Gabriel Vilardi: O Golpe de 64 e a negação
do direito à memória - o que temes, presidente Lula?
Ter permitido que os
crimes da ditadura – porque é exatamente isso que são – permanecessem no
passado e assumir uma postura prospectiva não foi suficiente para evitar a bem
concreta e bastante perigosa tentativa de golpe no ano passado, presidente. A
cada semana o país assiste estarrecido a novas revelações da trama golpista,
com o envolvimento de militares de alta patente, empresários, políticos e
líderes religiosos fundamentalistas.
>>> Eis o
artigo.
“Eles quiseram me
deixar dependurado a noite toda no pau de arara, mas o capitão Albernaz
objetou: não é preciso, vamos ficar com ele aqui mais dias. Se não falar, será
quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis.
Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia”. Frei Tito de Alencar,
OP
Neste ano de 2024,
faz-se memória de três trágicas datas, porém nem sempre lembradas da forma que
se deveriam: os 60 anos do golpe civil-militar, que trouxe muitos abusos e
sofrimentos em meio às arbitrariedades impostas pela ditadura; os 55 anos do
covarde assassinato do jovem assessor de Dom Hélder Câmara, o Pe. Henrique
Pereira Neto (26/05/1969), sequestrado e torturado para calar a Igreja que
resistia aos desmandos autoritários; e os 50 anos da morte de Frei Tito de
Alencar (10/08/1974), frade dominicano torturado barbaramente até o suicídio. E
enquanto se aproxima a data de 31 de março, quando há 60 anos as Forças Armadas
acharam que podiam interromper o Estado democrático de direito, o país assiste
atônito a uma sequência de desautorizações do presidente da República ao
direito à memória.
Em entrevista dada ao
programa “É Notícia”, da RedeTV, no dia 27 de fevereiro, aquele que foi preso
político quando ainda era presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC em
1980, disse que o golpe “já faz parte da história” e que “não vai ficar remoendo”,
mas “vai tentar tocar o país para frente”. Afinal, “os generais que estão hoje
no poder eram crianças naquele tempo”, completou a principal figura de um
partido político que possui entre os seus fundadores inúmeros perseguidos pelos
anos de chumbo. “Eu estou mais preocupado com o golpe de 8 de janeiro de 2023
do que com 64”, vaticinou o governante que venceu nas urnas um dos despudorados
filhotes da ditadura.
Ao contrário de parte
da grande mídia que insiste há décadas em uma visão preconceituosa e risível ao
não reconhecer a aguçada inteligência do presidente, trata-se de fato inegável
a sua impressionante capacidade de ler a atuar nos mais adversos cenários
políticos, nacionais e internacionais. Um exemplo evidente de sua grandeza e
envergadura política foi dado recentemente, quando com coragem e lucidez foi o
primeiro líder mundial a denunciar o genocídio que vem sendo praticado pelo
governo israelense de extrema-direita contra a população palestina, na Faixa de
Gaza. Se ainda há pouco reconhecimento, certamente a história lhe dará o devido
crédito.
Como liderança
sindical que viveu na pele a falta de liberdade do regime ditatorial, o que o
leva a titubear diante de tema tão relevante para a democracia no país? Se está
verdadeiramente preocupado a envidar todos os esforços que cabem ao governo
federal para que os responsáveis pela tentativa de golpe de 08/01/2023 sejam
punidos, deveria rever de imediato as suas declarações e decisões sobre a não
recordação do golpe de 64 pelo governo. Seria no mínimo ingênuo, e isso o
experimentado político que governa o país pela terceira vez não o é, acreditar
que os dois eventos estão desconectados e que aquilo que “já é história” não
continua a reverberar nefastamente na realidade presente. Mas, então
presidente, por quê?
É por medo de uma
crise com o Alto Comando das Forças Armadas, que gere mais instabilidade no
país? Ou pior, teme uma nova tentativa de golpe que dessa vez seja exitosa?
