Multas por
desmatamento na Amazônia caem 90% em janeiro com protesto de fiscais do Ibama
Após um
ano de intensa fiscalização, que teve como resultado mais visível a queda de
50% nos alertas de desmatamento da Amazônia em 2023 (na comparação com 2022),
os servidores ambientais do governo federal iniciaram 2024 em uma espécie de
“operação padrão”. A maior parte das atividades de campo – como as de combate
ao desmatamento e ao garimpo – foi paralisada a partir do dia 1º de janeiro, em
protesto pela reestruturação da carreira. Com a realização apenas de trabalhos
internos, os impactos já são sentidos.
Em um mês
sem operações de fiscalização ou vistorias de licenciamento, houve uma queda de
69,3% nos autos de infração em todo o Brasil, passando de 1.090 em janeiro do
ano passado para 335 neste ano. Na Amazônia, a queda foi de 88,4% (de 476 em
2023 para 55 em 2024).
Considerando
apenas autos específicos de crimes sobre a flora na Amazônia (onde se enquadra
o desmatamento), a queda foi de quase 90% (de 327 para 34), de acordo com dados
compilados pela Ascema Nacional (a associação nacional dos servidores de meio
ambiente) até o dia 29 e compartilhados com a Agência Pública.
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Por que isso importa?
• Com a retomada da política ambiental no
governo Lula, após desmonte nos anos Bolsonaro, servidores ambientais entraram
em ação e conseguiram resultados importantes, como a queda do desmatamento na
Amazônia, mas eles afirmam que continuidade dos esforços dependem de melhoria
das condições de trabalho
• Muitos têm deixado seus postos e mais de
500 estão prestando novos concursos. Desde o início da mobilização, despencou o
número de multas e autos de infração aplicados na Amazônia
O analista
ambiental Wallace Lopes, diretor da Ascema, explica que os funcionários
continuam trabalhando, mas em funções burocráticas, de escritório. A estimativa
é que cerca de 90% deles aderiram ao movimento. “A queda nas multas só não é de
100% porque estamos dando encaminhamento em processos de infrações antigas que
estavam pendentes, justamente porque estamos sempre priorizando as ações de
campo”, diz.
“É
meramente uma questão de tempo para que isso tenha reflexo nas taxas de
desmatamento e degradação ambiental em todo o país”, complementa.
Ainda não
houve esse efeito. Dados preliminares divulgados pelo sistema Deter, do Inpe
(Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), apontam que janeiro manteve a
tendência de queda dos alertas observada nos últimos meses. Mas também pesa o
fato de que o início do ano tradicionalmente tem mesmo um número menor de
alertas de desmatamento por ser temporada de chuva em boa parte da Amazônia.
A própria
diretoria do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis) admite que pelo menos 75 operações de campo que estavam
planejadas para janeiro não ocorreram, segundo Rodrigo Agostinho, presidente da
autarquia. Entre elas estão atividades previstas na Terra Indígena Yanomami,
que sofre com uma crise sanitária e com a invasão de garimpeiros e do crime
organizado. Lá, a última ação do órgão se deu no dia 13.
A
mobilização foi a estratégia adotada por servidores do Ibama, do ICMBio
(Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), do Serviço Florestal
Brasileiro e do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) para
chamar a atenção para a importância do trabalho deles – e para a necessidade de
ter um sistema ambiental fortalecido a fim de cumprir algumas das políticas
prioritárias do governo Lula, como zerar o desmatamento no país e fazer obras
de infraestrutura.
O alerta
de que as atividades de campo poderiam ser interrompidas se as reivindicações
dos servidores não fossem atendidas começou a ser feito em dezembro do ano
passado, durante a 28ª Conferência do Clima da ONU, nos Emirados Árabes Unidos.
Enquanto o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e a ministra do Meio
Ambiente e Mudança do Clima Marina Silva promoviam na cúpula as conquistas do
governo no combate ao desmatamento, cerca de 1,5 mil servidores divulgaram uma
carta cobrando a valorização da carreira.
O
sentimento que se instalou entre eles é de que os bons resultados anunciados só
foram possíveis, em boa medida, graças ao esforço e comprometimento dos
servidores ambientais ao longo do ano. E que depois do desmonte da área
ambiental promovido pelo governo de Jair Bolsonaro, e da retomada dos trabalhos
pelo governo Lula, era de se esperar também um reconhecimento que se traduzisse
na melhoria das condições de trabalho.
