segunda-feira, 4 de março de 2024

Adhemar Bahadian: De que Brasil estamos a falar, quando falamos do Brasil?

Às vezes me surpreendo com o que leio e ouço sobre o Brasil. Ainda esta semana, soubemos que o PIB cresceu praticamente 3% no ano de 2023. Anunciou-se timidamente que ultrapassamos o Canada e passamos a ser a nona economia mundial.

Noves fora a China, que não é farinha do mesmo saco, apenas a Índia, dentre os países chamados em desenvolvimento, está à frente de nós.

Os progressos visíveis na renda familiar e no nível de emprego formal são indiscutíveis. Faz pouco tempo, os arautos da economia brasileira apregoavam a necessidade imperiosa de reduzir salários e direitos do assalariado, se quiséssemos nos comparar às novas tendências do capitalismo moderno.

Fazer o oposto seria um esquerdismo infectocontagioso. Curiosamente, Biden e Lula se engajaram num programa de valorização do trabalho formal e, não tão curiosamente, os Estados Unidos da América retomam crescimento econômico notável. Será que os Estados Unidos adernou à esquerda? Será que Paul Krugman, virou um marxista ou um stalinista, como Stiglitz?

Não deixa de ser relevante lembrar que tanto Biden quanto Lula sucedem a dois presidentes que se notabilizaram por proporem, tanto lá quanto cá, uma nova forma de governo em que a Democracia seria vertente de autoritarismo atentatório ao Estado Democrático de Direito.

Também me parece relevante recordar que, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, acusaram o “sistema" de ser o elemento desagregador não só da economia, mas também das pautas de conduta civilizacionais, criando-se assim, lá e cá uma, inédita miscigenação entre o religioso e o político.

Se nos Estados Unidos historicamente o preconceito racial já nos parecia uma anomalia teratológica, a transferência do ódio entre irmãos aqui no Brasil destruiu em pouco tempo nossas crenças numa sociedade cordial, apregoada como natural e quase genética em nossos livros de história e religião.

Tanto é verdade que o movimento chamado “Façamos a América Grande outra vez”, uma espécie de evangelho segundo Trump tem um inegável substrato racista ao defender a supremacia branca. Trump nunca escondeu seu ódio visceral a Obama, acusando-o inclusive de ter seu atestado de nascimento falsificado.

Difícil afirmar que o Trumpismo seja exclusivamente fruto do esgotamento do neoliberalismo, movimento que desde Thatcher e Reagan se havia arvorado em última etapa do capitalismo, fazendo naufragar as teses social-democratas ou o próprio keynnesianismo.

O que se pode afirmar sem sombra de dúvida é que desde a crise e a consequente quebradeira financeira de 2008, ficou claro que o neoliberalismo havia tornado os ricos mais ricos os pobres mais pobres e os remediados sem capacidade de pagar suas hipotecas.

O “Make America Great Again“ talvez seja a fórmula mais palatável para equilibrar de um lado os crescentes lucros dos super-ricos com a fantasia de que a classe média americana recuperaria seu "american way of life” do pós-guerra, quando a Europa se reconstruía e o Japão saía das cinzas. Ou, em outras palavras, quando a economia americana era imbatível.

Obviamente, como se está vendo, esta saída do neoliberalismo se alimenta de um nacionalismo exacerbado, com claras conotações fascistas, onde a primeira vítima é o Estado Democrático de Direito.

Os movimentos de invasão do Capitólio, nos Estados Unidos da América, e dos Palácios dos Três Poderes, em Brasília, são irmãos siameses da mesma má retórica.

Então, para finalizar, quando pergunto de que Brasil estamos a falar, me surpreende que os conservadores deste país - que respeito tanto quanto quaisquer outros cidadãos - não se deem conta que nossa Constituição de 1988, costurada após uma negra noite de autoritarismo, pautou de forma inatacável os parâmetros de uma sociedade democrática como a que estamos a construir, com as derrapagens que todos conhecemos, dentre as quais as que hoje ocupam as manchetes de nossos jornais.

