Amigos e
rivais: pesquisadores explicam papel de Israel na origem do Hamas e como grupo
se sustenta
Há quase
quatro meses, os conflitos entre Israel e Palestina se intensificaram na Faixa
de Gaza, com o grupo Hamas assumindo a autoria de um ataque que matou mais de
mil israelenses e gerando uma resposta do Estado judaico, que já eliminou mais
de 26 mil palestinos — número que cresce todos os dias, desde então.
O criador
e administrador do projeto História Islâmica, Mansur Peixoto, ressaltou em
entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, que para entender o conflito
israelo-palestino é crucial ter em mente como o próprio território israelense
apoiou a criação do Hamas e como o grupo se sustenta hoje.
Como
Israel ajudou a criar o Hamas
Peixoto
explica que o Hamas teve seu início com o grupo Mujama al-Islamiya, na Faixa de
Gaza, fundado pelo sheik Ahmad Yassin durante a ocupação israelense nos anos
1960.
Ele
ressalta que durante o governo israelense de Gaza, o grupo de Ahmad Yassin foi
registrado e fortalecido por líderes israelenses, incluindo Yitzhak Shamir e
Yitzhak Segev.
O Hamas,
como braço armado do Mujama al-Islamiya, surgiu somente no final de 1987,
durante a Primeira Intifada.
Durante
esse período, segundo Peixoto, Israel forneceu apoio tático e logístico ao
Hamas, visando minar o poder da Organização para a Libertação da Palestina
(OLP), liderada por Yasser Arafat.
"Não
é uma questão de opinião. Israel vai passar apoio tático e logístico para o
Hamas para que ele minasse o poder da OLP, que era uma organização árabe
nacionalista de cunho socialista, de esquerda."
Documentos
revelados posteriormente pela WikiLeaks e declarações de líderes israelenses
confirmaram esse apoio, segundo ele.
Peixoto
destaca a inteligência estratégica posterior de Israel, que viu no Hamas um
"inimigo perfeito" para substituir a OLP como adversário.
Enquanto
Arafat liderava um movimento secular nacionalista, com "circulação livre
pelos países árabes da vizinhança, na ONU e nos Estados Unidos", o Hamas
representava uma versão mais politicamente religiosa, alinhando-se com a visão
do Ocidente sobre o Islã.
·
O que defende o Hamas?
O
pesquisador também destaca a divergência de visões dentro da questão palestina,
notadamente as do Fatah e do Hamas. O Fatah, grupo secular e nacionalista,
contrasta com o Hamas, que tem raízes islâmicas e baseia seus pressupostos na
irmandade muçulmana.
No
entanto, Peixoto observa que hoje o Fatah está neutralizado politicamente e que
o governo de Mahmoud Abbas colabora, de certa forma, com o governo de Israel na
expansão israelense para a Cisjordânia.
Ele
destaca uma aliança velada que prejudica a população palestina.
Por outro
lado, o Hamas mantém uma postura de resistência, considerando qualquer acordo
com Israel como temporário, com o objetivo final de alcançar a libertação da
Palestina.
Peixoto
reconhece o alto custo humano de tal abordagem, mas contextualiza a dinâmica de
resistência dentro da história palestina, comparando-a à luta pela libertação
nacional do Haiti.
A mestra
em ciências militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME)
e pesquisadora no Núcleo de Avaliação da Conjuntura (NAC) Amanda Marini explica
que o grupo paramilitar palestino não se limita à religião, abrangendo aspectos
ideológicos, nacionais e a resistência armada.
"A
organização emergiu da dissidência de um ramo da Irmandade Muçulmana do Egito,
fundada em 1928, e intensificou sua participação na resistência armada a partir
dos anos 1990."
A
pesquisadora ressalta o contexto histórico da Primeira Intifada (1987–1993),
que deu origem ao Hamas, e como a organização rejeitou os acordos de Oslo em
busca da solução do Estado único.
·
Como o Hamas se sustenta?
Marini
também destacou as relações do Hamas com países da região, como Catar e Irã,
apontando apoios desses países ao grupo. Segundo ela, há uma complexidade das
doações humanitárias a Gaza, que teriam parte retida pelo grupo para seus
próprios fins.
Ela afirma
que o financiamento do Hamas envolve questões religiosas, disseminação de
ideais e, em alguns casos, os interesses geopolíticos iranianos.
A
pesquisadora também abordou o Daesh (organização terrorista proibida na Rússia
e em vários outros países), destacando sua natureza jihadista e interpretação
particular do Islã. Ela comenta que o grupo se fortaleceu durante a guerra
civil na Síria, proclamando um califado islâmico e obtendo recursos por meio da
tomada de bases militares e de financiamento norte-americano.