“A
governança ambiental foi reconstruída no Brasil [no último ano]. E muito desse
resultado foi por causa dos esforços dos servidores. O desmatamento na Amazônia
caiu não porque os desmatadores tiveram a consciência de deixar de desmatar. A
diminuição do fogo em diversas regiões não ocorreu porque as pessoas deixaram
de causar incêndios”, explica Cleberson Zavaski, diretor-presidente da Ascema
Nacional.
Ele
critica que, mesmo com os sólidos resultados alcançados, a categoria não viu
“nenhum tipo de aceno positivo diante das suas reivindicações”. “É necessário
elevar a carreira ao patamar do discurso [do governo federal] de que a pauta
ambiental é prioritária”, pontua.
• Demandas vão de melhores salários a
jornadas de trabalho compatíveis
Na carta
de dezembro, os servidores pediam respostas do governo a problemas que dizem
ser relacionados a “mais de 10 anos de descaso” às “demandas estratégicas da
área ambiental”. Entre as principais queixas estão os baixos salários – que
tornam a carreira pouco competitiva –, o déficit de pessoal, um regramento
falho que não contempla as dificuldades e peculiaridades da profissão, além de
falta de estrutura.
Os pedidos
vão além da realização de um novo concurso – demanda que o governo já vai
atender neste ano. A análise dos servidores é de que não adianta contratar mais
gente se a carreira não é atrativa para segurá-los na vaga.
Um
levantamento feito pela Ascema Nacional observou que um a cada seis servidores
que ingressaram no Ibama no último concurso, de 2022, já deixaram os cargos
para outros com melhores salários ou condições mais favoráveis. Este edital,
lançado na gestão Bolsonaro, teve o agravante de ter priorizado a contratação
de técnicos ambientais, que ganham metade do valor dos analistas, mas que
também foram chamados a fazer curso para se tornarem fiscais – função que vai a
campo e é a mais arriscada da categoria.
Outra
associação de servidores ambientais, a Asibama-DF, também fez uma pesquisa com
801 funcionários e revelou que 73% (mais de 500 deles) estão se preparando para
prestar outros concursos. Agostinho, presidente do Ibama, reconhece essa
fragilidade. “Tenho servidores maravilhosos estudando para concurso do
Ministério da Agricultura, por exemplo, porque tem remuneração maior. O pessoal
que passou no concurso de técnico está indo embora”, disse à Pública.
Segundo
ele, hoje o Ibama tem 2.700 servidores, e cerca de mil devem se aposentar nos
próximos três anos. “A gente precisa de um pacote de coisas: que exista
concurso novo, mas que se resolvam problemas da carreira, que são de natureza
salarial, uma defasagem que existe há muito tempo, mas também relacionados à
jornada de trabalho”, afirma.
“Desenharam
uma jornada lá atrás para o Ibama como se trabalhássemos de segunda a sexta e
às 18h fossemos embora para casa. Além disso, a carreira do servidor do Ibama
se esgota em 13 anos [quando se alcança o pico salarial], quando a maior parte
é de 20 anos”, complementa Agostinho.
Zavaski
defende que a reestruturação é fundamental para que o governo execute “uma
série de programas que estão sendo lançados, como o PPCDAm, o PPCerrado [os
Planos de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia e Cerrado,
retomados em 2023] e tantos outros que são extremamente importantes para que o
Brasil cumpra, inclusive, os acordos internacionais de que é signatário”.
Além do
combate ao desmatamento, também está em jogo o licenciamento do novo PAC
(Programa de Aceleração do Crescimento), reconhecem Agostinho e a ministra
Marina Silva. “São bilhões [em obras], e uma redução muito grande na quantidade
de pessoas que lidam com o licenciamento, que ficam trabalhando quase que
ininterruptamente. Quando eu saí do ministério, há 15 anos, deixei 1.700
fiscais do Ibama. Hoje, voltei com apenas 700, e a maioria em processo de
aposentadoria ou não tendo mais condição de ir à campo”, comentou Marina na
última segunda-feira, 29, em evento em São Paulo.
Ela disse
que está conversando com a ministra Esther Dweck, do MGI, em busca de uma
solução. “O importante é que todos os servidores têm uma consciência muito
grande em relação aos ganhos que já alcançamos e de que esses ganhos não podem
ser perdidos. E o governo federal tem a mesma consciência de que para esses
ganhos continuarem sendo alcançados é preciso que a gente dê algumas respostas
às demandas legítimas dos servidores”, afirmou.
A
reestruturação da carreira de especialista em meio ambiente reivindicada pela
categoria inclui, além da reorganização de cargos e salários, a criação de
indenizações de fronteira e por atividade de risco.