Precisamos falar sobre a Constituição brasileira de 1988. Nela reside nossa restauração cívica e nossa convivência social. Além de nossa tolerância religiosa. Voltarei ao assunto.

 

Ø  Os desafios da esquerda. Por Paulo Nogueira Batista Jr.

 

Em vários países do Ocidente e do Sul Global, inclusive no Brasil, a esquerda se defronta nas décadas recentes com desafios talvez sem precedentes – e não está se saindo bem, de uma forma geral. Com o passar do tempo, os desafios se avolumam e esquerda se debate sem sucesso contra eles. O Brasil, com Lula, até constitui uma exceção, mas apenas parcial.

Estou me referindo, na verdade, à centro-esquerda, à esquerda moderada. A extrema esquerda não desempenha papel relevante. Em contraste, no campo da direita, os extremistas, apesar de alguns reveses importantes (notadamente as derrotas eleitorais de Trump e Bolsonaro), continuam fortes, ameaçando os partidos tradicionais de centro-direita e centro-esquerda.

O pano de fundo desses movimentos políticos é a crise da globalização neoliberal, iniciada ou agravada com o quase-colapso dos sistemas financeiros dos EUA e da Europa em 2008-2009. Essa crise financeira trouxe à tona um mal-estar generalizado da população dos países desenvolvidos com a economia e o sistema político. Os bancos privados foram socorridos com grande mobilização de recursos públicos enquanto a população endividada foi basicamente deixada à própria sorte. Cresceu o ressentimento, alimentando a eleição de Trump em 2016 e de outros políticos do mesmo naipe na Europa.

Esse mal-estar com a globalização é mais antigo e mais amplo do que a crise financeira de 2008. O que aconteceu nos últimos 30 ou 40 anos nos EUA e na Europa foi uma dissociação crescente entre as elites e o resto da população. A renda e a riqueza se concentraram nas mãos de poucos, os ricos ficaram mais ricos, ao passo que o grosso da população viu a sua renda estagnar ou retroceder. A confiança no sistema político desabou. Espalhou-se a percepção de que não há democracia, mas plutocracia – o governo dos endinheirados. Pior: ficou patente que o que prevalece é uma caquistocracia – o governo dos piores. A baixa qualidade da maioria dos líderes políticos ocidentais está aí, à vista de todos.

Esse declínio das lideranças do Ocidente reflete algo maior: o declínio do establishment dessas nações, crescentemente dominado pelo rentismo e pelo capitalismo predatório. Especulação financeira, privatizações destrutivas, fusões e aquisições, manobras de mercado de todo tipo substituem a produção e a geração de empregos de qualidade. A decadência parece bem evidente. Versões anteriores do establishment dos EUA teriam permitido que o eleitorado ficasse reduzido a escolher em 2024, como tudo indica, entre um presidente senil e um bufão irresponsável?

Não por acaso, a China, que nunca seguiu o modelo neoliberal, tornou-se “a fábrica do mundo” às expensas das indústrias do Ocidente. O Brasil, infelizmente, também caiu na armadilha da globalização e ainda não conseguimos dela escapar. Era inteiramente previsível. As elites locais, em geral servis e medíocres, mimetizam as elites estado-unidenses, trazendo para cá o que há de pior.

No plano político-partidário, quem foi prejudicado e quem foi beneficiado pela crise da globalização neoliberal? Entre os prejudicados se destacam, merecidamente, os partidos tradicionais de direita, identificados com a defesa do modelo concentrador. Note-se, entretanto, que o prejuízo recai não só sobre eles, como também sobre os da esquerda moderada – a social-democracia, os socialistas e outros semelhantes. Previsível: afinal, a centro-esquerda foi sócia das políticas econômicas excludentes. Em muitos países, governou em coalizões com a direita tradicional. Quando chegou ao poder como força hegemônica, pouco ou nada fez para mudar o rumo da economia e da sociedade. Assim, passaram a ser vistos, junto com a centro-direita, como parte de um mesmo “sistema”.