Segundo
ela, há uma rivalidade entre o Daesh e o Irã, respectivamente com as vertentes
sunita e xiita do Islã, e uma ausência de ataques do grupo terrorista a Israel
poderia ser justificada, entre outros motivos, pela eficácia das defesas
israelenses e por possíveis estratégias de evitar conflitos diretos.
A
pesquisadora destaca um aumento significativo nas importações de armas pelo
Oriente Médio durante o segundo mandato do ex-presidente dos EUA Barack Obama.
Analisando
dados do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI, na
sigla em inglês), Marini conta que as importações aumentaram em 86% nesse
período, impulsionadas pelos eventos pós-Primavera Árabe e pelo auge do Daesh.
Durante a
primeira década da política de "guerra ao terror", as importações
globais de armas aumentaram em 21%, sendo metade desse incremento destinada
exclusivamente ao Oriente Médio, fazendo com que os EUA emergissem como o
principal fornecedor de armas para a região.
Trump e
Biden: como as eleições dos EUA podem influenciar o Oriente Médio?
Marini
também aborda as perspectivas em relação à política externa dos EUA,
especialmente no contexto da possível eleição entre Joe Biden e Donald Trump. A
posição isolacionista proposta por Trump, segundo ela, levanta questões sobre o
impacto nas regiões onde os EUA têm presença militar e sustentam diversos
conflitos.
Ela
adverte que a saída dos estadunidenses poderia criar desequilíbrios e vazios
geopolíticos, especialmente no Oriente Médio.
"Eu
entendo que a China está se aproximando cada vez mais dos países,
principalmente quando a gente olha para o golfo Pérsico. […] ela pode não
colocar militares, por exemplo, mas ir com a venda de armamentos e até mesmo
tentar solucionar [conflitos] diplomaticamente, o que acaba interferindo
[…]."
·
Caminhos futuros para a Palestina
Para
Mansur Peixoto, a pacificação da Palestina deveria passar, de alguma forma,
pela desideologização da sociedade, comparando-a ao processo de desnazificação
realizado na Alemanha após a Segunda Guerra Mundial.
A retirada
da ideologia supremacista do sionismo é vista como uma medida essencial para
enfraquecer o radicalismo presente em certas lideranças palestinas, segundo
ele. "Na Alemanha [nazista], o povo alemão não foi extinto. A Alemanha,
enquanto país, não deixou de existir, mas teve que ser construída uma nova
nação sob novos pressupostos."
A proposta
de Peixoto é a criação de um Estado único na região, tendo como referencial o
período de 300 anos de paz sob o Império Otomano.
"Israel
jamais vai permitir um Estado palestino independente com exército, porque isso
não vai facilitar a sua política de expansão, valor nacional definido em 2018
pelo Knesset israelense", diz ele se referindo à política condenada por
normas internacionais.
Ele sugere
um Estado que represente todas as comunidades presentes no território, sem a
supremacia judaica e a ideia de transmissão genética associada ao sionismo.
"O que se vê é o massacre da população de Gaza. Em três meses, mais de 1%
da população já morreu com a ação direta de ataque do governo israelense. Ou
seja, é uma chacina a olhos vistos."
Por fim,
Peixoto também alerta para a situação atual na Cisjordânia, que ele descreve
como totalmente controlada por Israel, e diz que há um desconhecimento
generalizado sobre o mundo islâmico, especialmente no que diz respeito ao
Oriente Médio e ao contexto geopolítico da região, que também contribui para
uma falta de informação sobre o conflito.
·
Qual a diferença entre árabes e muçulmanos?
Durante a
entrevista, a pesquisadora Amanda Marini ressaltou a associação estigmatizada
entre árabes e terrorismo, especialmente após os ataques de 11 de Setembro. Ela
destacou também a importância de distinguir etnias de religiões, esclarecendo
que ser árabe não implica automaticamente ser muçulmano e vice-versa.
Responsável
pelo canal História Islâmica, Peixoto também aborda o equívoco comum,
comparando o berço do catolicismo em Roma com o berço do Islã no Oriente Médio.
Ele
explica que da mesma forma que a maioria dos católicos não são italianos, a
maioria dos muçulmanos do mundo não são árabes necessariamente, enfatizando a
diversidade de nacionalidades dentro da comunidade muçulmana global.
Peixoto
sublinha que, ao abordar questões que eventualmente aparecem nos jornais, é
essencial compreender que as pessoas vivem além dos momentos em que se tornam
notícia, sofrendo as consequências ao longo do tempo das decisões que ganham
destaque na mídia.
"Muita
gente também se deixa levar pelo que lê de primeira e não procura saber
exatamente os dois lados da informação."
Fonte:
Sputnik Brasil
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