A democracia, uma prática política em
declínio, afirma sociólogo chileno
“Lentamente, impõe-se
uma ordem de dominação dirigida pelas plutocracias em consonância com o poder
de um cibercapitalismo que aumenta o seu controle graças à guerra neocortical,
cuja capacidade para anular a consciência e a reflexão aumenta o grau de submissão
e o conformismo social”, escreve Marcos Roitman Rosenmann, sociólogo, analista
político e ensaísta chileno-espanhol.
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Eis o artigo.
Não vivemos na
democracia, se por isso entendemos uma conduta fundada na busca do bem comum,
da justiça social e da igualdade. Existe uma contradição entre um projeto
democrático e a manutenção de relações sociais de exploração. E não só no que
diz respeito à exploração de seres humanos por seres humanos, mas também à
exercida contra a natureza. Refere-se à degradação do nicho ecológico, à
especulação alimentar, à apropriação dos recursos hídricos, às epidemias de fome produzidas por bloqueios, ao patrocínio de guerras, à
privatização da pesquisa científica ou limitando o acesso a medicamentos e
vacinas às maiorias sociais.
Todos os fatos
enunciados, além de questionarem a existência de uma ordem internacional
enraizada na paz, evidenciam uma deflação democrática. Neste contexto em
que prevalece o capitalismo, devemos somar as instituições que há séculos
sobrevivem, como o patriarcado, o racismo, as desigualdades econômicas, o poder das castas, a
nobreza, os proprietários de terras e os mandachuvas.
Sem pensar em uma
visão idílica da democracia, a realidade social nos leva a acreditar que o
futuro da democracia é incerto, quando não contrário aos seus princípios. A
origem da democracia, um modo de vida e de governo, encontra-se nas lutas
sociais pelo reconhecimento dos direitos dos cidadãos em seu sentido mais
amplo. A democracia busca, ao mesmo tempo, equilibrar o poder exercido
pelas plutocracias e combater as desigualdades sociais e econômicas
por meio da participação política na tomada de decisões. Em outras palavras,
que os cidadãos decidam por plebiscito sobre a guerra e a paz, promulguem as
leis, controlem os poderes de facto, possam ser eleitos, além de
evitar os abusos de poder daqueles que gozam da representação popular.
A democracia é
uma proposta de organização social e política. Supõe um programa para a vida em
comum, um projeto no qual as prioridades sejam determinadas pelas necessidades
coletivas que fazem com que a pessoa, um ser humano, tenha as necessidades
básicas atendidas e uma qualidade de vida digna. Tudo isto envolve pensar em um
nós coletivo.
Na democracia,
cada decisão tem efeitos sobre o tecido social. Construir hospitais, escolas,
proteger as crianças, punir a violência de gênero, promover o investimento
público em obras sociais e infraestruturas faz parte da democracia. Seu
contrário é aprovar uma redução na tributação para as grandes fortunas,
elaborar leis antissociais que favoreçam a demissão livre, leis trabalhistas
leoninas, limites ao gasto social, criminalizar o protesto social, entregar as
riquezas naturais a empresas privadas, vender o patrimônio público aos capitais
de risco, reduzir a maioridade penal e favorecer a desregulamentação do capital
financeiro e bancário.
As medidas antissociais
e os cortes nas liberdades democráticas são cada vez mais comuns, o que nos
fala de um processo de oligarquização do poder. A situação de saúde
democrática das sociedades atuais é crítica e o diagnóstico futuro não é
encorajador. Lentamente, impõe-se uma ordem de dominação dirigida
pelas plutocracias em consonância com o poder de
um cibercapitalismo que aumenta o seu controle graças à guerra
neocortical, cuja capacidade para anular a consciência e a reflexão aumenta o
grau de submissão e o conformismo social.
O risco de involução
política no planeta é uma realidade a curto prazo. O triunfo das direitas
antidemocráticas e o ressurgimento de propostas castradoras dos direitos
sociais são um indício a mais do renascimento do fascismo societal. Não se trata
do triunfo de uma crítica aos chamados “excessos da democracia” levantados
por Hayek,
mas uma rejeição à democracia como forma de governo e de vida em comum.
A democracia está
sendo atacada e tem aliados em setores sociais que mais deveriam lutar por ela.
Renunciar à democracia como projeto societal supõe abrir mão da ideia
de uma vida digna, carecer de um sistema de saúde, moradia, educação, ter
acesso ao lazer, a uma aposentadoria justa e simplesmente fazer três refeições
por dia. Com a desigualdade, qualquer projeto democrático é uma quimera.
Para percebermos o
quão longe estamos de viver na democracia, basta citar o Relatório da Oxfam de 2023, ao apontar que apenas no biênio
pós-pandemia (2020-2022), 1% da população mundial monopolizou dois terços
da nova riqueza gerada em escala global, o dobro dos 99% restantes da
humanidade. É cada vez maior a população mundial arrastada para a exclusão
social, cuja existência se situa na fronteira do subumano.
Sem medo de errarmos,
uma economia e sociedade de mercado construídas sobre a competitividade e a
meritocracia destroem qualquer opção de forjar uma ordem democrática. O capitalismo, em seus 500 anos de história, não foi um exemplo em forjar um
poder democrático. Contudo, foi em suas entranhas que as lutas democráticas
ganharam protagonismo, constituindo barreiras à sua ação predatória.
