Hidrovia no Pantanal ameaça áreas
protegidas e pode inviabilizar a própria navegação
Um tiro no pé com
impactos ambientais irreversíveis. É assim que ambientalistas e pesquisadores
descrevem a proposta de construção de uma hidrovia no Rio Paraguai, principal formador
do Pantanal. O projeto, que prevê o aprofundamento do leito do rio para atender
aos interesses do agronegócio e da mineração, vem sendo paulatinamente
implementado e ganhou fôlego no governo Lula.
Distribuído entre Brasil (91,6%), Bolívia
(6,6%) e Paraguai (1,8%), o Pantanal é a maior área úmida de água doce do
planeta e Patrimônio Natural Mundial da Humanidade. A alternância entre
períodos de cheia e seca torna o bioma um berço de biodiversidade que abriga
milhares de espécies de aves, plantas e peixes, além de ser o lar de
comunidades tradicionais adaptadas aos pulsos de inundação.
A gravidade dos
impactos da Hidrovia Paraguai-Paraná levou a Associação para a Biologia
Tropical e Conservação (ATBC, da sigla em inglês) a publicar uma resolução
apelando para que o projeto não seja levado adiante. Segundo a entidade, que se
autoproclama a maior organização científica do mundo dedicada aos ecossistemas
tropicais, diversos estudos já demonstraram, “de forma clara e inequívoca, os
danos ambientais e sociais previstos para este projeto”.
As obras aconteceriam
no Tramo Norte do Rio Paraguai, como são chamados os cerca de 700 quilômetros
entre os municípios de Cáceres, em Mato Grosso, e Corumbá, em Mato Grosso do
Sul. O trecho é utilizado por pequenas embarcações de turismo e pesca, mas o leito
sinuoso e estreito impede a navegação de embarcações maiores e mais
pesadas.
Há décadas, isso é
motivo de frustração para empresários que veem ali a rota perfeita para reduzir
os custos da exportação de minérios e grãos — que seriam levados rio abaixo até
os portos marítimos da Bacia do Rio da Prata, na Argentina e Uruguai — e da
importação de insumos como agrotóxicos, fertilizantes e combustíveis.
Como solução, o setor
privado propõe a remoção de milhares de metros cúbicos de sedimento do fundo do
rio para abrir espaço para grandes comboios de barcaças de até 120 metros de
comprimento e 1,8 metros de profundidade. Em alguns trechos, pode ser necessário
fazer a retificação do rio, o que significa acabar com as curvas do leito e
torná-lo uma via reta, como forma de cortar caminho em direção aos portos do
sul.
Entre as áreas
afetadas pelas obras estão a Estação Ecológica de Taiamã, que tem a maior
densidade de onças-pintadas do mundo, o Parque Estadual do Guirá, um refúgio de
animais em épocas de cheia, e o Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense, um
Sítio Ramsar (área úmida de importância internacional) e Patrimônio Natural da
Humanidade, além de diversas reservas particulares (RPPNs) e da Terra Indígena
Guató.
“Esse trecho deveria
ser extremamente conservado”, diz Débora Calheiros, pesquisadora da Embrapa
cedida ao Ministério Público Federal (MPF) em Mato Grosso do Sul. Alcides
Faria, biólogo e diretor da ONG sul mato-grossense Ecoa, explica que o Parque
Nacional e a Estação Ecológica de Taiamã são as áreas mais intocadas do
Pantanal: “São duas regiões únicas no mundo. Têm uma quantidade de fauna
visível impressionante. É uma festa de vida”.
Os ambientalistas
alertam que os impactos não ficarão restritos ao Tramo Norte, já que esta
região é crucial para o controle do volume de água em todo o bioma. Segundo a
ATBC, a dragagem “resultaria numa redução da dimensão da planície de inundação
e da duração das cheias, comprometendo a integridade do ecossistema, a sua
fauna e flora altamente adaptadas e as estratégias tradicionais de utilização
dos recursos pelas populações humanas locais”.
A explicação é
simples: a água, que em condições normais se espalha por centenas de
quilômetros nos períodos de cheia, ficaria concentrada no leito do rio —
artificialmente rebaixado —, por onde escorreria mais rapidamente para fora do
Pantanal, ao invés de inundar os campos.
“O Pantanal é como se
fosse uma esponja. Ele recebe bastante água e drena lentamente, justamente por
ser uma planície. Por isso a água fica mais tempo no sistema,” explica
Calheiros, para quem a obra seria um desastre ecológico. “O funcionamento do
Pantanal, para abundância de aves, de peixes, precisa ter água no sistema.”
• Tiro no pé
O escoamento acelerado
da água em função da dragagem, aliado a secas severas e às mudanças climáticas,
podem virar um problema para a própria navegação. Um levantamento do MapBiomas
comparou picos de cheia do Pantanal e concluiu que as áreas alagadas diminuíram
29% no bioma entre 1988 e 2018.
O receio é que esteja
se repetindo o fenômeno da década de 1960, quando o Pantanal enfrentou uma seca
que se arrastou por vários anos. “Então como eles vão navegar? Eles vão dragar
mais ainda?”, questiona Calheiros. Ela está entre os 42 autores autores de um
artigo publicado no final de 2023 na revista Science of The Total Environment,
alertando que a diminuição da vazão pode levar à “interrupção da
navegabilidade” e tornar a dragagem uma “tarefa perpétua” com altos custos de
manutenção.
Entre 2019 e 2021, a
falta de água já impossibilitou a navegação por longos períodos do ano, mesmo
em áreas já dragadas do Rio Paraguai, entre Corumbá e a capital paraguaia,
Assunção. “Assim, apesar dos consideráveis esforços financeiros e técnicos,
o sucesso do projeto de navegação é duvidoso, enquanto enormes impactos
ambientais, culturais e sociais podem ser previstos”, afirmam os pesquisadores.