Fingir que as ameaças estão sepultadas com a derrota dos golpistas do governo
anterior ou calar com receio de que haja uma escalada nas tensões só pode ter
um resultado, qual seja, fortalecer o sentimento antidemocrático da parcela
perdedora dos oficiais que apoiaram a tentativa de sublevação e, por
conseguinte, manter incólume o imaginário autoritário que grassa no país há
tempos.
Frei Betto, um dos
frades dominicanos que corajosamente lutou contra a tortura dos quartéis,
escreveu em um de seus livros, anos depois de ter saído de um desses calabouços
e de ter assessorado, por algum tempo, o primeiro mandato do petista:
“A esquerda, tão
obcecada pela terra das promissões, pelo futuro messiânico, nem sempre se dá
conta de que a direita funda seu poder na apropriação do passado. A direita, na
contramão de Hegel, volta atrás para pisar nas pequenas flores que restaram no
caminho, abrigadas sob majestosas copas de grandes árvores que lhes dão sombra.
Os mortos, a religião, a tradição... eis o que a esquerda por vezes despreza e
a direita apodera-se, açambarca”. [1]
São compreensíveis os
seus temores, presidente, afinal o país vive tempos perigosos. Um período
complexo em que é preciso defender Paulo Freire, ser contrário ao projeto
Escola Sem Partido, buscar a reparação histórica e demarcar os territórios
indígenas, coibir o desmatamento, lutar contra a misoginia e a LGBT-fobia.
Conquistas que se pensavam já asseguradas, estiveram prestes a se perder. Sim,
dá medo! Muito medo!
Mas, como dizia o
profeta do Araguaia, Dom Pedro Casaldáliga, quando perguntado se teve medo
alguma vez, “o medo é natural ao ser humano, o problema é ter medo do medo”
[2]. Infelizmente, os governos democráticos, desde o último general na
presidência, não souberam e não quiseram enfrentar a imprescindível justiça de
transição. Diferentemente dos vizinhos latino-americanos que julgaram e
prenderam seus torturadores. De um modo irresponsável, e aí se encontram os
sete ministros do Supremo Tribunal Federal que confirmaram a
constitucionalidade da Lei da Anistia em 2010, apenas se jogou o entulho
autoritário para “debaixo do tapete”.
Acontece que a
imundície voltou a vazar, porque sempre esteve por aí, só se encontrava
camuflada, com um verniz mais aceitável para as sensibilidades pós-Constituição
de 1988. Essa mentalidade da brutal violência dos fardados perdurou todos esses
anos nas forças policiais, que nunca deixaram de praticar sistematicamente a
tortura, como vem denunciando há décadas a Pastoral Carcerária [3]. Chegou-se
ao ponto de ter o governador de São Paulo, e ex-ministro do governo anterior,
dizer que não dá a mínima às denúncias nos órgãos internacionais contra as
execuções praticadas pela Polícia Militar na Baixada Santista. Até agora 48
mortes e – pasmem! – Tarcísio de Freitas “não está nem aí”!
Ter permitido que os
crimes da ditadura – porque é exatamente isso que são – permanecessem no
passado e assumir uma postura prospectiva não foi suficiente para evitar a bem
concreta e bastante perigosa tentativa de golpe no ano passado, presidente. A
cada semana o país assiste estarrecido novas revelações da trama golpista, com
o envolvimento de militares de alta patente, empresários, políticos e líderes
religiosos fundamentalistas.
Não passou da hora de
vencer o medo e entrar para a história como o presidente que lidou com firmeza
e ousadia com a herança maldita do autoritarismo civil-militaresco? “Coragem,
presidente Lula!”, bradaria com sua característica profecia o cardeal dos direitos
humanos, Dom Paulo Evaristo Arns. O arcebispo de São Paulo foi um colosso na
luta contra a ditadura e esteve na gênese do nascimento do Partido dos
Trabalhadores. Aproveite essa oportunidade histórica e dê uma lição de
democracia para os saudosistas do regime de exceção.