No entanto, a luta é
desigual. Multiplica-se a existência de partidos políticos cujos programas
fomentam o ódio, o racismo, a xenofobia, o negacionismo e a necropolítica,
ganham adeptos, e o mais preocupante, suas declarações são seguidas por milhões
de pessoas. Personagens como Donald Trump, Jair Bolsonaro, Javier Milei, Nayib Bukele, Giorgia Meloni governam ou governaram. São tempos difíceis.
O sucesso das
políticas que levantam muros, a desumanização dos imigrantes, o uso da mão dura
e o endurecimento das condenações são testemunho da insatisfação democrática.
Mentir, enganar, sentir-se acima da lei, estuprar, sonegar impostos, rir das
instituições, hoje, não têm consequências políticas. A sociedade não penaliza
os comportamentos corruptos. Em conclusão: sem consciência democrática não há
poder democrático.
Ø
As Igrejas e o declínio da democracia. Por
Fulvio Ferrario no Settimana News
"A “religião”
muitas vezes desempenha um papel muito clássico neste programa: estabilizar
ideologicamente a retórica sistêmica. As sociedades europeias e mesmo
americanas são significativamente seculares, mas as Igrejas ainda estão bem
enraizadas também e precisamente nos grupos socioculturais que impulsionam a
viragem pós-democrática", escreve Fúlvio Ferrario, teólogo italiano e
decano da Faculdade de Teologia Valdense, em Roma.
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Eis o artigo.
O “amanhecer” do
modelo democrático, que hoje parece estar em declínio, é bastante remoto,
e outrora as muitas correntes ideais (incluindo as duas Igrejas Cristãs
Latinas - o que, pelo menos do ponto de vista histórico, é curioso dizer
que o pelo menos) reivindicaram sua própria contribuição para esta história.
Contudo, estreito muito o campo, limitando-o ao horizonte gerado pela Segunda Guerra Mundial e pelos Acordos de Yalta.
Desta forma, já fica
esclarecido que esta história não tem sabe-se lá quais raízes “cristãs” ou
mesmo humanísticas, mas sim surge de extermínios em
massa, bombardeios de uma violência sem precedentes (e os
“convencionais” nada tinham a invejar dos nucleares, pelo menos para quem
as sofreu), divisões territoriais absolutamente cínicas.
Além disso, este tipo
de democracia cresceu sob a égide nuclear dos EUA, que patrocinou
simultaneamente várias ditaduras sangrentas; finalmente, a democracia não só tolerou, mas em
certo sentido promoveu e abençoou ideologicamente, a desigualdade
social sustentada, considerada necessária para apoiar o desenvolvimento
econômico.
Além disso, o
“contraponto” poderia começar precisamente a partir deste ponto: a
(social-)democracia tornou possível, em alguns países, níveis de reequilíbrio
de rendimentos desconhecidos na história da humanidade. E depois tudo o
resto: conteve a violência do Estado, produziu mecanismos nem sempre ineficazes para equilibrar o
poder e, em geral, uma qualidade de vida não alcançada por outras
soluções.
Depois de 1989,
alguns até viram nesse modelo “o fim da história”, ou seja, a conclusão da jornada da humanidade. Mesmo sem
aderir a este delírio, as Igrejas Católica e Protestante, depois
de o terem essencialmente rejeitado, tornaram seu este projeto de
sociedade, muitas vezes com convicção, acreditando também que estava destinado
a uma melhoria talvez lenta mas constante.
Contudo, não é
improvável que este modelo fique exposto a uma crise com consequências que
ainda não podem ser consideradas. A razão é que a opinião pública de muitos países acredita que outras fórmulas mais
autoritárias podem garantir uma melhor qualidade de vida à
maioria da população, com a qual se identificam aqueles que outrora seriam
chamados de “massas populares”. Isto determina, na Europa, as propostas no
poder em países como a Polônia, a Hungria e a Itália; poderá em breve
ser o caso de França e, quem sabe, de toda a União. Acima de
tudo, porém, há um Trump que aprendeu a lição: se aceitarmos o jogo
“democrático”, teremos problemas. Melhor liquidá-lo o mais rápido possível.
Tal transição,
obviamente, não pode ser considerada uma alternância normal dentro do
esquema “antigo democrático”, mas antes constitui uma mudança de
paradigma.
Se ignorarmos
(assumindo que é possível...) a observação banal de que as
"soberanias" acabam necessariamente por estar em conflito umas com as
outras, elas apresentam uma retórica comum (ao estilo geral de Vannacci,
variadamente modulada de acordo com gostos e oportunidades políticas), mas
acima de tudo, um programa claro: demolição definitiva
do Estado-providência, escolas destinadas a reproduzir as classes dominantes no poder, socialização exasperada de custos e
perdas e privatização igualmente radical dos lucros. Ou seja, o
programa de toda direita, mesmo democrática, ainda mais
se autoritária.
A “religião” muitas
vezes desempenha um papel muito clássico neste programa: estabilizar
ideologicamente a retórica sistêmica. As sociedades europeias e mesmo
americanas são significativamente seculares, mas as Igrejas ainda
estão bem enraizadas também e precisamente nos grupos
socioculturais que impulsionam a viragem pós-democrática.
No cristianismo
ocidental, contudo, também encontramos impulsos críticos, por vezes motivados
teologicamente em termos não triviais. Talvez as próximas
fronteiras que virão não serão, por exemplo, entre católicos e protestantes, mas entre aqueles que, em geral, acreditam que
a democracia é o contexto menos pior para a proclamação
evangélica e aqueles que, em vez disso, pensam que a ideologia
"Deus, pátria, família”, conduzem a um novo cristianismo.
Isso não significa que
ainda resta muito tempo.
Fonte: La Jornada - tradução
do Cepat, para IHU
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