A redução da planície
de inundação também deixaria áreas maiores do Pantanal expostas ao avanço de
monoculturas, como soja e cana-de-açúcar, e às queimadas, acelerando um
processo de destruição que já está em curso. Em 2020, incêndios de grandes
proporções atingiram quase um terço do bioma, uma área do tamanho da Suíça, e
mataram quase 17 milhões de animais. Em 2023, novas queimadas atingiram um
milhão de hectares no mês de novembro, época em que isso não costumava
acontecer.
“Nessas dezenas de
anos em que eu trabalho e pesquiso o Pantanal, eu nunca tinha visto um quadro
como este, em que o desmatamento avança aceleradamente e por outro lado temos
os impactos visíveis das mudanças climáticas”, diz Faria. “A situação é tão estranha
que tivemos incêndios em novembro e agora estamos com muito pouca água, mesmo
no período da chuva.”
Segundo o site de
jornalismo ambiental ((o))eco, uma área do tamanho do Rio de Janeiro foi
desmatada no Pantanal entre 2019 e 2022, abrindo espaço principalmente para a
pecuária e, mais recentemente, para a soja. Enquanto isso, no planalto de Mato
Grosso, o agronegócio avança sobre as nascentes dos rios que desaguam no
Pantanal.
“Você já está mexendo
nas fontes de água, no início do sistema. Depois você ainda faz uma dragagem
que favorece uma vazão maior. Você vai drenar o sistema. Com menos água você
tem menos produção de peixes, que é o que sustenta a economia regional e a biodiversidade”,
alerta Calheiros.
Além da importância
para as populações locais, o Pantanal é peça-chave para o controle do
aquecimento global, já que as áreas úmidas são importantes armazenadoras de
carbono. Como alternativas à hidrovia, cientistas e ambientalistas da ABTC
sugerem o investimento em outros meios de transporte de cargas, como a melhoria
de ferrovias já existentes.
• Projeto já começou
A primeira tentativa
de implementação da hidrovia ocorreu na década de 1990, quando embarcações
desproporcionais à largura do rio começaram a se chocar contra as margens no
afã de escoar a crescente produção de commodities. A iniciativa, que era uma
parceria entre Brasil, Bolívia, Paraguai, Uruguai e Argentina, acabou
abandonada pelo alto custo ambiental.
Mas no ano 2000
diversos portos começaram a ser licenciados ao longo do Rio Paraguai, em uma
nova estratégia para emplacar a hidrovia. “Projetos foram estruturados em
diferentes trechos do rio sem publicamente evidenciar a conexão entre eles. O
licenciamento ambiental seria localizado, intervenção por intervenção, e
solicitado aos órgãos ambientais dos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do
Sul, e não ao Ibama”, escreveu Faria em um relatório publicado pela Ecoa em
2014.
A estratégia, barrada na época pelo MPF do
Mato Grosso, voltou a ser aplicada nos últimos anos. Em Cáceres, Mato Grosso,
estão sendo licenciados os portos de Paratubal e Barranco Vermelho. Já o Porto
Fluvial de Cáceres, desativado desde 2012, voltou a operar em 2020 graças a uma
parceria entre a Companhia Mato-grossense de Mineração e a Associação
Pró-Hidrovia do Rio Paraguai, uma entidade formada por produtores rurais e que
tem entre suas lideranças o deputado estadual Vanderlei Reck Junior (PSD).
“Quem mais força essa
situação são políticos do Mato Grosso, principalmente de Cáceres, e o setor de
produção de soja”, explica Calheiros.
O MPF-MT chegou a
conseguir uma liminar suspendendo os licenciamentos e determinando que os
processos fossem conduzidos pelo Ibama, e não pela Secretaria Estadual do Meio
Ambiente. O órgão também argumentou que os impactos dos portos não poderiam ser
analisados isoladamente e sem considerar a obra da hidrovia, sem a qual os
terminais não teriam por que ser construídos.
“Não há o menor
sentido lógico-jurídico em ser licenciada uma Unidade Portuária ou Porto
pela SEMA-MT [Secretaria Estadual do Meio Ambiente de Mato Grosso] que não
possa se valer juridicamente da navegabilidade em escala industrial da
hidrovia, em relação à qual não há licenciamento ambiental pelo IBAMA ou
Avaliação Ambiental Integrada pelo IBAMA! Afinal, embarcações paradas não
importam e nem exportam!”, declarou o MPF na ação civil pública.
A liminar, no entanto,
foi derrubada por uma decisão do TRF1 em abril de 2021, abrindo caminho para a
continuação dos empreendimentos. Segundo ((o))eco, terminais em Mato Grosso do
Sul também estão recebendo vultosos investimentos privados, entre eles os de
Porto Murtinho, Ladário e Gregório Curvo.
Em 2023, o governo
Lula incluiu a dragagem do Tramo Norte no Novo Programa de Aceleração do
Crescimento (Novo PAC). Questionado pela Mongabay, o Ministério de Portos e
Aeroportos informou que a obra se refere à dragagem de manutenção — que é
realizada todos os anos — e não à dragagem mais ampla, que seria necessária
para a passagem das barcaças. Ainda segundo a pasta, o contrato de realização
destas obras teve início em 2023 e prevê dragagens anuais até 2028.
Em março de 2023, uma
auditoria do Tribunal de Contas da União neste mesmo contrato revelou que o
documento prevê dragagens de manutenção, mas também deixa a porta aberta para a
realização da dragagem ampliada. Segundo o documento do TCU, “como o horizonte
contratual é de 5 anos, dentro desse período, poderia ser iniciada a
movimentação de cargas”.
Fonte: Mongabay
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