A primeira
pretende aumentar a presença da força de trabalho dos órgãos ambientais em
áreas de difícil acesso, inóspitas e em condições adversas. Esta indenização já
é aplicada desde 2013 a outras carreiras, como as das polícias Federal e
Rodoviária Federal e a dos auditores da Receita Federal.
A segunda
busca remunerar os servidores expostos a riscos em atividades de fiscalização,
vistorias em locais com produtos e resíduos perigosos e centros de triagem de
animais silvestres, entre outros.
A proposta
foi apresentada pelos servidores em maio do ano passado, referendada pelo MMA e
encaminhada para o Ministério da Gestão e Inovação (MGI) em agosto. Uma mesa de
negociação foi instalada, e a primeira reunião foi realizada em 6 de outubro
com o MGI. Outras duas reuniões deveriam ter ocorrido em 30 dias, o que não
aconteceu.
Nesse
intervalo, outras categorias que também pleiteavam melhorias na carreira
avançaram, como as polícias Federal e Rodoviária Federal. Com o início da
mobilização dos servidores ambientais em janeiro, uma nova reunião foi marcada
para esta quinta-feira, dia 1º, quando se espera que o MGI apresente uma
contraproposta. Caso ela não contemple as demandas, os dirigentes da Ascema
Nacional preveem a continuidade da mobilização e não descartam que possa
escalar para uma greve.
Os
servidores criticam a demora do ministério em encaminhar a reestruturação da
carreira. Em nota, a pasta informou que reinstalou, no começo de 2023, a Mesa
Permanente de Negociação com os servidores públicos federais e que “o primeiro
acordo fechado foi o reajuste linear de 9% para todos os servidores, inclusive
para os do Ibama, além do aumento de 43,6% no auxílio alimentação”. Afirmou
ainda “que vem atuando dentro do possível e dos limites orçamentários para
atender às demandas dos órgãos e entidades do Executivo Federal”.
• Risco constante e dia sem hora para
acabar
Ao longo
deste mês a Pública conversou com diversos fiscais do Ibama que aderiram à
mobilização para entender o que está por trás das demandas. As histórias
vividas por eles ilustram alguns dos riscos a que estão expostos em sua atuação
e ajudam a entender por que eles entendem que somente a reestruturação pode
garantir um sistema ambiental robusto no país.
Em comum a
quase todos está a sensação de que, apesar de muitas das situações já se
arrastarem há anos, houve uma piora do quadro principalmente durante a gestão
Bolsonaro. O perigo aumentou, dizem todos, enquanto a carreira ficou
fragilizada.
“As ações
estão cada vez mais arriscadas e há um problema interno de garantir o direito
ao adicional de periculosidade. Colegas só conseguiram receber depois de
judicializar. Eu mesmo tenho valores pendentes”, conta Felipe Finger,
coordenador do Grupo Especial de Fiscalização (GEF), a força de elite do Ibama.
No ano
passado ele atuou por três meses seguidos na Terra Indígena Yanomami, logo
depois de ser decretada a crise sanitária que estava matando os indígenas.
“Estamos na linha de frente. Foram muitas situações de confronto. Na primeira
fase de atuação saíram os garimpeiros mais pacíficos, os aventureiros, mas
recrudesceu a criminalidade organizada. As facções que já estavam lá dentro não
só permaneceram como ampliaram o domínio territorial”, relata.
Foram
diversas situações em que os fiscais foram recebidos a tiros. Em uma delas, que
envolveu membros da facção PCC, quatro criminosos foram mortos. “Até onde
precisamos provar que estamos em situação de risco, que temos direito à
periculosidade?”, questiona Finger, aos 45 anos, desde 2005 no Ibama. “Foi
depois disso que eu voltei para casa, mas não por causa do confronto, mas
porque estava em nível de exaustão impressionante”, conta. Nesse período na TI
ele também pegou malária.
Finger
ressalta que o perigo não vem apenas das situações de conflito. “A gente opera
muito de helicóptero, de monomotor, que é de alto risco. Estamos fazendo guerra
com aeronave de táxi-aéreo”, conta.
Em julho
de 2017, três fiscais do Ibama e um piloto morreram durante uma operação na
mesma TI Yanomami quando o avião em que estavam, fretado pelo Exército, caiu
logo após decolar e explodiu. O único sobrevivente foi o analista ambiental
Lazlo Macedo de Carvalho, que conseguiu escapar da aeronave pelo bagageiro.
Ele teve
40% do corpo queimado, além das vias aéreas comprometidas, e passou três meses
no Centro de Tratamento de Queimados do Hospital da Força Aérea no Rio de
Janeiro. Voltou ao trabalho somente no fim de 2018.