Contra esse “sistema”, a extrema-direita se insurge, mesmo que muitas vezes apenas da boca para fora. Comandada por líderes carismáticos e espalhafatosos, como Trump, Bolsonaro e Milei, conseguiu vencer diversas eleições importantes. Despreparada e primitiva, contudo, a extrema-direita não governa de modo eficaz e promove mais confusão do que reformas. Mantém ou aprofunda a orientação conservadora em economia, disfarçando essa concessão com atitudes extremadas na pauta de costumes. Não passou no teste de fogo da pandemia da Covid-19, o que contribuiu de modo importante, como se sabe, para a não-reeleição de Trump e Bolsonaro. Recuperou-se, contudo, dessas derrotas, como se nota pela vitória de Mile, o prestígio de Trump e Bolsonaro, sobretudo do primeiro, e a ascensão de radicais de direita em alguns países da Europa.

O que aconteceu com a centro-esquerda em outros países, talvez seja relevante para o governo Lula e os partidos que o apoiam. Parece intrigante, à primeira vista, que a centro-esquerda dos países desenvolvidos não tenha conseguido capitalizar para si a crise da globalização. Parte da explicação já foi mencionada acima: o condomínio de poder formado com a direita tradicional. Mas vamos tentar aprofundar a questão um pouco mais. O fato é que a centro-esquerda também se tornou tradicional e elitista, acomodou-se, perdeu contato com a população e mostra não compreender os seus problemas reais. Corre o risco de definhar por não entender as mudanças em curso. Como na mitologia, a esfinge de Tebas adverte: “Decifra-me ou te devoro”.

Um exemplo de uma estratégia problemática: abraçar a agenda identitária, que é uma agenda liberal, contribui para o isolamento da esquerda. Vamos nos entender: defender as mulheres, os negros, os indígenas, os homossexuais e outros grupos discriminados é indispensável. Porém, essa defesa não pode ser a plataforma central da esquerda. De um modo geral, o identitarismo não conta com a atenção ou a simpatia da grande maioria dos trabalhadores e dos setores de menor renda, geralmente às voltas com a luta pela sobrevivência. Os temas econômicos e sociais – emprego, renda, injustiça social – continuam prioritários para eles. A extrema direita tenta desviar a atenção desses temas com discursos religiosos e conservadores. A centro-esquerda acaba esquecendo-os ao focar nos temas identitários.

Uma questão crucial na Europa e nos EUA, ainda não presente no Brasil, é a imigração. A extrema-direita vem se beneficiando amplamente da sua oposição virulenta à entrada de imigrantes – oriundos da África e do Oriente Médio na Europa; da América Latina nos EUA. A centro-esquerda não sabe o que fazer com o tema. As suas tradições iluministas e internacionalistas levam-na a rejeitar a resistência à imigração. Não percebe que ela tem fundamentos reais. A rejeição do imigrante não é apenas diversionismo, como muitos imaginam. Os imigrantes trazem problemas significativos, não para as elites por suposto, que vivem à parte no seu mundo privilegiado, mas para os cidadãos comuns. A imigração em larga escala afeta o mercado de trabalho, pressionando para baixo os salários e levando à substituição de empregados locais por imigrantes. As firmas veem com bons olhos, claro, o barateamento da “mão-de-obra”, mas os trabalhadores sentem na pele e sofrem. Note-se que a imigração vem sobrecarregar um mercado de trabalho já adverso, em razão dos deslocamentos produzidos pelo rápido progresso tecnológico.

Mas a questão não é só econômica. A imigração massiva do século 21 é muito diferente, por exemplo, da imigração europeia para as Américas em épocas anteriores. O imigrante hoje é essencialmente diverso das populações do país hospedeiro, em termos raciais ou étnicos, assim como em termos culturais ou religiosos. A sua presença numerosa ameaça descaracterizar as sociedades dos países desenvolvidos, trazendo insegurança e reações xenófobas. Em outras palavras, a questão é também nacional – tema com o qual grande parte da esquerda sempre lidou mal.

Como reagirá a centro-esquerda a esses problemas? Continuará no rumo atual ou tentará se conectar com as novas realidades e as preocupações da maioria? Se ela optar por apegar-se às suas tradições, só nos resta desejar-lhe boa sorte.

 

Fonte: Jornal do Brasil

 

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