do coquinho ficou bem melhor. Agora a gente já pega e já entrega na cooperativa; a cooperativa passa pra frente, paga a gente e é um preço bom.”

Sueli Rodrigues Santos também integra a Cooperativa dos Pequenos Produtores Agroextrativistas do Vale do Peruaçu (Cooperuaçu), e o dinheiro da primeira safra de coquinho-azedo que vendeu facilitou seu trabalho. “Na época, eu peguei uns 300 ou 400 reais, aí eu pensei: ‘sabe o que eu vou fazer com esse dinheiro? Vou comprar uma bicicleta’”. A bicicleta ajudou na coleta do coquinho na safra seguinte.

O coquinho-azedo, com safra mais forte entre outubro e dezembro, é usado em polpa para suco e para cerveja. A Cooperuaçu  tem como principal compradora a Cooperativa Grande Sertão, que leva o coquinho e outras variedades de frutas para a fábrica de polpa, onde mais de 200 toneladas de frutas nativas e algumas variedades de frutas de quintal são processadas por ano. Também os indígenas Xakriabá cultivam o coquinho-azedo em São João das Missões e vendem para a Grande Sertão.

“Agora a gente faz dinheiro com o que a gente desperdiçava”, diz Wanderlandia da Silva Rodrigues, agricultora que agora trabalha na fábrica de polpa da Grande Sertão, no município de Mirabela, e já ganhou bastante vendendo caixas de manga. Uma porta, uma janela e um órgão musical — seu sonho de consumo — estão entre as compras que fez com o dinheiro do seu trabalho. Seus cinco filhos trabalharam também na fábrica. Uma das filhas é engenheira de alimentos e está pesquisando sobre o óleo de pequi para a tese de doutorado.

Erguer a cozinha, colocar piso no chão ou comprar um armário são relatos constantes das mulheres extrativistas sobre suas conquistas em todo o norte mineiro.

Zenita Lopes Rodrigues, por exemplo, atua como mobilizadora junto aos veredeiros que coletam a fruta dos buritizeiros no município de Brasília de Minas. “Muita gente não tinha nem um fogão a gás, e através do trabalho com o buriti conseguiu, né?”, diz a líder,  que visita os produtores e armazena as raspas do buriti em sua casa.

Depois, a Grande Sertão leva a produção para Montes Claros, continua com o beneficiamento e vende o óleo para uso cosmético. Para além da beleza, o buriti ganha gosto nas mãos de Zenita. “Tem mês que eu entrego mais de 500 doces lá na cidade.”

•        Tempo de maturar

As mudanças climáticas e a escassez de água têm impactado as safras de muitas frutas, inclusive a do buriti. Como as árvores dependem da umidade, há locais em que as veredas secam e as árvores morrem. Araras e periquitos também têm sido mais assíduos nas palmeiras, provavelmente pela escassez de outros alimentos, destruindo grande parte dos frutos. As safras têm tido período mais longo, mas com menor abundância. As veredas aguardam as chuvas para, só então, maturar e dispersar as sementes.

“O cacho está todo formado. Se não choveu, ele fica em dormência esperando para amadurecer”, explica Neucy Aparecido Fagundes, agrônomo e técnico da Grande Sertão. “Eu tô falando como se eu estivesse na cabeça do buritizeiro, né? Mas, se o clima tá seco, a planta vai entender que aquele fruto vai cair no chão e não vai prosperar.”

Quase metade do Cerrado já foi desmatado. Artigo publicado em novembro de 2023 aponta que as bacias hidrográficas do Cerrado estão secando e perdendo a capacidade de abastecer alguns dos principais rios brasileiros, como o São Francisco, o Madeira e o Tocantins. A mudança da cobertura do solo é um dos motivos

“O Cerrado é o pai das águas. Das 12 principais bacias hidrográficas [do Brasil], oito nascem ou recebem água do Cerrado”, diz Kolbe Soares, especialista em conservação do WWF-Brasil. “Então, o bioma tem uma importância super estratégica em termos de recursos hídricos.”

Rios se fazendo intermitentes e nascentes ressequidas fazem parte do cenário cotidiano dos agricultores familiares. É fácil atravessar pontes sobre rios do passado, hoje inexistentes.

“O Rio Pandeiros é um importante afluente do Rio São Francisco que contribui muito com a fauna, com os peixes do São Francisco. E ele é um rio que ano após ano tem reduzido a sua vazão”, diz Ernane Ronie Martins, professor da Universidade Federal de Minas Gerais. “Imagina um rio do porte do São Francisco perdendo um afluente que é biologicamente um dos mais importantes na bacia?”

É flagrante na região o aumento de perfuração de poços artesianos. “Hoje toda comunidade que antes usava recurso hídrico de um rio ou de um córrego tem que perfurar um poço”, diz Kolbe.

Bastante suscetível às mudanças climáticas, que acelera sua desertificação, a Caatinga é o terceiro bioma mais desmatado do Brasil. Artigo mostra que a expansão da agricultura, da pecuária e do desmatamento tem causado mudanças drásticas no bioma.

Diante do cenário, o resgate das frutas nativas com o fortalecimento dos povos tradicionais em seus territórios, mantendo a vegetação em pé, tem cada vez mais importância.

“Hoje uma pessoa não pensa mais em derrubar alguma árvore frutífera, que pode estar trazendo a renda para ela. Então, isso é muito bom”, diz Valdomiro da Mota Brito, tesoureiro da Cooperuaçu. “Eu não tenho dúvida de que nós prestamos um serviço para a humanidade. Isso aqui que nós estamos vendendo não é só fruta. Nós estamos vendendo uma qualidade de vida que também não é só pra nós. É pro mundo, né?”

 

Fonte: Mongabay

 

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