O acidente
reforçou o argumento dos servidores que já se mobilizaram para que a carreira
tenha adicional de periculosidade. “Não vai ficar prevendo queda de avião, mas
tem de prever que há um risco na nossa atribuição sim se dependemos de
aeronaves para fazer nossas ações”, disse Carvalho à Pública. O analista tem 51
anos, 21 deles no Ibama.
A fiscal
Maria Luiza Gonçalves de Souza Jara também enfrentou inúmeras ameaças por
realizar seu trabalho. Em uma dessas situações, em 2017, ela gerenciava a
unidade do Ibama em Santarém, no Pará, quando começaram a circular por grupos
nas redes sociais ameaças de que Jara seria “queimada”. Ela coordenava com
frequência operações contra o desmatamento ilegal na Floresta Nacional (Flona)
do Jamanxim, em Novo Progresso, que há anos figura entre as unidades de
conservação mais devastadas da Amazônia. Àquela época, tramitava na Câmara dos
Deputados um projeto de lei de autoria do então presidente Michel Temer que
queria reduzir a área da Flona em 27%.
“Foram
ficando evidentes a agressividade e a falta de segurança a que estamos
submetidos. Estávamos ali, apenas alguns servidores, nos expondo completamente
diante de uma cidade inteira que estava se fechando contra nós”, narra Jara, de
41 anos, servidora do Ibama desde os 22.
Ela
critica o fato das carreiras policiais federais terem sido atendidas em suas
reivindicações e de suas atuações no combate ao desmatamento da Amazônia serem
reconhecidas publicamente pelas autoridades em detrimento do Ibama. “Outras
carreiras que fazem menos na área ambiental estão sendo valorizadas em vez de
nós, que temos o protagonismo [no campo]”, afirma. “Ou, de fato, recebemos
reconhecimento, ou órgão ambiental vai ruir.”
Esse
reconhecimento, apontam os servidores, tem de ser traduzido em mudanças na
estrutura da carreira. Uma das maiores queixas que eles têm é em relação ao
regime de jornada de trabalho, que estabelece que só podem trabalhar por 8
horas por dia, com a possibilidade de chegar a apenas mais duas horas extras,
desde que devidamente autorizadas. Fora isso, o trabalho não é computado. Não
há compensação em folga ou dinheiro.
Mas isso
não contempla a realidade das atividades de campo, argumentam. O crime
ambiental acontece à noite, aos finais de semana. No meio de uma operação, não
raro os fiscais têm jornadas de mais de 16 horas. Finger conta que trabalhou
praticamente sem descanso durante os três meses que ficou na TI Yanomami.
Roberto
Cabral Borges, da Coordenação de Operações de Fiscalização do Ibama, lembra uma
situação que enfrentou quando estava ajudando a combater os incêndios no
Pantanal, em 2021.
“Em um
dado momento soubemos que mataram uma onça em Porto Jofre (MT). Nós estávamos
baseados em Poconé. Naquelas condições, dirigindo pela Transpantaneira a 50
km/h, levaria umas 4 horas para chegar lá. Prendemos umas pessoas, começamos a
voltar, mas não tínhamos nem chegado na metade do caminho e já tinham passado
as 10 horas permitidas. Pelas regras, dali para frente eu simplesmente não
poderia mais trabalhar, mas eu estava transportando preso, ainda passaria horas
na delegacia. Basicamente estava trabalhando de graça”, relata.
Todos os
servidores ouvidos pela reportagem contam histórias parecidas. Quando há
maquinários apreendidos, por exemplo, se eles são deixados para trás quando
“acaba o expediente”, há o grande risco de serem retomados pelos criminosos.
“Na Amazônia, o Estado brasileiro se faz presente pelas equipes que estão no
local. Quando começa a fazer uma atividade, não pode parar. Se perder a
oportunidade, toda a operação pode ser perdida”, comenta Carvalho.
“O que
percebemos é que não vamos conseguir cumprir nossa função com base no
idealismo. A proteção contra o crime ambiental não pode depender disso. É
preciso ter mais pessoas e que elas sejam remuneradas de forma adequada e
queiram trabalhar porque têm as condições adequadas para isso. A gente não vai
vencer a guerra só com ideologia. Se as pessoas não forem pagas e motivadas de
forma adequada não vamos ter uma proteção mais efetiva e perene do meio
ambiente”, resume Cabral.
Fonte: Por
Giovana Girardi e Anna Beatriz Anjos, da Agencia Pública
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