É preciso ser
implacável, segundo todo o rigor da lei, com os militares da ativa e da reserva
que ameaçaram a democracia. Não são dignos das Forças Armadas e devem ser
investigados, afastados e expulsos de seus quadros, conforme os seus próprios e
rigorosos regulamentos. Inclusive os poderosos oficiais dos últimos níveis.
Ninguém pode ser poupado, para pôr fim a essa danosa e prolongada impunidade.
Uma legislação que não deixe dúvida sobre a incompatibilidade desses agentes e
sobre o exercício da política deve ser providenciada com rapidez e empenho.
Os currículos das
escolas militares precisam ser urgente e imediatamente revistos, para que
recebam uma dose significativa de Direitos Humanos. Chamar pelo nome aquilo que
de fato aconteceu no país, sem eufemismos baratos. Isto porque os atuais
generais que estão no poder, senhor presidente, apesar de serem crianças na
época da ditadura, sorveram e foram alimentados por uma ideologia autoritária,
que continua se reproduzindo na caserna. Afinal, a formação desses servidores
públicos não pode ser outra que não a estrita legalidade e obediência total à
Constituição da República. Como em qualquer outra nação democrática, a Forças
Armadas devem estar sempre a serviço do poder civil, sem jamais ter espaço para
tentações contrárias.
Por outro lado, o
direito à memória precisa ser assegurado, sem meias verdades ou narrativas
fantasiosas. Ainda dá tempo de mudar de ideia, presidente Lula. Autorize que
seu ministro Silvio Almeida possa trabalhar com liberdade e apoio à frente da
pasta dos Direitos Humanos. As cerimônias e os discursos então planejados para
marcar os 60 anos do golpe são mais do que necessários e provavelmente
insuficientes para o desolador cenário que o país vive nessa seara. É
absolutamente inaceitável que uma data dessas seja marcada por um ensurdecedor
e acintoso silêncio por parte de um governo que se diga popular.
Outro assunto que
precisa ser trazido à baila é a convocação de uma nova Comissão Nacional da
Verdade, para investigar as cruéis violações dos direitos dos Povos Indígenas.
Aprofundar essa parte obscura da ditadura, por meio de especialistas
gabaritados e recursos suficientes, consiste em um importante passo na
reconciliação com os povos originários. O senhor não disse que seria um
excelente governante para os indígenas, tão massacrados historicamente?
Mais o tão prometido
Museu da Memória e dos Direitos Humanos, excelente iniciativa do ministro
Flávio Dino, não pode ser cancelado. Ao contrário, é imperioso fortalecer e
ampliar esses espaços ao redor do continental Brasil. Seria um avanço enorme se
houvesse um memorial desses nas capitais de cada Estado. Depois de tudo que
passou, a atacada democracia do país necessita de tais medidas enérgicas, não
acha senhor presidente?
Como vítima direta da
ditadura, o senhor sabe que não pode compactuar com todo o autoritarismo que
resiste nos quartéis e nos palácios do poder em Brasília. Esquecimento,
silêncio e recuos são inaceitáveis e soarão como escandalosa e imperdoável
omissão de quem pode e deve fazer diferente. Ouça seu companheiro de
militância: “objetividade e subjetividade são aqui faces de uma mesma moeda, a
do preço que se paga para que a memória das vítimas se torne, na história da
humanidade – como queria Walter Benjamin – perene e subversiva” (Frei Betto,
2009, p. 14). Não negue a sua história, nem a luta de tantos parceiros de
caminhada política.
Por favor, senhor
presidente, não ceda ao atraso e arbítrio de meia dúzia de generais
irrelevantes que podem se melindrar com suas ações pró-Estado de Direito! Esses
passarão e logo serão esquecidos pela história. Mas gaste seu capital político
e prestígio pessoal para fazer a coisa certa e deixar um legado democrático às
futuras gerações. Talvez, então, o "país do futuro" possa começar a
desabrochar com mais liberdade, sem chantagens e tutelas outras. Pela memória
de Padre Henrique Pereira Neto e Frei Tito de Alencar! Ditadura nunca mais!
Fonte: IHU
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